Entendendo direito
O desenvolvimento das relações comerciais entre empresas e entre
empresas e sociedade nos remete a uma discussão acerca da eficiência das
formas de resolução de conflitos tradicionais. A eliminação das
fronteiras negociais pela globalização, a facilidade e velocidade com
que as informações percorrem o mundo, as diferentes normas existentes
nas mais diversas jurisdições, o excesso ou a ausência de regulação em
determinado setor da atividade econômica pode acarretar falhas de
mercado como altos custos de transação, assimetria de informação e abuso
de poder de mercado.
Muitas vezes a resposta para esses problemas esbarra na competência
jurisdicional (lato sensu) de cada país, os quais adotam diferentes
soluções para casos semelhantes e, portanto, em relações transnacionais
pode ocasionar insegurança jurídica. Tal fato desestimula o ambiente
negocial deslocando o volume de contratos para longe do ponto ótimo[1].
Nesse contexto, algumas questões merecem maior dedicação. As regras
tradicionais de resolução de conflitos apresentam respostas efetivas e
eficientes para o mercado? Mecanismos alternativos de resolução de
conflitos podem ser substitutos ou complementares das formas
tradicionais?
Especialmente para o propósito deste artigo analisaremos se a
arbitragem pode ser uma alternativa viável para a solução de alguns
desses conflitos e, em especial, de que maneira ela tangencia a
concorrência. O objetivo desse artigo, portanto, é trazer para o debate o
procedimento arbitral e analisar a utilização desse instituto no
Direito Antitruste.
A ideia é estudar a aplicabilidade do procedimento arbitral no
direito concorrencial dividindo didaticamente em três aspectos: 1)
resolução de conflitos privados que, em alguma medida, esbarram em
questões concorrenciais como ocorreu no caso do Ato de Concentração
Bovespa-Cetip; 2) possibilidade de utilização da arbitragem para solução
de conflitos privados no campo indenizatório, a partir da prática de
uma conduta anticompetitiva; e, por fim, 3) verificar qual é o alcance
da competência das decisões arbitrais quando se utiliza como fundamento a
Lei de Defesa da Concorrência.
Um Breve Histórico da Arbitragem
As Leis e os Códigos
A arbitragem pode ser entendida como um “mecanismo privado de solução de litígios, através do qual um terceiro, escolhido pelos litigantes, impõe sua decisão, que deverá ser cumprida pelas partes”[2]. É um instituto antigo e no Brasil advém de uma herança que remonta dos tempos do Império Português. A primeira aplicação desse instituto no ordenamento jurídico brasileiro se deu com a primeira Constituição brasileira, oficialmente chamada de Constituição Política do Império do Brasil de 1824, na solução de conflitos civis.
A arbitragem pode ser entendida como um “mecanismo privado de solução de litígios, através do qual um terceiro, escolhido pelos litigantes, impõe sua decisão, que deverá ser cumprida pelas partes”[2]. É um instituto antigo e no Brasil advém de uma herança que remonta dos tempos do Império Português. A primeira aplicação desse instituto no ordenamento jurídico brasileiro se deu com a primeira Constituição brasileira, oficialmente chamada de Constituição Política do Império do Brasil de 1824, na solução de conflitos civis.
Posteriormente, foi acolhida pelo Código Comercial de 1850, que
ampliava a abrangência da arbitragem, pois previa a utilização da
arbitragem obrigatória, em casos específicos. Entretanto, a aplicação da
arbitragem declinou durante os séculos XIX e XX, tendo em vista que
foram editadas normas que prejudicavam seus princípios básicos:
celeridade e desburocratização. Somente no fim do século XX, o instituto
ganhou destaque, pois o mundo estava em uma fase de aceleração da
globalização, de maneira que as relações e estruturas sociais,
econômicas e políticas demandavam adaptação[3].
Em 23 de setembro de 1996 foi promulgada a Lei da Arbitragem[4]. Essa
lei trouxe diversas mudanças que possibilitaram a eliminação de
barreiras que dificultavam a aplicação da arbitragem como resolução
definitiva de conflitos privados. Dentre tais mudanças pode-se destacar:
(i) o fim da obrigatoriedade legal de homologação judicial de sentença
arbitral, que teve o condão de transformá-la em um título executivo
judicial; (ii) a permissão para se obter execução específica de cláusula
arbitral; e (iii) a mudança da regra que exigia o duplo grau de
homologação, em caso de sentença arbitral estrangeira, que deveria não
só ser homologada perante o judiciário do país de origem da sentença
arbitral (alguns países nem possuem essa previsão legal), bem como
homologada pelo Supremo Tribunal Federal[5].
