Melhor opção
Sem sombra de dúvidas, a
atuação junto às famílias é merecedora de destaque desde os tempos da
“assistência judiciária”, serviço de relevância pública que antecede
aqueles prestados pela Defensoria. A razão, a nosso ver, é bastante
simples e está diretamente relacionada ao fato de que o direito das
famílias constitui a vertente mais democrática do Direito, o que também
se explica com facilidade. Afinal, se nem todos os cidadãos estabelecem
relações comerciais, trabalhistas ou previdenciárias de relevância
jurídica, certo é que, por outro lado, todos constroem ou se veem
inseridos em vínculos regidos pelo direito das famílias, cuja tutela
abrange período anterior ao nascimento da pessoa (a proteção ao
nascituro), acompanhando-a até mesmo após sua morte[1].
Justamente por isso, ainda hoje, quando a atuação institucional é bem mais abrangente, são as questões de família
que constituem uma das principais vias de acesso do público assistido à
Defensoria. A fim de ilustrar o que se afirma, no caso da Defensoria
Pública do Rio Grande do Sul, note-se que o Relatório Institucional de
2014 registrou que cerca de 40% dos atendimentos realizados
relacionavam-se ao direito das famílias — já em 2015, cerca de 35%.
Apesar
da relevância do tema, notória até mesmo pelo volume da demanda, a seu
respeito muito pouco se diz ou se constrói, percebendo-se um certo
descuido institucional no que diz respeito à matéria. Algo que, de tão
presente, se torna esquecido, como se o simples fato de se tratar de um
campo de atendimento realizado há décadas dispensasse questionamentos e
reflexões sobre o espaço de construção do direito — e da cidadania — que
nos é próprio[2].
Aliás, parece-nos que o menoscabo usualmente dedicado ao direito das
famílias durante nossa formação jurídica termina por contaminar a visão
institucional acerca da matéria, sempre associada a meras picuinhas
emocionais e futilidades egoísticas, amontoadas em campo do saber que
dispensa maior esforço crítico ou trato estratégico.
Essas
considerações são fruto de reflexões e práticas desenvolvidas há pelo
menos dois anos, as quais resultaram em livro que disponibilizamos ao
público de forma gratuita[3],
a fim de abordar as questões de família sob uma perspectiva defensorial
– antecipando, de forma simples e didática, os efeitos das reformas
trazidas pelo Novo Código de Processo Civil na prática jurídica que
envolva o direito das famílias. Das questões ali trabalhadas, cremos que
duas merecem destaque, considerando sua importância estratégica e
dimensão prioritária para a Defensoria Pública — especialmente diante da
constatação de que as questões de família, como dito, constituem das
maiores portas de acesso à instituição.
Referimo-nos, pois, ao
campo fértil que se abre pela atuação junto às famílias no que diz
respeito à solução extrajudicial de litígios e à educação em direitos.
Nesse sentido, ressaltamos a urgente necessidade de superar com
criatividade a notória insuficiência do modelo tradicional de simples
acesso ao sistema judicial para a solução dos conflitos de família —
como há décadas já anunciava Cappelletti —, o que se faz possível
justamente pelo investimento institucional na solução extrajudicial de
conflitos e na educação em direitos, em efetivação ao que preconizam os
incisos I, II e III do artigo 4º da Lei Complementar 80 de 1994.
Muito
embora o fato de constarem dos primeiros incisos do artigo 4º da LC
80/1994 já se mostre bastante indicativo da prioridade com que devem ser
abordadas questões afetas às soluções autocompositivas e à prevenção de
litígios, difícil tem sido a tarefa de tentar transpor essas
prioridades do texto para a realidade. É esse o grande desafio que se
enfrenta diante da necessidade de se reduzir e mitigar o efeito da
hiperjudicialização que há muito emperra o sistema de Justiça. Mas a
prática nos mostra que esses obstáculos podem ser contornados com
iniciativas simples, como exporemos a seguir, a partir de nossa
experiência prática.
