segunda-feira, 28 de maio de 2018

O papel da Corte Permanente de Arbitragem da Haia na resolução de controvérsias

Ponto de vista
Devido ao fluxo de investimentos diretos feitos no Brasil, o governo brasileiro inovou e elaborou um novo instrumento denominado de Acordo de Cooperação de Facilitação de Investimento (ACFI), com a finalidade de criar seu sistema próprio para gerir o fluxo de capital estrangeiro.
Os primeiros acordos foram assinados há pouco mais de três anos, e seus desdobramentos e efeitos ainda são alvo de comentários devido à importância desses investimentos, não apenas para a economia nacional, mas também para a internacional. Os primogênitos foram os ACFIs assinados pelo Brasil com Moçambique[1] e Angola[2], que trazem as seguintes peculiaridades, em comparação aos conhecidos Acordos Bilaterais de Investimentos (BITs).
A primeira diz respeito à presença de dispositivos similares àqueles tradicionalmente existentes nos BITs, tais como a cláusula da nação mais favorecida, o tratamento nacional e as regras sobre expropriação e indenização devida. A segunda foi a inserção de previsões novas, não encontradas nos BITs, como a previsão de um Comitê Conjunto e de Pontos Focais, como os mecanismos existentes para a solução de conflitos no âmbito da constituição da União Europeia. A terceira diferença é atinente à omissão de algumas regras geralmente encontradas nos BITs, como o tratamento justo e equitativo e a solução de controvérsias investidor-Estado[3].
A previsão expressa da cláusula da nação mais favorecida implica a proibição de que o Estado receptor de investimentos ofereça ao investidor estrangeiro um tratamento menos benéfico do que aquele proporcionado aos seus investidores nacionais.
Essa cláusula é amplamente conhecida por aqueles que atuam na esfera dos acordos de investimentos internacionais, pois é decorrente do princípio da não discriminação entre nações. Essa garantia visa o compromisso do Estado em não tratar o investidor estrangeiro de modo discriminatório, seja com relação aos investidores nacionais do Estado que está recebendo os investimentos, seja com relação a investidores estrangeiros provenientes de um terceiro Estado.
Ademais, os modelos de ACFIs contam com outro mecanismo de proteção, a saber, um Comitê Conjunto incumbido de monitorar as disposições dos acordos, o compromisso de não tratar os investidores estrangeiros de modo discriminatório, e uma adequada indenização em caso de expropriação direta. Destarte, verifica-se que existe um corpo controlador que visa assegurar que as garantias previstas por esse novo modelo de acordo de investimento sejam eficazes.
Por exemplo, o ACFI firmado entre o Brasil e z República de Maláui[4], assinado em 13 de setembro de 2016, em seu artigo 8°, inciso 2, alínea “c”, o qual versa acerca da mitigação de riscos e prevenção de controvérsias, prevê que “nenhuma Parte, em conformidade com seu ordenamento jurídico, expropriará ou nacionalizará diretamente um investimento coberto por este acordo, salvo que seja mediante pagamento de efetiva indenização, de acordo com os parágrafos 4 a 6”.
Além da previsão quanto ao pagamento de indenização, o acordo em comento ainda prevê que, “se o valor justo de mercado for definido em uma moeda que não é internacionalmente conversível, a compensação a ser paga não deve ser inferior ao valor de mercado na data da expropriação, acrescido de juros e, se aplicável, correção monetária, acumulada desde a data da expropriação até a data do pagamento, de acordo com a legislação da parte anfitriã”. Desse modo, verifica-se a tentativa de blindar os investidores estrangeiros, das mais abrangentes formas possíveis, para a efetividade da consecução do objeto dos ACFIs.
Contudo, os modelos de ACFIs não fazem menção ao princípio do tratamento justo e equitativo nem a uma adequada indenização em caso de expropriação indireta. No que tange o referido princípio, os ACFIs são omissos à sua aplicabilidade, o que pode ter consequências negativas, sobretudo se considerarmos que não há unanimidade no sentido de que o tratamento justo e equitativo seja uma regra de direito costumeiro internacional. Assim, para ter aplicação, a cláusula deve constar expressamente no acordo. A importância dessa previsão no texto dos ACFIs decorre principalmente de sua capacidade de balancear os distintos interesses envolvidos, sejam dos investidores estrangeiros ou dos Estados receptores de investimento[5].
Ademais, cumpre informar que a inovação presente nos modelos de ACFI é nítida, tendo esse modelo influenciado, inclusive, na elaboração do Protocolo de Cooperação e Facilitação de Investimentos (PCFI) entre os países do Mercosul[6]. Um documento inédito, que foi assinado em 7 de abril de 2017, com o intuito de oxigenar o bloco sul-americano depois de anos de marasmo[7].
No que se refere à resolução de controvérsias, antes de levar eventual litígio à arbitragem, é necessário exaurir todas as medidas disponíveis de prevenção de disputas. Em caso de insucesso, as partes devem proferir declaração conjunta escolhendo o procedimento arbitral. Assim, respeita-se o texto constitucional, o que corrobora a autonomia legislativa e a política nacional prestigiadas nos prefácios dos ACFIs.
Nesta toada, analisando os preâmbulos dos acordos firmados com Chile e com Moçambique, verifica-se a preocupação do Brasil com a política nacional de resolução de conflitos. Nota-se:
“O ACFI com o Chile visa a facilitar e promover o investimento mútuo, mediante o estabelecimento de um marco de tratamento para os investidores e seus investimentos, e de governança institucional para a cooperação, assim como de mecanismos de prevenção e solução de controvérsias”.
“O ACFI assinado com Moçambique representa um novo modelo de acordo, que busca incentivar o investimento recíproco através de mecanismo de diálogo intergovernamental, apoiando empresas em processo de internacionalização. Por meio do ACFI, haverá maior divulgação de oportunidades de negócios, intercâmbio de informações sobre marcos regulatórios e mecanismo adequado de prevenção e, eventualmente, solução de controvérsias. O novo modelo propicia um quadro sólido para os investimentos de parte a parte”.
Portanto, é possível extrair desses prefácios um equilíbrio vital entre os direitos dos investidores estrangeiros e os interesses dos países receptores, passando a efetivamente considerar o verdadeiro objetivo dos países quando ingressam nesse tipo de relação, isto é, o desenvolvimento econômico.
A atuação dos Comitês Conjuntos e Pontos Focais incita a parceria estratégica entre as partes e cria estruturas de diálogo técnico e iniciativas governamentais, também expressos no preâmbulo dos ACFIs. O mecanismo de solução de disputas adotado por esses acordos se adéqua aos objetivos buscados, expressos em seus preâmbulos. Assim, o método de resolução de disputas dos acordos corrobora com o objetivo de cooperação e facilitação de investimentos.
No que se refere à arbitragem, especificamente, em uma minuciosa análise aos ACFIs firmados pelo Brasil, a redação deixa muito a desejar. As cláusulas são muito simples do ponto de vista técnico, e algumas nem sequer mencionam a possibilidade de os Estados submeterem o litígio a um tribunal arbitral.
Contudo, caso não se alcance nenhum resultado favorável para as partes do ACFI, há alusão à arbitragem apenas entre os Estados, como uma alternativa para a resolução de conflitos. Porém, o acesso à arbitragem só pode ser pleiteado depois que um procedimento de consulta e negociação pelo Comitê Conjunto reste frustrado.
Tão somente depois de findo o procedimento iniciado frente ao Comitê Conjunto é que as partes gozam de autonomia para ingressar em um procedimento arbitral entre Estados. No entanto, segundo os ACFIs assinados com Angola, Maláui e Moçambique, tal mecanismo deve ser desenvolvido pelo Comitê Conjunto, não fazendo nenhum tipo de alusão à arbitragem. De forma distinta, os ACFIs assinados com Chile, Colômbia e México[8] contêm um mecanismo básico de arbitragem, que inclui regras para a nomeação do tribunal arbitral.
As cláusulas dos ACFIs que permitem a instauração de procedimentos arbitrais são muito simples e genéricas, e não nomeiam nenhuma instituição arbitral, com a finalidade de administrar os procedimentos. Isso não é recorrente apenas nos ACFIs, mas também em outros acordos firmados com o governo brasileiro, dos mais diversos tipos, como o Acordo de Sede firmando com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha[9], o Protocolo Adicional ao Acordo de Complementação Econômica firmado com o México[10], o Acordo de Sede firmado com o Tribunal Penal Internacional[11] e o Acordo de Sede firmado com a Organização dos Estados Americanos[12], entre outros.
Em momento oportuno, os Estados irão se deparar com problemáticas para solucionar quais serão as regras adequadas para a condução do procedimento arbitral, uma vez que não há previsão nesse sentido nas cláusulas de resolução de disputas inseridas nos ACFIs em comento.
Nesse sentido, vale a pena trazer à tona o Acordo de Sede firmado entre o governo brasileiro e a Corte Permanente de Arbitragem da Haia (CPA), assinado em agosto de 2017, como meio de preencher algumas lacunas existentes em ditas cláusulas. O Acordo de Sede tem como objetivo tornar os serviços da CPA mais acessíveis pelo mundo, não se limitando à sua sede no Palácio da Paz, na Haia.
Por meio do Acordo de Sede, o país de sede e a CPA estabelecem um quadro jurídico através do qual os procedimentos da CPA (incluindo arbitragem, conciliação, mediação e comissões de inquérito) podem ser conduzidos no território do país de sede em uma base ad hoc, usufruindo de condições parecidas àquelas garantidas pelo Acordo de Sede assinado entre a CPA e os Países Baixos[13].
Nesta senda, frisa-se o papel fundamental que a CPA tem desempenhado na resolução de disputas internacionais há mais de cem anos, sendo a sua principal atividade a administração de arbitragens decorrentes de acordos bilaterais e multilaterais de investimentos.
expertise dessa instituição é notória mundialmente, uma vez que já administrou casos de extrema relevância dessa matéria, como Philip Morris v. Austrália[14], decorrente do BIT firmando entre Hong King e Austrália, Railway Land Arbitration[15], entre a Malásia e Singapura, e outros que podem ser consultados em sua base de dados[16].
Nesses meandros, em 1992, a CPA redigiu o corpo de Regras Opcionais para Arbitragem, envolvendo especificamente dois Estados. Tais regras foram elaboradas para uso na arbitragem de disputas decorrentes de tratados ou outros acordos entre dois ou mais Estados. Um aspecto muito interessante é que os Estados possuem total autonomia para delinear as previsões de referidas regras a seu gozo, para uso em conexão com tratados bilaterais e multilaterais de investimento.
As regras se baseiam nas Regras de Arbitragem da Uncitral, propiciando a condução de procedimentos arbitrais justos e efetivos para solução pacífica de disputas entre Estados atinentes à interpretação, aplicação e execução de tratados e outros acordos[17]. Um dos motivos que levou a CPA a redigir as Regras Opcionais foi o desígnio de fornecer procedimentos justos e eficazes para a resolução pacífica de litígios entre Estados, embora tenham sido originalmente concebidas para arbitragem comercial[18].
É certamente uma qualidade que chama atenção a possibilidade de as partes adequarem as regras conforme a necessidade verificada no caso concreto, tendo como base uma instituição especializada em administrar conflitos semelhantes aos que possivelmente se desentranharão dos referidos acordos em análise.
Após as breves considerações feitas pelo presente artigo, é compreensível afirmar que a tendência de resistência à adjudicação dos litígios por parte do Estado será menor, em comparação aos litígios oriundos dos BITs, especificamente relembrando a década de 1990[19].
Assim sendo, espera-se que eventuais controvérsias não sejam convertidas em um contencioso entre Estados, visando evitar que a parte privada investidora fique à mercê dos interesses e aos tempos diferenciados dos Estados.
Além disso, o fato de existir um Acordo de Sede firmado entre o Brasil e a CPA é um indicativo de que a arbitragem decorrente de investimentos estrangeiros encontra amparo em uma instituição com expertiseinternacional, que poderá contribuir para a resolução de controvérsias dentro do território brasileiro, através de seus serviços, inclusive possibilitando a adequação das regras conforme demanda e interesse das partes.
Desse modo, diante do exposto, pode-se concluir que o Brasil definitivamente deu um passo a frente no que tange a regulamentação dos investimentos estrangeiros, e se espera que esse novo modelo desenvolvido nacionalmente tenha grande eficácia, não apenas no que tange à resolução de conflitos, mas também na consecução das políticas nacionais de desenvolvimento.