Já o Código Civil de 2002, veio limitar o escopo da aplicação da
arbitragem, pois impõe uma obrigação negativa em relação à utilização do
compromisso nas matérias de direito pessoal da família, questões de
estado ou qualquer discussão que não tenha o caráter exclusivamente
patrimonial. Além dessas limitações, há também aquela relacionada aos
direitos trabalhistas individuais, pois o Tribunal Superior do Trabalho
proíbe a arbitrabilidade desses direitos em face dos princípios da
indisponibilidade, irrenunciabilidade e do desequilíbrio entre as
partes[6]. Por último e não menos importante, há ainda que se destacar a
limitação arbitral em relação às questões de ordem pública, princípios
gerais do direito e bons costumes.
Para o presente artigo nos interessa especificamente o termo ordem
pública. Por apresentar conceito jurídico indeterminado, podendo
abranger diversos seguimentos do ordenamento jurídico, algumas dúvidas
aparecem quando se tenta subsumir o fato concreto a qualquer de suas
definições, a exemplo das normas de direito constitucional. Teriam elas,
todas, natureza de ordem pública[7]? O art. 170 da Constituição Federal
que trata da ordem econômica, especialmente os princípios da livre
iniciativa e da livre concorrência que por sua vez fundamentam as regras
concorrenciais infraconstitucionais estão também inseridas nesse
contexto de ordem pública? A resposta pode implicar em limites à
competência dos procedimentos arbitrais no direito antitruste, vejamos.
Arbitragem na Concorrência
Arbitragem não ameaça a aplicação das leis concorrenciais
Passaremos agora a tratar especificamente das questões concorrenciais que envolvem a arbitragem. Para Becker[8], ao citar Mourre[9] “a não aplicação da arbitragem no direito concorrencial parece ter sido superada pela doutrina”. No entanto, OCDE[10] afirma que, “There is a very limited role for arbitration in the ex ante application of competition law, for example in mergers and state aid, as these areas remain the exclusive competence of the national competition authorities (NCAs). “
Passaremos agora a tratar especificamente das questões concorrenciais que envolvem a arbitragem. Para Becker[8], ao citar Mourre[9] “a não aplicação da arbitragem no direito concorrencial parece ter sido superada pela doutrina”. No entanto, OCDE[10] afirma que, “There is a very limited role for arbitration in the ex ante application of competition law, for example in mergers and state aid, as these areas remain the exclusive competence of the national competition authorities (NCAs). “
Conforme dito anteriormente trataremos especificamente de 3 aspectos:
i) aplicabilidade do procedimento arbitral como alternativa para
resolução de conflitos privados, que em alguma medida esbarram em
questões concorrenciais, como ocorreu no caso da fusão Bovespa-Cetip;
ii) a possibilidade de utilização da arbitragem para solução de
conflitos privados no campo indenizatório, a partir da prática de uma
conduta anticompetitiva; e iii) qual é o alcance da competência das
decisões arbitrais quando se utiliza como fundamento a Lei de Defesa da
Concorrência.
O Cade na 101ª Sessão Ordinária, ocorrida em 22/03/2017 julgou o Ato
de Concentração nº 08700.004860/2016-11, de relatoria da Conselheira
Cristina Alkmin que tratava da compra da CETIP pela BMF&BOVESPA,
aprovando a operação com restrições. O caso trouxe diversas discussões
interessantes tais como, monopólio natural, essential facility,
concorrência potencial, recusa de contratar, e etc. Contudo, o que mais
me chamou a atenção foi a utilização do procedimento arbitral como
alternativa para resolução de um conflito privado que tinha como pano de
fundo a recusa de contratar e, consequentemente, a imposição de uma
barreira à entrada.