Assim, especificamente no que concerne à
educação em direitos, compreendemos as dificuldades encontradas para
densificação da ideia, retirando-a de um discurso retórico — e, por que
não dizermos, “fraco” — para convertê-la em ações efetivas. A
experiência cotidiana, entretanto, é frequente em demonstrar que
questões a princípio complexas podem, muitas vezes, ser equacionadas a
partir de iniciativas simples, com resultados bem significativos.
Nesse
ponto, tomando por base o trabalho que desenvolvemos na comarca de
Caxias do Sul (RS), no âmbito do Projeto Defensoria das Famílias,
destacamos a conveniência e necessidade de envidar esforços no sentido
de transformar a cultura de atendimento estabelecido no âmbito da
Defensoria, uma vez que, de fato, ainda se limita a reproduzir — com
mínimas diferenças — o paradigma consolidado pelos modos de exercício da
Advocacia tradicional, de cunho judicializante e litigioso. A
necessidade de adequar o trabalho prestado ao volume da demanda e à
dimensão pública em que atuamos levou-nos a prestigiar as soluções
autocompositivas; a alterar os modos de construção argumentativa das
petições — especialmente das iniciais, evitando a apresentação de
relatos que pouco contribuem para o bom deslinde do feito e que
potencializam o conflito; a prestar uma orientação clara a respeito da
possibilidade de insucesso da demanda; a esclarecer o público assistido
sobre a demora inerente ao processo judicial, frisando as vantagens da
solução consensual; a limitar o ajuizamento em situações de insucesso
bastante provável — notadamente em negatórias de paternidade e
revisionais de alimentos; a editar materiais de orientação em direitos
para diversos públicos — como o “Gibi Cidadão: A Defensoria Pública e as
Famílias”, a “Cartilha Cidadã: a Defensoria Pública e as Famílias” e o
“Guia Prático do Estagiário”; a investir na realização de palestras em
universidades e centros comunitários, dentre outras medidas.
Além disso, percebemos a necessidade de auxiliar na produção probatória e
na própria organização da vida financeira do cidadão assistido, pelo
que formatamos modelos de recibos de pensão alimentícia, tabelas para
controle de pagamento e recebimento de pensão, além de modelo de laudo
médico para instruir ações de interdição.
Em relação à solução
extrajudicial de conflitos, cumpre destacar a iniciativa que denominamos
“Dia do Consenso”, que consiste no atendimento, às quartas-feiras, pela
manhã, independentemente de agendamento, de todas as pessoas que
comparecerem espontaneamente para formalizar acordos no âmbito das
relações de família — por certo, de posse dos documentos necessários e
acompanhadas das demais partes interessadas. Em cerca de 18 meses,
obtivemos significativo incremento no número de acordos, passando de
cerca de nove avenças mensais, no final de 2013, para 77, em março de
2015, o que levou à formalização de cerca de mil acordos no contexto de
nosso projeto, no período indicado.
Todavia, mais que iniciativas
isoladas, frisamos a necessidade de se adotar institucionalmente uma
postura prioritariamente conciliatória — ou, ao menos, de arrefecimento
do litígio —, seja no âmbito extrajudicial, seja no curso dos processos.
Assim, é fundamental que todo o trabalho seja organizado e pautado pela
redução da litigiosidade, o que se amarra firmemente com a educação em
direitos. Ou seja, por meio da educação em direitos, ao conscientizar o
assistido quanto às reais e limitadas possibilidades abertas pelo
ordenamento para a solução de suas questões e conflitos, contribui-se
para que ele próprio adote uma postura mais crítica e autônoma diante
dos obstáculos inerentes aos percursos do litígio judicializado. Esse
processo de desmistificação do sistema e das formas jurídicas resultará,
naturalmente, em uma postura mais aberta a meios alternativos para a
solução de seus problemas, o que inclui as vias da conciliação e
mediação, por exemplo, as quais poderão assegurar respostas mais
adequadas e eficientes, especialmente diante das especificidades das
questões de nosso público assistido.