[1] Assinado em 30/3/2015. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/notas-a-imprensa/8511-acordo-brasil-mocambique-de-cooperacao-e-facilitacao-de-investimentos-acfi-maputo-30-de-marco-de-2015.
[2] Assinado em 1/4/2015. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/notas-a-imprensa/8520-acordo-brasil-angola-de-cooperacao-e-facilitacao-de-investimentos-acfi-luanda-1-de-abril-de-2015#acord-invest.
[3] FERNANDES, Érika Capella, FIORATI, Jete Jane. Os ACFIs e os BITs assinados pelo Brasil – Uma análise comparada. RIL Brasília, a 52, n° 208, out/dez 2015. p. 247-276.
Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/517706/001055994.pdf?sequence=1. Acesso em 24/4/2017.
[4] Assinado em 13/9/2019. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=F2EF620954A0864C6D1BFEA18C8EDE6C.proposicoesWebExterno1?codteor=1503541&filename=Avulso+-PDC+438/2016.
[5] VASCIANNIE, Stephen. The fair and equitable treatment standard in investment law and practice. British Yearbook of International Law, v. 70, n. 1, 2000. p. 99-164.
[6] Os países integrantes do bloco econômico são: Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Venezuela.
[7] https://www.comexdobrasil.com/mercosul-assina-em-buenos-aires-protocolo-de-cooperacao-e-facilitacao-de-investimentos/.
[8] Os ACFIs Brasil-Chile (artigo 25), Brasil-Colômbia (artigo 23.1) e Brasil-México (artigo 19.1) estabelecem que “qualquer das Partes” pode submeter à arbitragem internacional um conflito que não tenha sido resolvido pelo Comitê Conjunto.
[9] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/anexo/and360-91.pdf.
[10] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/decreto/D5953.htm.
[11] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Decreto/D8604.htm.
[12] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D1111.htm.
[13] https://pca-cpa.org/wp-content/uploads/sites/175/2017/08/Comunicado-de-imprensa-de-30-de-agosto-de-2017.pdf.
[14] https://www.pcacases.com/web/view/5.
[15] https://www.pcacases.com/web/view/56.
[16] https://www.pcacases.com/web/allcases/.
[17] https://pca-cpa.org/wp-content/uploads/sites/175/2016/01/Optional-Rules-for-Arbitrating-Disputes-between-Two-Parties-of-Which-Only-One-is-a-State-1993.pdf.
[18] http://unctad.org/en/docs/edmmisc232add26_en.pdf.
[19] Segundo a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), ao longo da década de 1990, houve uma proliferação do número de BITs firmados mundialmente, que somam hoje mais de 2.500. Segundo informações do Itamaraty, o aumento de acordos verificados nesse período estimulou diversas análises críticas sobre as limitações dos BITs, incluindo: restrições à liberdade regulatória e à capacidade dos Estados de adotarem políticas públicas voltadas para o desenvolvimento e infraestrutura, bem como solução de controvérsias; tratamento mais favorável do investidor estrangeiro em relação ao investidor nacional; elevado custo econômico e político dos procedimentos arbitrais; imposição aos Estados de onerosas indenizações; e falta de transparência das decisões arbitrais.
Por Lívia Moraes é advogada, ex-assistant legal counsel da PCA (Permanent Court of Arbitration) em Haia (Holanda) e associada do departamento de Arbitragem e Mediação da Braz Gama Monteiro.
Fonte: ConJur