A dinâmica funcionava da seguinte forma: Bovespa e Cetip não
apresentavam grandes sobreposições horizontais, tinham uma certa
complementaridade, e a tese da concorrência potencial não se encaixava
perfeitamente no caso, muito embora fosse possível. Contudo, o ponto
mais importante do processo era que como a operação acarretava a
consolidação de um monopólio, era necessário viabilizar a entrada de um
novo player. O problema é que pela estrutura do próprio mercado um novo
entrante necessariamente teria que utilizar parte da infraestrutura da
Bovespa. Para utilizar essa infraestrutura, o entrante teria que
remunerar a Bovespa pelo serviço e, também, cumprir com condições
técnicas mínimas. A análise de fato demonstrou que a Bovespa e o
entrante não chegavam a um acordo, principalmente, em relação ao preço.
Observe que não é competência do Cade a resolução de conflitos privados
dessa natureza, a não ser que tais conflitos tangenciem assuntos
concorrenciais como é o caso de criação de barreiras à entrada. Sendo
assim, a disputa pelo preço, condição fundamental para a participação do
novo player, poderia ser resolvida pela regulação ou por meio de um
Acordo em Controle de Concentração, dirimindo o conflito. Assim foi
feito. O Cade deu às partes (requerente do ACC e novo entrante) 90 dias
para que chegassem a um consenso e caso não o fizessem os requerentes
(Bovespa e Cetip) estariam obrigados a se submeter a um procedimento
arbitral, cujo objetivo seria resolver o conflito privado precificando
os serviços a serem prestados, condição essencial para entrada do novo
player.
Veja, portanto, que em relação ao primeiro aspecto não nos parece
haver dúvidas quanto à possibilidade de utilização do procedimento
arbitral no direito antitruste, sendo até recomendável por parte da
autoridade concorrencial o fomento de tal pratica, haja vista todos os
benefícios dela advindos.
O segundo aspecto a ser abordado se refere à possibilidade de
utilização da arbitragem para solução de conflitos privados
indenizatórios na esfera cível[11], surgidos a partir de uma violação da
lei de defesa da concorrência. Esse tema também não me parece
apresentar grandes divergências. Em uma análise perfunctória já é
possível perceber que uma vez acordado entre as partes que os conflitos e
danos originados a partir da violação de leis, especialmente a lei de
defesa da concorrência, serão resolvidos mediante tribunal arbitral, não
há como negar a cogente competência da arbitragem. Poderá a parte
prejudicada por uma conduta ilegal da outra parte propugnar pela
instauração de procedimento arbitral para que se defina, sob o ponto de
vista do direito civil, as responsabilidades reparatórias de cada uma
das partes.
Uma questão interessante a se debater é se as partes podem instaurar o
procedimento arbitral independente do início ou da conclusão da
persecução administrativa ou criminal. Se a resposta for sim, como fica a
sentença arbitral já proferida no caso de decisões contrárias no âmbito
criminal e administrativo?
Aqui aplica-se o já consagrado princípio da independência das
instâncias. Não há que se falar em timing alignment entre as esferas.
Não há a necessidade das partes aguardarem pronunciamento das instâncias
administrativa ou criminal para só então instaurarem o procedimento
arbitral. A regra é que as instâncias não se comunicam, exceto nos casos
de sentença penal absolutória que negue a existência do crime
(materialidade) ou sua autoria, de maneira que, somente nesse caso, seu
trânsito em julgado também fará coisa julgada no âmbito administrativo e
no cível. Sendo assim, a título de exemplo, caso uma autoridade
antitruste tenha julgado determinado processo administrativo e o
resultado tenha sido a existência do ilícito e a respectiva
responsabilização do representado, o tribunal arbitral instaurado para
efeitos de reparação de danos, em nada está vinculado ao ato
administrativo da autoridade antitruste, nem em relação ao dispositivo,
muito menos em relação ao quantum debeatur, se existir. Pode o tribunal
arbitral entender até mesmo pela ausência de responsabilidade ou pela
inexistência de ilícito concorrencial para efeitos civis. De fato, na
prática, isso tende a não ocorrer, principalmente em virtude da
especialidade da matéria e da exaustiva persecução administrativa que
usualmente ocorre nos processos administrativos de apuração de ilícitos
concorrenciais. No fim do dia, o que realmente se observa é quase que a
incorporação total das razões de mérito do processo administrativo pelo
processo civil, restando apenas definir o dano causado e o montante a
ser indenizado.
