Cultura de paz
Já se disse que o século XXI seria o das Parcerias e da Mediação,
justificando-se a atribuição ao Estado de uma nova função, a de
mediador. Conhecemos, no passado, o Estado liberal da Constituição de
1946, e depois, o Estado intervencionista do regime militar. Parece-nos
que chegou a hora de uma nova missão para o Poder Público: a de mediar
os conflitos para dar-lhes uma solução rápida e eficaz, que nem sempre o
Judiciário resolve no tempo da economia, que é diferente do necessário
para obter decisões definitivas pela via judicial.
Depois da tese da liberdade econômica plena, que quando excessiva
pode resultar numa sociedade anárquica, e da antítese da disciplina
rígida, com a onipotência do Estado, chegamos à síntese. Trata-se do
direito que, sempre que possível, deve ser o resultado do consenso, numa
economia “concertada”, com uma legislação flexível. Substitui-se o
direito imposto pelo direito composto, decorrente da simbiose da vontade
das partes, com as concessões necessárias decorrentes de toda parceria.
Não é só na área tipicamente comercial das relações entre
empresas que a mediação pode ser útil e eficiente. O Estado pode ser um
catalisador importante nos conflitos entre os vários grupos, encontrando
soluções que atendam simultaneamente aos interesses individuais,
sociais e públicos.
Recentemente, o governo e seu órgão jurídico, a AGU, se
convenceram dessa transformação, que lhes atribui um novo poder-dever, o
de mediar os grandes conflitos, com maior ou menor formalismo. Assim,
nos processos que opõem, há cerca de três décadas, os poupadores aos
bancos decorrentes da aplicação dos chamados “Planos Monetários”, aos
quais as instituições financeiras foram obrigadas a obedecer, uma
solução consensual acaba de ser acordada.
Decorreu, em grande parte, do esforço intenso e continuado da
ministra Advogada Geral da União, que conseguiu aproximar as partes,
moderar as divergências, e construir soluções que já mereceram parecer
favorável da Procuradoria Geral da República e estão aguardando
homologação do Supremo Tribunal Federal.
O caso merece ser enfatizado, pois, num certo momento, os
litígios chegaram a ser avaliados em algumas centenas de bilhões de
reais e mobilizaram a Justiça, em todo o país, com cerca de um milhão de
feitos, que acabaram encontrando solução no recente acordo, cuja
razoabilidade decorre do próprio consenso das partes.
Trata-se também de questão que era de certa forma controversa
quanto aos fundamentos jurídicos invocados, pois as instituições
financeiras e o Banco Central defendiam o princípio da estabilidade
monetária e do poder da União de modificar a unidade monetária ou o
índice de sua correção. Entendem que a nova norma editada deveria
aplicar-se de imediato aos contratos pendentes. Por outro lado, os
poupadores, invocando o Código do Consumidor e a eventual existência de
um direito adquirido ao padrão monetário, consideravam que a nova
legislação e regulamentação não deveriam alcançar as operações em curso.
O Judiciário garantiu o sucesso da arbitragem e mediação, e tornou o país um dos mais importantes nos dois setores
As discussões que abrangeriam os cinco Planos Monetários só se
reduziram com a maior sofisticação do Plano Real, mas os litígios quanto
aos demais continuaram gerando, ao mesmo tempo, uma forte insegurança
jurídica e financeira e uma verdadeira avalanche processual. Caberia ao
Supremo Tribunal Federal decidir a matéria, o que só poderia fazer com
um quórum específico, que os seus integrantes não estavam alcançando em
virtude de divergências entre alguns ministros e de impedimentos de
outros.
A questão teórica não é nova e já tinha surgido em nosso meio na
década de 1930, no caso de vedação do uso das cláusulas de pagamento em
moeda estrangeira ou em ouro. Mais recentemente, ressurgiu por ocasião
das variações do salário mínimo e da discussão da admissibilidade do
mesmo como índice de correção.
Na Europa, os juristas e magistrados se defrontaram com problema
similar logo após a Primeira Guerra Mundial e diante de uma inflação
galopante que destruiu a moeda na Alemanha e em outros países. Nos
Estados Unidos, a aplicação imediata das “gold clauses” proibidas pela
legislação do New Deal, levou a intenso debate na Suprema Corte, que só
conseguiu ser resolvido por uma votação de 5 x 4 (a maioria a favor da
constitucionalidade). É significativo lembrar que, na América do Norte,
se a Suprema Corte tivesse que decidir a matéria por maioria
qualificada, não teria conseguido uma solução e teria levado o
presidente Roosevelt a ter que cumprir a sua ameaça de aumentar o número
dos ministros que a compunham.
Por outro lado, também recentemente, houve progressos no sentido
de admitir a colaboração entre o Conselho Nacional de Justiça, o Banco
Central do Brasil e a Federação Brasileira dos Bancos, para estabelecer
medidas que possibilitassem a defesa dos direitos do consumidor de
produtos e serviços financeiros, o estímulo à resolução de conflitos de
forma amigável nas causas pré-processuais e judiciais, e a redução das
demandas judiciais relacionadas à relação entre o consumidor de serviços
financeiros e as IFs do SFN, contribuindo, ainda, para o aprimoramento
da atividade regulatória do BC.
Os resultados das soluções extrajudiciais dos conflitos foram
importantes e se fizeram sentir, permitindo a justa comemoração, em
2017, dos 20 anos da Lei de Arbitragem, enquanto a mediação se
desenvolvia sob todos os aspectos. O Poder Judiciário garantiu o sucesso
de ambos os institutos (arbitragem e mediação), tornando o nosso país
um dos mais importantes nos dois setores, em pouco tempo, com uma
sensibilidade construtiva, que nos afastou do formalismo, que inspirava
alguns dos juristas no passado.
Assim, o Estado brasileiro, neste crítico momento de nossa
História, segue inovando e progredindo, oferecendo à nossa população
maior segurança jurídica e um melhor clima de negócios e de
investimentos.
Arnoldo Wald é advogado e professor catedrático da Faculdade de Direito da UERJ.
Roberto Giannetti da Fonseca é economista graduado pela FEA-USP,
empresário, presidente da Kaduna Consultoria, Co-Chairman do Lide.
Fonte: Valor Econômico