sexta-feira, 25 de maio de 2018

Constelação familiar: solução para violência doméstica no Rio Grande do Sul

Juízes usam método da psicoterapia para solucionar conflitos no interior gaúcho
Na comarca de Parobé, a 70 km de Porto Alegre, a constelação familiar vem sendo empregada desde 2016 para ajudar casais a superar divergências que culminaram em atos de violência

"Vivemos em uma sociedade em que o feminino parece estar em guerra com o masculino". A frase é da juíza de Direito, Lizandra dos Passos, cujo trabalho de conciliação com o uso terapia constelação familiar com casais envolvidos em agressão tem ajudado a reduzir os casos de violência doméstica no interior do Rio Grande do Sul.
A constelação familiar – psicoterapia desenvolvida pelo alemão Bert Hellinger que investiga as relações interpessoais das pessoas em sua família – tem sido usada por magistrados na solução de conflitos levados à Justiça e na ressocialização de detentos.

Na comarca de Parobé, cidade com 55 mil habitantes localizada a 70 quilômetros de Porto Alegre, a constelação familiar vem sendo empregada desde o fim de 2016 para ajudar casais a superar divergências que culminaram em atos de violência.
Nesse caso, apontado pelo Conselho de Justiça Federal como uma das boas práticas da Justiça Estadual brasileira, as sessões de conciliação entre casais têm ocorrido em novo formato da aplicação da constelação familiar.

Conter a escalada de violência 

A juíza Lizandra dos Passos e as psicólogas Candice Schmidt e Cristiane Pan Nys alteraram o modelo usual da terapia coletiva e formaram grupos mistos de homens e mulheres nos quais as vítimas são separadas dos agressores em agrupamentos distintos e com sessões de terapia feitas em separado.
Com isso, homens e mulheres passaram a ver nuances do problema que enfrentavam, mas da perspectiva de um terceiro, ajudando nesse processo a identificar padrões de comportamento que levam à agressão, bem como o histórico de violência doméstica observado na própria família. 
Assim, por exemplo, um determinado agressor passava a vivenciar a experiência de uma vítima, se solidarizando com ela e passando a perceber seu papel de algoz. E esse tipo de experiência, conta a juíza Lizandra dos Passos, tem ajudado a apaziguar os ânimos, abrindo espaço para a ponderação e a retomada dos relacionamentos.
“Nas sessões de constelação,  muitas vezes os participantes conseguem identificar, em seu sistema familiar, o emaranhado que define o seu comportamento agressivo”, diz a juíza. “Esse tem sido um trabalho cuidadoso, minucioso e muito positivo na mudança de postura dos homens e, também,  de ajuda para que as mulheres saiam da condição de vítima”, acrescenta Lizandra dos Passos.
 A juíza diz que quando chegou em Parobé havia uma escalada de violência e, muitas vezes, a mulher agredida não denunciava. “Ao mesmo tempo, víamos homens com comportamento de vítimas e mulheres com comportamento de agressoras e ambos com posturas infantilizadas. E começamos a usar a constelação familiar para fazer com que esses casais identificassem onde estavam os padrões que os levavam a esses comportamentos”, disse.
De acordo com ela, desde que a psicoterapia vem sendo usada nos casos de violência doméstica em Parobé, houve redução de 94% na reincidência das agressões entre homens e mulheres. Segundo Lizandra dos Passos, trata-se de uma mudança de cultura que busca reconciliar os universos feminino e masculino.
Por Por Luciana Otoni
Fonte: Agência CNJ de Notícias

quinta-feira, 24 de maio de 2018

Árbitro também se submete a precedente vinculante, diz Teresa Arruda Alvim


Para Teresa Arruda Alvim, árbitro não cria Direito, ao contrário do magistrado estatal.

Elemento do Direito 
O argumento de que árbitros podem interpretar as normas como bem entenderem, sem se importar com decisões de tribunais, não se sustenta. Eles se submetem a todo o Direito — não só à lei, como também à doutrina e à jurisprudência, inclusive a precedentes vinculantes.
É o que afirmou a professora da PUC-SP Teresa Arruda Alvim, nesta quinta-feira (24/5), no II Congresso de Processo Civil, promovido pelo Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem no Rio de Janeiro. 
“Se as partes [de um contrato] se submetem ao Direito brasileiro [para resolver suas contróversias em uma arbitragem], o próprio diz que há precedentes vinculantes. Direito brasileiro não é a lei. É a lei interpretada pelos tribunais”, destacou.
A processualista ressaltou que o árbitro pode afastar posições jurisprudenciais, desde que fundamente por que o entendimento não se aplica no caso. No entanto, o julgador não pode contrariar um precedente se ele for vinculante, declarou. A prática, segundo ela, seria “desrespeito ao contrato que escolheu a arbitragem”.
De acordo com a professora da PUC-SP, o árbitro exerce jurisdição, já que ele soluciona uma disputa. Contudo, ele não cria Direito, como o faz o magistrado estatal. Outra diferença entre os julgadores, segundo Teresa Arruda Alvim, é que os poderes do árbitro se restringem ao contrato em questão, enquanto os do juiz têm alcance social.
Segundo a Lei de Arbitragem (Lei 9.307/1996), é obrigatório que sentenças arbitrais apresentem os fundamentos da decisão. E, conforme o novo Código de Processo Civil, não se considera fundamentada decisão que deixa de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, por exemplo.