Sobre o tema, o Comitê de Concorrência da OCDE, em outubro de 2010,
sediou uma conferência e o Grupo de Trabalho n. 3, produziu um documento
intitulado Concorrência e Arbitragem que assim afirmou: “… The
arbitrator can only intervene to determine the overaching civil law
consequences relevant to the application of the competition law. In
practice this means ex post allocation of damages to one party as a
result of another party violating competition law.”[12] O documento
também mostra que o aumento das ações por danos apresenta um
significativo impacto na arbitragem, tal como a discussão acerca da
possibilidade de ações coletivas se valerem do procedimento arbitral. A
Suprema Corte Americana no caso Stolt-Nielson[13] definiu que as ações
coletivas não podem ser processadas perante juízo arbitral quando o
acordo é silente sobre o assunto.
O terceiro aspecto a ser abordado neste artigo é a possibilidade de
utilização das normas de direito da concorrência como fundamento de
decisão do juízo arbitral. De acordo com o que foi dito acima parece
lógico que sim, contudo pode haver dúvidas a respeito da abrangência da
competência do tribunal arbitral, se somente para julgar questões
privadas que em alguma medida limitam a concorrência, se adstrita a
aspectos de reparação de danos ou se também é possível que a decisão
arbitral defina o ilícito tratando de sua materialidade, autoria e
responsabilização (obviamente para efeitos privados) e se em alguma
medida afasta a competência da autoridade antitruste.
Essa discussão passa inicialmente pela interpretação da expressão ordem pública disposta na Lei de Arbitragem.
Imagine uma situação hipotética em que em uma relação comercial
doméstica duas empresas pactuam que eventuais condutas anticompetitivas
praticadas por qualquer das partes relacionadas ao contrato serão
dirimidas por procedimento arbitral em todos os seus aspectos, inclusive
para definição do ilícito e responsabilização com aplicação das penas
constantes nos art. 37 e 38 da Lei n. 12.529/2011. Em sentido contrário,
imagine que o acordo arbitral tenha por objeto o afastamento da
aplicabilidade da Lei de Defesa da Concorrência e o estabelecimento de
imunidade concorrencial entre as partes contratantes em face dos
comportamentos anticompetitivos. Esse tipo de avença teria validade? Em
ambas as situações hipotéticas a decisão arbitral necessariamente teria
que tratar de questões de ordem pública e suas definições.
Ordem pública tem um conceito jurídico indeterminado e, portanto, não
é possível precisar uma única definição. Clóvis Bevilacqua conceituava
ordem pública como sendo os princípios os quais a sociedade considera
indispensáveis[14]. Já Orlando Gomes a define como sendo os interesses
que fundamentam o ordenamento jurídico, mais especificamente a ordem
econômica ou a moral de determinada sociedade[15].
Joaquim de Paiva Muniz[16] ao citar Lauro Gama Jr. afirma que a ordem
pública possui duas facetas, a positiva e a negativa. A primeira serve
para afirmar essas normas, princípios e valores essenciais. Já a segunda
tem por objetivo impedir a eficácia de lei estrangeira, ato
administrativo, judicial ou arbitral proveniente de outras jurisdições
que de alguma forma afrontem essas normas, princípios e valores
essenciais.
E cediço que a regra da livre escolha pelas partes do direito
material e processual a ser aplicado no procedimento arbitral não é
direito absoluto, tendo como limite a ordem pública. Aqui cabe
diferenciar norma de ordem pública de norma imperativa. Norma imperativa
é aquela vigente e de cumprimento obrigatório, mas que não
necessariamente carrega os ditames essenciais da sociedade. Nesse
sentido é possível afastar a norma imperativa, mas não uma norma de
ordem pública. Outro ponto importante a ser destacado é que o que define
uma norma de ordem pública é seu conteúdo e não sua natureza. Há normas
de direito constitucional, penal ou processual que não se enquadram no
conceito de ordem pública, muito embora sejam imperativas e cogentes.
A Lei n. 9.307/1996, no §1º, do art. 2º afirma que “Poderão as partes
escolher, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na
arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem
pública”. O mandamento infraconstitucional tem como preocupação
exclusivamente a eliminação ou a afronta das normas, princípios e
valores essenciais para sociedade e não cria vedação da sua utilização.
Nesse contexto, o árbitro constituído pelas partes não só pode como tem o
dever de se utilizar das normas de ordem pública para fundamentar suas
decisões. Observe que muito mais que imperativas, as normas de ordem
pública estão classificadas em “patamar superior” de importância para a
sociedade, não sendo possível sua escusa, muito menos seu enfrentamento.