Convém ressaltar que, quando
tratamos da “especificidade” das situações vivenciadas por nossos
assistidos, remetemos a contextos fáticos muitas vezes construídos à
margem do direito posto e que envolvem, dentre outras tantas hipóteses
que o cotidiano nos apresenta, a ocupação de imóveis em áreas de
proteção ambiental, negócios jurídicos atípicos envolvendo bens
financiados ou imóveis não escriturados, registro de crianças em nome de
terceiros que não os pais.
Para nos limitarmos a um breve
exemplo, destacamos o caso corriqueiro que envolve partilha de imóveis
situados em áreas de proteção ambiental e não escriturados.
Esclarecendo, não é incomum que o único bem possuído pelo casal em vias
de dissolver a união ou casamento seja justamente um imóvel estabelecido
em “área verde” — inclusive com “justo título” —, que tem apelo
econômico apesar dos entraves registrais e urbanísticos e que, portanto,
não pode ser desprezado na partilha patrimonial.
Contudo, certo é
que, para além de reconhecer que caberá a cada divorciando 50% dos
direitos econômicos sobre a posse, muito pouco pode fazer o juiz para
efetivamente partilhá-lo, já que impossível sua condução à hasta
pública, considerando a existência jurídica fantasmagórica do bem. Vale
dizer: em não havendo acordo sobre a forma de acomodar a partilha, não
há procedimento jurisdicional que assegure o adequado e efetivo
resguardo dos direitos em debate.
Em casos tais, portanto, fica evidente a relevância da educação em direitos, justamente para desfetichizar
a relação que o assistido mantém com o Direito, conscientizando-o de
que a melhor solução para seu caso em muitas hipóteses dependerá mais de
seu empenho, criatividade e disposição para o diálogo com a outra parte
que da intervenção jurisdicional.
Nesse momento, é também
fundamental perceber que, não obstante abordemos, muitas vezes, a
solução extrajudicial de litígios, temos diagnosticado em nosso
cotidiano que, invariavelmente, o que há é um conflito meramente
potencial e latente decorrente da insegurança das partes a respeito do
que seria ou não “o certo” a fazer. Ou seja, em razão da erosão de
antigos lugares de autoridade — que é a marca de nossos tempos
pós-modernos —, à falta do padre e de outros árbitros ou mediadores, ao
cidadão resta buscar no Direito uma referência primeira e última do que
vem a ser justo para a solução de suas questões, muitas vezes sem que
haja, propriamente, um conflito arraigado. Diante dessa realidade, não
raro é que a simples orientação acerca do que são as possíveis respostas
jurídicas à questão seja suficiente ao desfazimento das dúvidas e
restabelecimento da paz social. Ao reverso, a pronta investida judicial
em situação como a aventada conduz, muitas vezes, à eclosão de um
litígio que até então era apenas potencial.
É imperioso perceber,
portanto, que o investimento no manejo conjunto e harmonizado desses
dois princípios institucionais propulsores — educação em direitos e
solução extrajudicial de conflitos — é fundamental para que o cidadão
assistido possa emancipar-se da posição passiva de “objeto de decisão”
para assumir o protagonismo nos processos de solução de seus conflitos, o
que é mais condizente com as premissas democráticas que têm por
objetivo conduzir o cidadão a uma autonomia jurídica e política – que se
traduz em cidadania, em última análise. Além de incentivar o
engajamento do cidadão na solução ativa de suas controvérsias,
concorrendo para sua emancipação, os esforços destacados contribuem para
mitigar a frustração com os efeitos de decisões terceirizadas ao
Judiciário.
Desse modo, observa-se um incremento de efetividade no que
tange às soluções encontradas a partir da autocomposição e, na mesma
medida, uma redução dos processos de transferência da responsabilidade
pelo insucesso da pretensão aos atores do sistema de justiça —
terceirização de responsabilidades. Enfim, na medida em que
participa ativamente dos processos de busca pela solução de suas
controvérsias, tornando-se agente de decisão, o cidadão passa a se
responsabilizar por seu destino, com o que se observa o início da
reversão de um processo histórico de alienação e paternalismo, conforme
enfatizamos noutra oportunidade[4].