Por Sérgio Rodas
Fonte: ConJur

terça-feira, 15 de maio de 2018

Escritórios devem aposentar grupos contenciosos e criar setores resolutivos

Ponto de vista
A advocacia tem acompanhado, e com muita frequência protagonizado, as muitas mudanças da sociedade brasileira. O mesmo pode ser afirmado quanto ao movimento de consensualização do sistema de Justiça. A realidade do advogado contencioso no Poder Judiciário tem passado por mudanças significativas.

Em 2006, no início do CNJ e seu movimento pela conciliação, a advocacia pública na alegada defesa de órgãos públicos mostrava-se marcantemente avessa às soluções consensuadas, e a advocacia privada apresentava suas resistências iniciais (por exemplo, o receio de transmitir-se imagem de fragilidade, pois equivocadamente considerava-se que buscava acordo apenas quem tinha dúvidas quanto ao seu êxito em uma demanda). Todavia, essa mudança de postura e da prática da advocacia mostram-se patentes: atualmente, a tendência do campo profissional dos artífices de Direito mostra uma valorização maior do advogado que consegue trazer racionalidade, objetividade e criar valor para o cliente no processo de resolução de disputas.

Por outro lado, escritórios de grande porte dividem suas atuações em setores ou grupos especializados em empresarial, tributário, trabalhista, imobiliário e... contencioso. Parte-se da premissa de que esse setor se direciona a auxiliar clientes a litigarem seus conflitos. Todavia, uma prática contenciosa diante de um sistema público de resolução de disputas voltado cada vez mais a soluções consensuais mostra-se, no mínimo, anacrônico.

A interação de um advogado contencioso com o cliente, consiste, em boa parte, em avaliar se há alguma probabilidade de a perspectiva do cliente ser defensável e conceber uma estratégia jurídica a partir da qual o causídico passará a defender seu cliente. Essa prática produz um viés cognitivo no advogado de querer ver o quanto o seu cliente está correto na disputa. Não por outro motivo, em algumas práticas de resolução de disputas empresariais, quando um mediador questiona separadamente aos advogados acerca de suas probabilidades de êxito, a soma dos percentuais apresentados raramente é menor que 170% — quando, ao menos matematicamente, se houvesse avaliações precisas e distanciadas de paixões, a soma deveria necessariamente ser 100%.

Por um lado, ter um advogado que se engaja na causa de seu cliente mostra-se importante para o litígio — afinal, ninguém quer um defensor incrédulo, fraco ou desmotivado. Por outro lado, ter um advogado que o faz de forma a perder a sensibilidade quanto à real probabilidade de êxito faz com que se percam oportunidades de negociação, e com isso geram-se perdas pecuniárias.

A título de exemplo, um advogado que acredita que possui 90% de chance de êxito em uma demanda na qual poderá receber R$ 1 milhão, em uma negociação, como sugere a teoria própria a esse respeito[1], deve fechar um acordo igual ou superior a R$ 900 mil. Todavia, se essa avaliação estiver equivocada e sua real probabilidade de êxito seguindo parâmetros descritivos de litígios semelhantes for de 30%, uma proposta da parte contrária de R$ 400 mil mostra-se, de fato, uma ótima proposta. Assim, corre-se o risco de incorrer-se não apenas em perdas de oportunidades, mas também em prejuízos financeiros.

O erro de aferição e a escolha equivocada de estratégia profissional, por ora (e esperamos, por pouco tempo), não se mostra tão relevante no Direito como é em outras profissões. Considere-se a situação de um oncologista que se equivoca na escolha de tratamento de um paciente em razão da avaliação incorreta acerca da probabilidade de êxito do tratamento optado. A falta de conformidade com protocolos médicos consolidados e seu desconhecimento de índices seguros de probabilidade de êxito dos tratamentos expõe o médico a maiores probabilidades de ser civilmente responsabilizado por esse erro.

Ademais, não apenas deve o advogado produzir uma aferição segura e isenta — nem que para tanto tenha que contratar um avaliador neutro — como também oferecer, diante de uma disputa em concreto, um rol de procedimentos possíveis para resolver de forma objetiva e eficiente o conflito. Atualmente, é possível, entre muitas outras práticas, negociar, mediar, ter um avaliador neutro, facilitar negociações, arbitrar e, naturalmente, contender ou litigar. Todavia, indicar que o grupo ou setor em um escritório de advocacia responsável por gerenciar esse rol de escolhas procedimentais denomina-se "grupo contencioso" soa tão inapropriado no século XXI como chamar dentistas de "tira-dentes". Advogados que lidam bem com disputas são muito mais que isso... E criam para os clientes muito mais valor do que apenas permitindo que demandas permaneçam em juízo por anos.

Escritórios de advocacia precisam alterar suas atividades contenciosas substituindo-as pelo que se denominou[2] de advocacia resolutiva: aquela baseada em análises objetivas de probabilidade de êxito, identificação apropriada de interesses reais das partes, criação de valor em razão de abordagens integrativas, auxílio com a escolha procedimental adequada baseada em critérios objetivos referentes aos diversos processos de resolução de disputas e apoio às partes no desenvolvimento de competências emocionais que permitam o distanciamento de escolhas baseadas em paixões ou posições irracionais.

Como uma das muitas ferramentas desta nova prática da advocacia, cite-se o exemplo da elaboração pelo advogado de uma árvore de decisões. Por essa ferramenta, o advogado examina as diversas variáveis que influenciarão diretamente no resultado da disputa, atribui um percentual de êxito à causa, que, multiplicado pelo valor pretendido inicialmente, delimita a zona de possível acordo, ou seja, o intervalo economicamente interessante para as partes chegarem ao consenso[3].