Dito isso, analisando os aspectos que diretamente interessam ao
presente artigo, não tenho dúvidas que a Lei de Defesa da Concorrência
pelo seu conteúdo material é caracterizada como norma de ordem pública
e, consequentemente, não pode ser afastada e muito menos afrontada. Para
a OCDE “Competition law is a fundamental value of our legal system, and
where necessary should be at the center of the analysis.”[17]. Sendo
assim, o árbitro não só pode [18] utilizar dos seus preceitos para
fundamentar sua decisão, como deve [19] aplicar a lei na sua
integralidade até mesmo para definir o ilícito e aplicar as penalidades
previstas nos arts. 37 e 38 [20] da Lei n. 12.529/2011. Vale a pena
ressaltar que aplicação dessas penalidades deve ser determinada por
convenção das partes relacionadas, podendo, por exemplo, ter como
objetivo (privado) criar uma estrutura de incentivos para que as
condutas praticadas na relação negocial sejam sempre pró-competitivas.
Observe que a existência de cláusulas que aumentam o custo da prática de
ilícito são bem-vindas e geram externalidades positivas, partindo do
pressuposto que a decisão de cometer um ilícito é função do benefício
auferido pela prática e o custo da conduta (pena x probabilidade de
detecção).
Por fim, ainda sobre o mesmo aspecto, mas partindo de uma perspectiva
diferente, pergunta-se se é possível o árbitro afastar a lei de defesa
da concorrência para aplicação de outra norma convencionada pelas
partes? Nesse caso entendo que não, justamente por se tratar de norma de
ordem pública, cujo afastamento é vedado no §1º, do art. 2º da Lei n.
9.307/1996. Veja ainda que a doutrina classifica a referida situação
como sendo a segunda faceta da ordem pública, ou seja, aquela em que tem
por objetivo impedir a eficácia de lei estrangeira, ato administrativo,
judicial ou arbitral proveniente de outras jurisdições que de alguma
forma afrontem essas normas, princípios e valores essenciais.
Segundo a OCDE[21] “Arbitrators undoubtedly have a duty to apply
competition law, and are expected to do so. In the past doubts have been
raised about the duties of arbitrators, with the argument that
arbitration is subject to party autonomy and arbitrators should
therefore not go beyond what parties want. However, if legal systems
allow competition law matters to be arbitrated, this should come with
the expectation that arbitrators will apply competition law. This
extends to the application of competition law even after an agreement
has been made between the parties. The arbitrators have a specific
burden of providing comprehensive reasoning for their award to
demonstrate to the courts in the review process that they have dealt
with the competition law issues consistently, coherently and
professionally”. Não há, portanto, como negar que a aplicabilidade da
lei de defesa da concorrência é cogente. Essa obrigatoriedade vai muito
além da simples permissão de fundamentação por parte do árbitro, mas
especialmente da impossibilidade de afastar a norma ou de escusar sua
aplicação em casos relacionados. Caso as partes convencionem o
afastamento das normas concorrenciais, o tribunal arbitral deve se
recusar a participar do procedimento.
No entanto, mesmo que a utilização dos fundamentos do antitruste seja
imperativo é sempre importante que as partes convencionem sua
aplicabilidade ou, no mínimo, que os árbitros indiquem que irão usar
fundamentos competitivos. Veja mais uma vez o que diz o já citado
documento produzido pela OCDE[22] “The parties and any other arbitrators
involved in the procedure need to agree that the competition issue
forms part of the arbitration. A competition question cannot suddenly be
brought into the process at the final stages, and the parties should be
able to see from the case file that a competition issue is likely to be
raised in the arbitration.”
Vale ressaltar ainda que a possibilidade da utilização de
procedimento arbitral na concorrência em nada afasta a competência das
autoridades antitrustes. Becker [23] afirma no mesmo estudo ao citar
Isabel Vaz [24] que “Sob essa perspectiva, entende-se que, na evolução
da aceitação da arbitrabilidade de questões concorrenciais, não haveria a
supressão do papel dos órgãos especializados (i.e., CADE), mas sim uma
“readaptação, pelo mercado, de uma modalidade dentre outras de que ele
dispõe, para assegurar a eficácia da prática do Direito da Concorrência
no plano das relações contratuais do Direito Privado”.