Portanto,
o que concluímos é que a atuação da Defensoria Pública pautada pela
educação em direitos e fomento a soluções alternativas de conflitos
assegura à população assistida efetivo acesso à justiça — e não só ao
Judiciário —, propiciando soluções mais adequadas à realidade concreta
vivenciada pela maior parte dos brasileiros. De outro lado, acreditamos
que as percepções e construções jurídicas que decorrem deste trabalho
cotidiano não devem ser negligenciadas, eis que em muito podem
contribuir para a construção de um direito que seja verdadeiramente “das
famílias”, objetivo que deve pautar o discurso e o agir institucional,
especialmente porque apto a beneficiar significativa parcela de nossa
demanda e grande parte da população brasileira, como frisado.
[1] “Ou seja, por se tratar de ser de(em) cultura, o sujeito somente se desenvolve e identifica em suas relações com seus outros,
as quais o acompanham do nascimento à morte, podendo-se afirmar que os
fatos e problemas relevantes nesse percurso relacional são, em boa
parte, objeto do Direito das Famílias. E, se nem todos têm questões
patrimoniais que dependam da intervenção judicial ou do recurso ao
Direito para serem resolvidas, fato é que, desde o nascimento, todos
têm, em igual medida, relações que reclamam formalização de importância
jurídica, inclusive para que possam existir perante o ordenamento.”
(GODOY, Arion Escorsin de; COSTA, Domingos Barroso da. A atuação
da Defensoria Pública, enquanto instituição de transformação subjetiva,
social e política a partir do direito das famílias. In:
Rosa, Conrado Paulino da; Thomé, Liane Maria Busnello (Orgs.). O papel
de cada um nos conflitos familiares e sucessórios. Porto Alegre:
IBDFAM/RS, 2014. p. 16)
[2] Sobre nosso espaço de construção de cidadania, interessante registrar comentário feito pela Professora Vera Regina Veiga França, em banca de qualificação de mestrado na Faculdade de Comunicação da UFRGS à qual assistimos. Segundo a professora, em recordação mais ou menos precisa de seus dizeres: “a Defensoria Pública seria como um banquinho, em que sobe o cidadão para falar e ser ouvido, na enunciação de sua cidadania”.
[3] Disponível em: http://manualdasfamilias.editorasaojeronimo.com.br/
[4] COSTA, Domingos Barroso da; GODOY, Arion Escorsin de. Educação em direitos e Defensoria Pública: cidadania, democracia e atuação nos processos de transformação política, social e subjetiva. Curitiba: Juruá, 2014.
[2] Sobre nosso espaço de construção de cidadania, interessante registrar comentário feito pela Professora Vera Regina Veiga França, em banca de qualificação de mestrado na Faculdade de Comunicação da UFRGS à qual assistimos. Segundo a professora, em recordação mais ou menos precisa de seus dizeres: “a Defensoria Pública seria como um banquinho, em que sobe o cidadão para falar e ser ouvido, na enunciação de sua cidadania”.
[3] Disponível em: http://manualdasfamilias.editorasaojeronimo.com.br/
[4] COSTA, Domingos Barroso da; GODOY, Arion Escorsin de. Educação em direitos e Defensoria Pública: cidadania, democracia e atuação nos processos de transformação política, social e subjetiva. Curitiba: Juruá, 2014.
Por Domingos Barroso da Costa é defensor público no Rio Grande do Sul, especialista em Criminologia e Direito Público e mestre em Psicologia pela PUC-MG.
Arion Escorsin de Godoy é
defensor público no Rio Grande do Sul. Especialista em Direito
Urbanístico e mestre em Direito Ambiental, é autor de “Conflitos
Habitacionais Urbanos: Atuação e Mediação Jurídico-Política da
Defensoria Pública”
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