Ao utilizar tal ferramenta, o advogado apresenta ao seu cliente, de maneira técnica e precisa, as vantagens do uso de cada meio de resolução de disputas — com a monetização esperada de sua utilização. A título de exemplo, uma avaliação objetiva feita pelo advogado (ou por um avaliador neutro) de que o cliente possui 50% de probabilidade de lograr uma condenação da parte adversa em R$ 100 mil; 30% de probabilidade de lograr R$ 50 mil; e 20% de probabilidade de não obter qualquer êxito gera uma base de negociação de R$ 65 mil (R$ 50 mil + R$ 15 mil + R$ 0). Cabe, ao advogado resolutivo, consultar seu cliente acerca de a possibilidade de sua relação com a outra parte ser reestruturada de forma a se criar (ou gerar) valor e com isso buscar-se um acordo acima do patamar sugerido pela análise probabilística de resultados esperados da demanda. Assim, o papel do advogado resolutivo consiste em apresentar ao seu cliente, objetivamente, o benefício econômico que a resolução da disputa não litigiosa pode lhe trazer, e o risco inerente à utilização de formas judicatórias para, ao final, decidirem em conjunto quanto a sua viabilidade.

Nessa atuação, a prática de inflacionar-se a probabilidade de vitória de um cliente em uma demanda passa a significar retirar dele a oportunidade de ganhos decorrentes do controle quanto ao resultado, da economia de tempo na resolução da disputa, de se criar valor em negociações diretas e, finalmente, mantendo-se o cliente em um patamar de eficiência reduzida de resolução de disputas.

Apesar de no Brasil apenas 11,9% das sentenças e decisões proferidas no Poder Judiciário em 2016 terem sido homologatórias de acordo[4], não há como fugir do nítido movimento de que aos poucos, diante dos benefícios da advocacia resolutiva — principalmente econômicos e tempo de duração do processo —, o mercado vai exigir que os escritórios extingam o setor denominado contencioso, onde ajuizar ações e contestá-las é uma prioridade, para criar o setor resolutivo, onde o advogado deverá saber quando usar o chapéu de litigante e quando usar o de solucionador[5] em razão de critérios objetivos e quantificáveis.

Como indicava Lewis Carroll, “quando não se sabe para onde se está indo, qualquer caminho o levará ao seu destino”. Este, por muitos anos, foi um ótimo adágio para o litígio: segue-se este caminho por não se saber para onde se está indo. Por outro lado, como sugere o professor Michael Wheeler, rigor analítico é fundamental para sucesso da negociação ou na resolução de disputas[6]. Com isso, surgem não apenas diversas formas de economizar tempo e gerar valor para clientes, mas também uma forma mais inteligente de se advogar: a advocacia resolutiva.

[1] RAIFFA, Howard, Lectures in Negotiation Analysis, Cambridge, MA: PON Books, 1996. [2] V. GOMMA DE AZEVEDO, André. Pedagogia de competências como paradigma do processo formativo em negociação: uma proposta a partir da experiência da oficina de negociação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Brasília: Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, 2018. 305p. (Tese, Doutorado em Direito) e GOMMA DE AZEVEDO, André (Org.) Manual de Mediação Judicial. 7ª Ed. Brasília: Ed. Grupos de Pesquisa, 2018. [3] SENGER, Jeffrey, Federal Dispute Resolution: Using ADR with the United States Government 80, 113-15, 2004. [4] http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/12/9d7f990a5ea5e55f6d32e64c96f0645d.pdf, fls. 125. [5] MACFARLANE, Julie, The New Lawyer: How Settlement is Transforming The Practice of Law, Vancouver: UBC Press 2008, page 119. [6] WHEELER, Michael, Negotiation Analysis: an introduction, Cambridge, MA: Harvard Business School paper, 9-801-156, 2000.

Arnoldo de Paula Wald é advogado.
André Gomma de Azevedo é juiz de Direito (TJ-BA) e professor-adjunto do programa de mestrado em Resolução de Disputas do Straus Institute for Dispute Resolution da Universidade de Pepperdine, em Malibu (Califórnia - EUA).
Fonte: ConJur

quinta-feira, 10 de maio de 2018

Cade age bem ao insistir na solução arbitral para caso entre particulares

Ponto de vista
A arbitragem tem sido cada vez mais utilizada na solução de controvérsias empresariais. A dinâmica atual das relações e operações comerciais não mais permite a utilização da via tradicional do Poder Judiciário para a solução de conflitos cada dia mais complexos. Dentre tais conflitos, destacam-se as questões relacionadas ao direito da concorrência.

Os atos de concentração entre empresas (por exemplo, fusões, incorporações e aquisições, dentre outros) que se enquadrem nas hipóteses previstas no artigo 88 da Lei 12.529/2011 devem ser notificados ao Cade para que sejam analisados os aspectos concorrenciais da operação e o seu impacto no mercado.

No desempenho de sua competência, que aliás deve ser por todos aplaudida, o Cade passou a admitir que as partes envolvidas em determinada operação e o próprio conselho celebrem um Acordo em Controle de Concentração (ACC), cuja finalidade é sanear os problemas que aquela operação acarretaria à livre concorrência e que poderiam inviabilizar a sua aprovação, além de prever as formas de resolução de conflitos entre os particulares envolvidos.

Nessa esteira, em 2014, foi celebrado o primeiro ACC prevendo utilização da arbitragem como método de resolução de conflito privado entre as participantes da operação.

Nesse ACC, referente ao caso Bovespa/Cetip, se previu que, caso não se chegasse a um acordo em 90 dias sobre o preço cobrado pela, hoje, B3 aos entrantes no mercado, um procedimento arbitral, administrado pelo CAM-CCBC, deveria ser instaurado para a resolução da questão.

Dentre as vantagens da utilização da arbitragem institucional em questões empresariais complexas, como as relacionadas ao direito da concorrência, inclui-se o tempo até a decisão definitiva, o custo, a previsibilidade dos atos do procedimento e a especialidade do julgador.

Não obstante o louvável esforço dos juízes nacionais, um processo judicial somente alcança a sua decisão definitiva depois de anos, face ao congestionamento existente e os infindáveis recursos previstos em lei. Na arbitragem, a média de duração dos procedimentos é de 17 meses, com decisão irrecorrível.

Ainda mais importante, nas arbitragens os casos são julgados por especialistas na matéria, que dispõem de tempo para uma análise pormenorizada dos fatos e documentos, muitas vezes de caráter estritamente técnico. O magistrado, que, sem dúvida, é uma pessoa brilhante e acima média, tanto que passou em um concurso dificílimo, não tem tempo ou disponibilidade de tratar da mesma forma os milhares de processos sob a sua responsabilidade.

Além disso, uma instituição arbitral tem regulamento próprio, reunindo as melhores práticas para o desenvolvimento do procedimento, oferece uma estrutura administrativa para um rápido fluxo de documentos e, normalmente, dispõe de um hearing center completo e equipado com a mais alta tecnologia, permitindo uma incomparável administração do procedimento.

Muito se critica o custo envolvido na arbitragem. As tabelas de despesas divulgadas pelas instituições arbitrais possibilitam prever com segurança os valores cobrados a título de taxa de administração, honorários dos árbitros e demais eventuais despesas, dando uma primeira impressão de que o custo na condução do procedimento arbitral é gigantesco. O valor de um processo judicial, haja vista o valor cobrado a título de taxa judiciária e o teto normalmente estabelecido, pode parecer mais atrativo do que aquele despendido em uma arbitragem.