Em relação, portanto, ao terceiro aspecto abordado nesse artigo,
podemos concluir que muito mais que permissão para utilizar os preceitos
de ordem pública (normas de concorrência), há um dever de cuidado e de
manutenção da ordem econômica por parte do árbitro, devendo o mesmo
aplicar as normas concorrenciais aos casos sob sua responsabilidade,
sendo vedada sua omissão. Veja que a proibição legal não é a
arbitralidade de temas afetos às normas de ordem pública (concorrencial)
e sim sua supressão ou mitigação.
Vimos, portanto, que a arbitragem é um importante instrumento para
dirimir conflitos privados que podem de alguma forma afetar a
concorrência, podendo o Cade ser um incentivador e promotor dessa
prática conforme ocorreu no caso Bovespa/Cetip. Concluímos pela
possibilidade de utilização da arbitragem nas questões de reparação de
danos na esfera cível, mas cuja obrigação de reparar tenha se dado em
virtude de condutas anticompetitivas. E, por fim, que por se tratar de
normas com conteúdo de ordem pública as partes não podem dispor em
sentido contrário e os árbitros tem o múnus de aplicá-las.
Encerro da mesma forma como afirmado pela OCDE [25], “a arbitragem é
uma ferramenta normal para resolução de disputas comerciais e seu uso
para resolver disputas concorrências tem crescido. Sem embargo, a
alternativa da arbitragem não ameaça ou prejudica a aplicação das leis
concorrenciais, não sendo necessário razão alterar as bases do seu
approach (…). A arbitragem e seu uso deveria, por essa razão, ser vista
como uma ferramenta incentivadora da correta aplicação do Direito
Concorrencial”.
———————————————-[1] GABBAY, Daniela Monteiro e PASTORE, Ricardo Ferreira. “Arbitragem e Outros Meios de Solução de Conflitos em Demandas Indenizatórias na Área de Direito da Concorrência”, Kluwer Law International BV, 2015. Pg. 3.
[2] CARMONA, Carlos Alberto. “Arbitragem e Processo”. São Paulo: Altas, 2000. Pg. 31. Apud MUNIZ, Joaquim de Paiva. “Curso Básico de Direito Arbitral – Teoria e Prática”, 3ª edição. Juruá Editora, 2015. Pg. 21.
[3] MUNIZ, Joaquim de Paiva. “Curso Básico de Direito Arbitral – Teoria e Prática”, 3ª edição. Juruá Editora, 2015. Pg. 24-29.
[4] Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996.
[5] MUNIZ, Joaquim de Paiva. “Curso Básico de Direito Arbitral – Teoria e Prática”, 3ª edição. Juruá Editora, 2015. Pg. 24-29.
[6] MUNIZ, Joaquim de Paiva. “Curso Básico de Direito Arbitral – Teoria e Prática”, 3ª edição. Juruá Editora, 2015. Pg. 33,45,66,67.
[7] Superior Tribunal de Justiça (STJ) no REsp 606.345/RS, 2ª Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, J. 17.05.2007 e no MS 11.308/DF, 1ª Seção, Rel. Min. Luiz Fux, J. 28.06.2006 amplia a competência arbitral, determinando que cláusulas e conflitos arbitrais que não estão relacionados diretamente ao interesse público primário e que envolvem a Administração pública são válidos, o que permite e incentiva que esses conflitos sejam resolvidos no procedimento arbitral, e não apenas mediante judicialização. GABBAY, Daniela Monteiro e PASTORE, Ricardo Ferreira. “Arbitragem e Outros Meios de Solução de Conflitos em Demandas Indenizatórias na Área de Direito da Concorrência”, Kluwer Law International BV, 2015. Pg. 6.
[8] BECKER, Bruno Bastos em “Concorrência e Arbitragem no Direito Brasileiro. Hipóteses de Incidência de Questões Concorrenciais em Arbitragens”. Revista Jurídica Luso-Brasileira, nº 2, 2015.
[9] MOURRE, Alexis. Arbitrability of Antitrust Law from the European and US Perspective. In: BLANKE, Gordon; LANDOLT, Phillip. EU and US Antitrust Arbitration. A Handbook for Practitioners. Alphen Ann Den Rijn: Kluwer Law International, 2011. p. 36 e ss.