No entanto, as custas posteriores, o gasto com advogados, a impossibilidade temporal de se chegar ou mesmo antever a decisão final trazem danos incalculáveis às empresas. O custo-benefício de um procedimento célere e definitivo pende, enormemente, para a arbitragem.

Diante de todas essas vantagens, o Cade agiu bem ao insistir na solução arbitral para as controvérsias entre particulares, oriundas das decisões prolatadas. Jamais em tempo algum se cogita substituir ou suprimir a competência do Cade, mas como os efeitos das decisões concorrenciais afetam partes privadas, que precisariam do Judiciário para resolvê-las, a arbitragem surge como um caminho eficaz, sério e economicamente viável, para trazer às partes afetadas e, em última análise, ao próprio mercado a segurança jurídica por todos almejada.

Por Carlos Forbes é presidente do Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM-CCBC).
Fonte: ConJur

terça-feira, 8 de maio de 2018

"Estado que não negocia soluções não tem perspectiva de se tornar sério"


Neves Amorim [Spacca]Problema de cultura
O Brasil ainda é marcado pela cultura de que é preciso um carimbo do Judiciário para que uma questão se dê por resolvida. Por isso, para que os métodos extrajudiciais se tornem realidade, é preciso que se mude a cultura jurídica do país.

É o que defende José Roberto Neves Amorim, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, doutor em Processo Civil e diretor da Juspro, primeira câmara privada de mediação e conciliação cadastrada no TJ-SP, e diretor da faculdade de Direito da Faap.

Segundo ele, empresas que preferem litigar em juízo são as que não conhecem a mediação. As que optam por soluções alternativas, diz Neves Amorim, ganham duas vezes, por não precisar gastar com indenização e por fidelizar o cliente.

Mas o desafio ainda é o Estado. Para o desembargador, são recentes as leis que autorizam o poder público a negociar, mas o problema ainda é a ideia de que todo acordo feito pelo Estado tem "algo de ruim por trás". "Isso é cultura de um Estado totalmente retrógrado, que não tem perspectiva de ser um Estado sério", diz Neves Amorim, em entrevista à ConJur.

Amorim ingressou na magistratura em 1984 como juiz de Direito e permaneceu na carreira até outubro de 2016, quando antecipou sua aposentadoria. Ele integrou a 2ª Câmara de Direito Privado e o Órgão Especial do TJ-SP. Quando membro do Conselho Nacional de Justiça, foi um dos principais incentivadores e articuladores da criação de políticas públicas para mediação e conciliação dentro do Judiciário. Também já foi coordenador do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemec) e dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadanias (Cejuscs).

Leia a entrevista:
ConJur — O senhor diz que as plataformas tecnológicas são ferramentas importantes para mediação e conciliação online desde que exista a presença humana do mediador. Poderia nos contar um pouco mais sobre essas ferramentas e da legalidade da automatização de alguns processos?
Neves Amorim —
O novo Código de Processo Civil e a Lei de Mediação falam da possibilidade da mediação eletrônica. Não estamos criando uma coisa que não existe, mas dando voz à lei, fazendo com que ela se efetive. O artigo 334 do CPC fala da plataforma eletrônica, da presença pessoal do mediador e do conciliador e da participação dos advogados. São três itens importantes para tudo isso. A plataforma eletrônica é muito importante porque evita deslocamentos, mas ela não é um chat, em que você conversa com uma máquina ou não sabe quem está do outro lado. Ao contrário, ela tem que ser uma mediação a distância, na qual todo mundo saiba quem está participando. Todo mundo está se vendo e todo mundo está participando. Não existe essa ideia de que a mediação vai ser feita sem que você tenha contato com o mediador, ou com a outra parte. Isso não é mediação. Isso pode ser qualquer outra coisa, uma conciliação, uma proposta de acordo, mas não é mediação.
Primeiro temos que dar voz à lei e depois interpretar, dar mecanismos suficientes, como é o mecanismo eletrônico e as câmaras privadas. Por exemplo, no nosso caso aqui da Juspro, temos atendimento presencial, mas o foco é o eletrônico. Temos uma plataforma online em que as pessoas entram e veem o mediador e as partes. O que você pode fazer é essa mediação a distância: uma pessoa em Ribeirão Preto, outra em Porto Alegre e o mediador em São Paulo fazendo a mediação sem problema nenhum.

ConJur — A OAB-RJ criticou essa automatização da mediação e conciliação no TJ-RJ principalmente pela não obrigatoriedade do advogado. É obrigatória a presença de um jurista nas soluções online?
Neves Amorim —
A lei é clara nesse aspecto: tem que participar o advogado, mas só se a parte o trouxer. Não é que tem que ter um advogado lá de plantão o tempo todo para atender. A OAB tem razão nisso: quando a pessoa trouxer o advogado ele tem que participar também.

ConJur — É nisso que a tecnologia pode ajudar?
Neves Amorim —
Exatamente, nas videoconferências. Não chat, o chat não tem nada a ver. No chat você manda uma mensagem por escrito e alguém responde. Isso não é mediação. Pelo menos foge do escopo da lei, porque ela fala que tem que ter a participação efetiva do mediador. Em um chat você não sabe se é o computador que está te respondendo, se as respostas estão prontas. Nós aqui da Juspro recebemos a solicitação, entramos em contato com a outra parte e dizemos para ela: “Olha, estamos solicitando uma mediação. Se você concordar, no dia e hora tal eu vou mandar um link e nós estaremos todos na mesma sala conversando e fazendo a mediação”. Esse é o escopo da lei.

ConJur — E quando programas de computador conseguirem fazer o trabalho de advogados e juízes?
Neves Amorim —
Em algum momento isso vai acontecer. Vamos ter paradigmas colocados no computador em que você vai inserir determinadas hipóteses. Quando for matéria exclusivamente de Direito, sumulada, você vai conseguir. Com a área de família é impossível fazer isso, porque é personalíssimo, precisa olhar, sentir. Cada caso é um caso. Na área de benefícios previdenciários, que é cálculo, pode acabar sendo feito no computador. Vai acabar ajudando o juiz, e a população a conseguir coisas com mais rapidez. Esse é o caminho, não vamos conseguir fugir disso.

ConJur — A dispensa do advogado nos centros judiciários de mediação (Cejusc) prejudica as partes?
Neves Amorim — Não, porque a parte não está obrigada a fazer o acordo. Ela pode ir lá simplesmente para escutar uma proposta e não fazer o acordo, tentar mediar e não chegar onde ela quer. O advogado está lá para dar uma orientação jurídica e tirar uma dúvida, mas, na verdade, ele não é determinante para a mediação. Ele faz parte para dar uma segurança jurídica ao evento, mas a parte é que vai dizer se quer ou não a presença do advogado.

ConJur — Já dá para dizer que a mediação e a conciliação são realidade?
Neves Amorim —
São. O que a mediação representa hoje é um avanço muito grande, mas que ainda é pequeno perto da proporção do que pode ser atingido.

ConJur — Por quê?
Neves Amorim —
 Porque é uma mudança de cultura. Nós ainda queremos ver um processo, ver o juiz decidindo, tudo isso. Não que na mediação não vá ter, já que depois o acordo é feito, ele vira uma ação e o juiz homologa, mas não dá a sentença. É um processo condensado sem a existência de papel, de defesa e do pagamento de custas.

ConJur — Esse sistema já conseguiu desafogar o Judiciário em São Paulo?
Neves Amorim —
Já. De 2012 a 2017 foram feitas 570 mil medicações frutíferas, que resultaram em acordos. Deu mais de 100 mil acordos por mediação por ano. É um número bem razoável. É pequeno perto do que pode crescer, mas tem que haver uma mudança de cultura e isso demora um tempo, porque é uma reeducação. A população tem que ter consciência de que eles não precisam ficar litigando cinco anos para decidir um televisor ou uma conta de R$ 200 que custa para o estado, por ano, R$ 1 mil o processo. Então, se eu discuto dois anos uma conta de R$ 1 mil, eu gastei R$ 2 mil. Ou seja, o estado gasta R$ 2 mil por uma discussão de R$ 200. É uma coisa completamente desproporcional e despropositada.

ConJur — O que vemos na cobertura do dia a dia é que muitas empresas continuam preferindo levar os problemas para a Justiça. Adianta incentivar as mediações nesse caso?
Neves Amorim —
A experiência que eu tenho com a Juspro, que é uma câmara privada, é que as empresas preferem muito mais a mediação. Sai muito mais barata a solução por mediação do que a judicialização, sem pagar advogado, custas e tudo mais. Na Justiça, o processo se arrasta. As empresas não gostam de processos arrastados, porque isso custa muito para elas — prestígio e dinheiro. Para algumas empresas que atendemos, colocamos a cláusula compromissória de mediação no contrato. Elas vêm, o cliente contrata, e a gente fala assim: “Olha, antes de judicializarmos, nós vamos tentar mediar e resolver isso amigavelmente”. O cliente fica muito mais tranquilo. Essa cláusula nos contratos das empresas que vendem consumo, como os magazines, está tendo uma repercussão muito positiva. Empresas que têm rotatividade de consumo, construtoras que têm rescisões de contratos, empresas de planos de saúde. Tudo isso tem ajudado muito a mediação.

ConJur — Qual a margem de resultados para esse tipo de empresa?
Neves Amorim —
A Juspro dá 85% de acordo na parte de consumo. As empresas que preferem litigar não conhecem a mediação. Porque no momento em que elas fizerem um teste, perceberão que a mediação vai funcionar com muito mais rapidez e vai acabar com o problema. Quando elas ajuízam, perdem o cliente. Quando fazem a mediação, fidelizam o cliente. Essa é a grande diferença. As empresas não perceberam isso. Na hora em que ela judicializa, o cara fica com raiva da empresa. “Pô, estou brigando, não consigo, eles dificultam”. Na mediação, você senta na mesa e fala assim: “O que você quer? Quer seu dinheiro? Quer outro televisor?”. Resolve o problema, acabou. O cara fica fiel. É a mesma coisa que você pegar um telefone, ligar para um banco e ele te atender. O teu banco te atende! Você fala “poxa vida, que legal, meu banco me atende!”. A empresa que prefere judicializar não percebeu o quanto ela perde de cliente por conta da animosidade que cria. O cliente não volta mais, vai para outra empresa que faça mediação, que o atenda melhor.

ConJur — O Estado é, de longe, o maior litigante do país. E dentro das ações do Estado, já há alguns anos a execução é o maior problema, em especial a execução fiscal.
Neves Amorim —
Tanto a Lei de Mediação quanto o novo CPC trouxeram uma inovação fantástica, que é permitir ao Estado a mediação e a conciliação. Até 2015, antes do novo CPC e da Lei de Mediação, o Estado não tinha um permissivo legal. Um dos exemplos é que tem um Cejusc da Prefeitura de São Paulo com o TJ. Um monte de ações da prefeitura são processadas lá. Isso é um sucesso muito grande. Existe uma desconfiança no Brasil de que há sempre algo errado ou ruim por trás de qualquer acordo que o poder público faz.

ConJur — Como resolver?
Neves Amorim —
 É só o Estado criar um mecanismo de amarração, como dar um limite de mediação, para evitar essa história de que o Estado faz mediação e beneficia esse ou aquele. Isso é cultura de um Estado totalmente retrógrado, que não tem perspectiva de ser um Estado sério. Por que no Canadá isso se faz há mais de 40 anos? Na Europa é comum mediar conflitos estatais e aqui, não. É um problema de cultura. Ou a gente propõe ao Estado ser sério e consegue fazer as coisas ou então ele fecha as portas para o cidadão. Por que um processo de execução fiscal tem que durar 40 anos? O Estado vai penhorar e o cara já não tem mais nada. A maior demonstração de que o Estado não cuida é quando ele baixa um decreto dizendo o seguinte: “Abaixo de tal valor eu não vou executar mais”. Isso é falência. Ele diz assim, “é tão pequeno que não compensa para mim”. Mas não compensa por quê? Essa execução está há dez anos aí, gente. Percebe? Essa é uma situação de Estado falido.

ConJur — Quando estaremos adaptados à mediação e à conciliação?
Neves Amorim —
Na iniciativa privada, de zero a dez, estamos com nota cinco. Estamos subindo a nota e está indo bem, porque é uma mudança de cultura e o nosso cidadão é meio desconfiado. Por isso que a gente colocou lá na frente a homologação judicial. No final o juiz vai lá e assina. Na Argentina, por exemplo, quando a mediação é feita e é frutífera, o mediador assina, acabou, ponto final. Aqui, não. Precisa da figura do juiz. Um dia quem sabe a gente desmame dessa ideia. Seria o ideal. No fim, o juiz é o fiscal da legalidade do acordo. Ele homologa, pronto, está todo mundo seguro, o Estado botou a mão.

ConJur — E na esfera pública, qual é a nota?
Neves Amorim —
 Em relação ao Estado, a nossa nota é dois, porque ele mesmo resiste. Quando eu estava no tribunal, trabalhamos muito junto com a Prefeitura, preparamos gente aqui no estado de São Paulo da área de meio ambiente e aquelas multas que eram aplicadas por desmatamento foram para a mediação. Termos de ajustamento de conduta, tudo isso pode ser feito.