[10] IDOT, Laurence. Aribtration and Competition. In: ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT. Arbitration and Competition 2010: Hearings. Disponível em<http://www.oecd.org/daf/competition/abuseofdominanceandmonopolisation/49294392.pdf>.
[11] A relação entre concorrência e arbitragem na área civil tem fundamento no art. 946 do Código Cívil e pelo art. 47 da Lei n. 12.529/2011 que se materializa no direito da parte que foi lesada por atos anticompetitivos de obter ressarcimento do prejuízo, independentemente de haverem ações penal e administrativa contra os agentes causadores do prejuízo. A doutrina americana classifica esse fato de “private antitruste enforcement”.
[12] IDOT, Laurence. Aribtration and Competition. In: ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT. Arbitration and Competition 2010: Hearings. Disponível
Em<http://www.oecd.org/daf/competition/abuseofdominanceandmonopolisation/49294392.pdf>.
[13] U.S. Supreme Court’s April 27, decision in Stolt-Nielson S.A. v. Animal Feeds International No. 08-1198, 2010 WL 1655826 (U.S. Apr. 27, 2010)
[14] BEVILACQUA, Clóvis. Teoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro. Francisco Alves. 1951.
[15] GOMES, Orlando. Direito Privado-Novos aspectos. Rio de Janeiro: Freitas Barros. 1961.
[16] MUNIZ, Joaquim de Paiva. “Curso Básico de Direito Arbitral – Teoria e Prática”, 3ª edição. Juruá Editora, 2015.
[17] IDOT, Laurence. Arbitration and Competition. In: ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT. Arbitration and Competition 2010: Hearings. Disponível
Em<http://www.oecd.org/daf/competition/abuseofdominanceandmonopolisation/49294392.pdf>.
[18] Há quem pense de forma contrária. “Toda matéria que diz respeito à lei antitruste, Lei 8.884, de 11.06.1994, em que pese tratar de relação jurídica de direito patrimonial disponível, não pode ser objeto de juízo arbitral” (MATTOS NETO, Antonio José de. Direitos Patrimoniais Disponíveis e Indisponíveis à Luz da Lei da Arbitragem. Revista de Processo, vol. 106, São Paulo, p. 221, abril 2002).
[19] BECKER, Bruno Bastos em “Concorrência e Arbitragem no Direito Brasileiro. Hipóteses de Incidência de Questões Concorrenciais em Arbitragens”. Revista Jurídica Luso-Brasileira, nº 2, 2015. Pg. 243-246 apresenta o caso europeu Eco Swiss, onde foi questionado perante o Tribunal de Justiça da União Europeia sobre a suspensão de uma execução de sentença arbitral. Neste precedente, foi decidido que o tribunal arbitral deve não só aplicar as matérias de direito da concorrência, mas também destacar que possui este dever.
[20] Evidentemente que a sentença arbitral não pode ter efeitos para terceiros como por exemplo no caso de aplicação de proibição de contratar, concessões de benefícios tributários e etc.
[21] IDOT, Laurence. Arbitration and Competition. In: ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT. Arbitration and Competition 2010: Hearings. Disponível
Em<http://www.oecd.org/daf/competition/abuseofdominanceandmonopolisation/49294392.pdf>.
[22] IDOT, Laurence. Arbitration and Competition. In: ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT. Arbitration and Competition 2010: Hearings. Disponível em<http://www.oecd.org/daf/competition/abuseofdominanceandmonopolisation/49294392.pdf>.
[23] BECKER, Bruno Bastos em “Concorrência e Arbitragem no Direito Brasileiro. Hipóteses de Incidência de Questões Concorrenciais em Arbitragens”. Revista Jurídica Luso-Brasileira, nº 2, 2015.
[24] VAZ, Isabel. Arbitrabilidade do Direito da Concorrência. Revista do IBRAC – Direito da Concorrência, Consumo e Comércio Internacional, vol. 16, São Paulo, p. 353, janeiro 2009)
[25] IDOT, Laurence. Arbitration and Competition. In: ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT. Arbitration and Competition 2010: Hearings. Disponível em<http://www.oecd.org/daf/competition/abuseofdominanceandmonopolisation/49294392.pdf>.
Por Alexandre Cordeiro
Fonte: Jota