ConJur — Sobre as câmaras privadas, elas surgem como uma alternativa rápida ao Cejusc. Isso quer dizer que eles já nascem sem dar conta do trabalho?
Neves Amorim —
Na verdade, o poder público tem algumas burocracias que a iniciativa privada não tem. Quando você vai ao Cejusc, tem que sair uma notificação formal para o outro lado ir também. Nós, não. A gente recebe a reclamação, liga, faz as anotações, entra no site e a pessoa põe os dados. A gente liga para a pessoa e o próprio mediador convida ela para vir. Não tem esse formalismo, que é próprio do poder público. No Cejusc, apesar de ser informal, essa burocracia ainda existe. Tem um cartório, tem todo um sistema de controle muito maior. Por isso as câmaras privadas tendem a ser sempre mais rápidas.

ConJur — Alguns tribunais estavam tentando cobrar pela mediação e conciliação.
Neves Amorim —
Na verdade, isso é ilegal. O Estado não pode cobrar. Se for Cejusc, tem de ser gratuito. Aliás, a Lei de Mediação prevê que, se você fizer no Cejusc e já tiver judicializado, o Estado devolve as custas para você. Você judicializa e, se fizer a mediação, te devolve o dinheiro das custas que você pagou. É um incentivo, na verdade.

ConJur — O senhor se aposentou cedo da magistratura e alguns magistrados de São Paulo também têm feito isso. A carreira pode estar se tornando desinteressante?
Neves Amorim —
Não. São focos e anseios pessoais. Não que eu não amasse a magistratura, amei tanto que fiquei 33 anos. É tempo suficiente. Eu vi na mediação uma perspectiva de outra atividade, de poder ajudar o Judiciário de outra forma. Quando você faz uma câmara privada, está ajudando indiretamente as pessoas. A minha intenção sempre foi, como juiz ou depois de ter saído da magistratura, tentar ajudar as pessoas de alguma forma. Como juiz eu ajudava decidindo o mais rápido e da melhor forma possível. Hoje a gente tenta ajudar solucionando conflitos sem aquele ranço da decisão judicial, de criar um vencedor e um vencido. O ideal é pacificar mesmo. A carreira continua atraente, mas a opção de sair antes ou depois é puramente pessoal e de preparação.

ConJur — Não há debandada?
Neves Amorim —
Não, não. Tem gente lá que está há 50 anos.

ConJur — O que acha da discussão do auxílio-moradia?
Neves Amorim —
Existem situações em que o Estado dá alguns benefícios para não dar outros. Quando veio a história do auxílio-moradia, foi em substituição ao aumento que os juízes não recebiam há muito tempo. O Estado tinha que dar um aumento, mas não queria ou não tinha a possibilidade financeira, e criou o auxílio-moradia, que é para substituir alguma coisa que ele mesmo era devedor. Só que ele saiu lucrando com isso porque não atinge todo mundo. Por exemplo, o aposentado, como eu, não recebe auxílio-moradia. Eu me aposentei e perdi. E o aumento viria também para mim. São adequações financeiras do Estado. Às vezes criam-se mecanismos que eu não acho corretos. Eu acho que o auxílio-moradia tem que ser limitado a quem não tem moradia ou, por exemplo, eu moro em São Paulo sou promovido e vou para São José do Rio Preto. Lá não tem casa de juiz. Minha casa é aqui, mas a carreira me jogou para lá. Seria justo eu ter um auxílio-moradia, porque eu estou pagando aluguel lá, tirando do meu salário. Generalizar é complicado. Era melhor dar o aumento, que atingiria todo mundo, não teria problema, do que dar só para uma parte. É sempre um jogo financeiro.

ConJur — O senhor já foi membro do CNJ. O que acha do papel atual do Conselho?
Neves Amorim —
O CNJ sempre exerceu um papel extremamente importante. Evidentemente que tem fases e composições que são mais ativas, menos ativas, mas tudo depende dos assuntos de momento. Quando o juiz de São Paulo sai e olha o Judiciário do Brasil, tem um choque e vê as diferenças sociais gritantes que o Judiciário enfrenta nas várias regiões. Quando eu fui para o CNJ percebi que o Judiciário precisava efetivamente ter um tratamento igual no país. O Judiciário não tinha política pública até 2004, quando veio o CNJ. Cada tribunal cuidava de si, olhava para o seu umbigo. O CNJ veio com essa proposta de criar uma política pública nacional de Justiça. O Executivo tem política de saúde, de educação, de segurança, serve para todo mundo. O Judiciário não tinha. O que era bom para um às vezes era ruim para outro. O CNJ veio para trazer uma igualdade nisso e foi extremamente importante. Ninguém sabia quantos processos tinha no Brasil em 2003, quanto produzia cada juiz. Hoje você tem o Justiça em Números, que é importante porque dá direções. Os números vão mostrando onde ocorrem imperfeições. Então o conselho tem uma função primordial. Tem gente que critica. “Ah, o conselho veio para controlar”. Não é bem isso.

ConJur — O ministro Gilmar Mendes, um dos mais ativos presidentes do CNJ, vem reclamando que o órgão é muito "presidencialista", ou age conforme a disposição de quem estiver na presidência. O ministro Dias Toffoli, próximo a presidir o CNJ, também já disse isso.
Neves Amorim —
As políticas gerais têm continuidade, mas tem muito da personalidade do presidente e cada presidente tem uma vertente. Com o presidente da República é a mesma coisa. Um ataca mais a segurança, outro a educação, outro a saúde, porque ele vê prioridades. Nosso sistema é presidencialista na Câmara, no Senado, na Presidência do Supremo. O importante do CNJ é que ele consegue dar uma política pública geral para o Judiciário. Independente de alguns focos específicos, há controle de sentenças, quanto cada juiz trabalha, parte disciplinar... Hoje, se a população não está contente com a decisão no tribunal, vai representar o cara no CNJ e aí ele vai cair na mão de pessoas que não são do estado dele, não têm nada a ver com ele. Essa parte do CNJ moralizou muito o Poder Judiciário, deu muita credibilidade nesse aspecto de controle de cartório, de juízes, de desembargadores. Deu muita transparência a isso tudo.

ConJur — As faculdades preparam para o litígio? Ou já dá para dizer que os advogados recém-formados estão preparados para negociar?
Neves Amorim —
Hoje já existem muitas faculdades com uma cadeira destinada às soluções adequadas de conflitos, como a PUC e a USP. Quando eu me formei, em 1981, saíamos formados para o litígio. O que eu aprendi no processo? Contestação, recurso, prova, essas coisas. Hoje aprendemos tudo isso porque o CPC está aí e porque temos que segui-lo. Mas o Código traz também os métodos adequados de solução de conflitos, ele fala em mediação e em conciliação. As escolas estão se preparando para isso, sim. Tanto que hoje há simpósios e competições entre alunos. No Vis Moot de Viena, por exemplo, que o mundo inteiro participa, a estrutura são casos de mediação em que os alunos vão fazer mediações, vão fazer arbitragens. É uma disputa internacional.

Por  é repórter da revista Consultor Jurídico
Fonte: ConJur