quarta-feira, 20 de junho de 2018

Direito sistêmico é uma luz no campo dos meios adequados de solução de conflitos

Ponto de vista
Há tempos se observa a incapacidade do Poder Judiciário de processar e julgar a quantidade de ações que lhe são apresentadas. A estrutura de pessoal e de material existente não é suficiente. Por outro lado, já é reconhecida no meio jurídico e na sociedade a necessidade de novos métodos de tratamento dos conflitos. Esses meios devem permitir não apenas uma decisão judicial que estabeleça como deve ser a solução para cada conflito — dizendo às partes quais os respectivos direitos e obrigações —, mas também dar paz aos envolvidos, permitindo que eles mantenham um bom relacionamento futuro e, inclusive, tratem de forma amigável outras questões que se apresentem.

A tradicional forma de lidar com conflitos no Judiciário já não é vista como a mais eficiente. Uma sentença de mérito, proferida pelo juiz, quase sempre gera inconformismo e não raro desagrada a ambas as partes. Em muitos casos, enseja a interposição de recursos e manobras processuais ou extraprocessuais que dificultam a execução. Como consequência, a pendência tende a se prolongar, gerando custos ao Estado e incerteza e sofrimento para as partes.

Tal fenômeno é ainda mais visível nos conflitos de ordem familiar, que têm origem quase sempre numa história de amor e geralmente envolve filhos. A instrução processual é nociva para todos os envolvidos. Cada testemunha que depõe a favor de uma parte pode trazer à tona fatos comprometedores relativos à outra, alimentando ressentimento e dificultando a paz. Assim, mesmo depois de julgada a ação, esgotados os recursos e efetivada a sentença, o conflito permanece.

A conciliação no âmbito judicial está instituída há bastante tempo na legislação brasileira, é largamente aplicada nas causas cíveis e, com mais ênfase, naquelas relativas à Vara de Família e nas de menor complexidade, sujeitas ao rito previsto na Lei 9.099/95. Também para o tratamento relativo aos crimes de menor potencial ofensivo, a mesma lei prevê a composição civil dos danos como forma de resolver conflitos, evitando-se uma ação penal. Mas outros métodos se fazem necessários para desafogar os tribunais e resolver os conflitos.

Há 12 anos utilizo técnicas de constelações familiares sistêmicas, obtendo bons resultados na facilitação das conciliações e na busca de soluções que tragam paz aos envolvidos nos conflitos submetidos à Justiça, em processos da Vara de Família e Sucessões e também no tratamento de questões relativas à infância e juventude e à área criminal, mesmo em casos considerados bastante difíceis.

Trata-se de uma abordagem originalmente utilizada como método terapêutico pelo terapeuta e filósofo alemão Bert Hellinger, que a partir das constelações familiares desenvolveu uma ciência dos relacionamentos humanos, ao descobrir algumas ordens (leis sistêmicas) que regem as relações. Essa ciência foi batizada pelo seu autor com o nome de Hellinger Sciencia. O conhecimento de tais ordens nos conduz a uma nova visão a respeito do Direito e de como as leis podem ser elaboradas e aplicadas de modo a trazerem paz às relações, liberando do conflito as pessoas envolvidas e facilitando uma solução harmônica.

A expressão “Direito sistêmico”, termo cunhado por mim quando lancei o blog Direito Sistêmico (direitosistemico.wordpress.com), surgiu da análise do Direito sob uma ótica baseada nas ordens superiores que regem as relações humanas, conforme demonstram as constelações familiares desenvolvida por Hellinger.

Segundo essa abordagem, diversos problemas enfrentados por um indivíduo (bloqueios, traumas e dificuldades de relacionamento, por exemplo) podem derivar de fatos graves ocorridos no passado não só do próprio indivíduo, mas também de sua família, em gerações anteriores, e que deixaram uma marca no sistema familiar. Mortes trágicas ou prematuras, abandonos, doenças graves, segredos, crimes, imigrações, relacionamentos desfeitos de forma “mal resolvida” e abortos são alguns dos acontecimentos que podem gerar emaranhamentos no sistema familiar, causando dificuldades em seus membros, mesmo em gerações futuras.

As constelações familiares consistem em um trabalho no qual pessoas são convidadas a representar membros da família de uma outra pessoa (o cliente) e, ao serem posicionadas umas em relação às outras, sentem como se fossem as próprias pessoas representadas, expressando seus sentimentos de forma impressionante, ainda que não as conheçam. Vêm à tona as dinâmicas ocultas no sistema do cliente que lhe causam os transtornos, mesmo que relativas a fatos ocorridos em gerações passadas, inclusive fatos que ele desconhece. Pode-se propor frases e movimentos que desfaçam os emaranhamentos, restabelecendo-se a ordem, unindo os que no passado foram separados, proporcionando alívio a todos os membros da família e fazendo desaparecer a necessidade inconsciente do conflito, trazendo paz às relações.

O Direito sistêmico vê as partes em conflito como membros de um mesmo sistema, ao mesmo tempo em que vê cada uma delas vinculada a outros sistemas dos quais simultaneamente façam parte (família, categoria profissional, etnia, religião etc.) e busca encontrar a solução que, considerando todo esse contexto, traga maior equilíbrio.

Há temas que se apresentam com frequência: como lidar com os filhos na separação, as causas e soluções para a violência doméstica, questões relativas à guarda e alienação parental, problemas decorrentes do vício (em geral relacionado a dificuldades na relação com o pai), litígios em inventários nos quais se observa alguém que foi excluído ou desconsiderado no passado familiar, entre outros. Cada um dos presentes, mesmo os que se apresentavam apenas como vítimas, pode frequentemente perceber de forma vivenciada que havia algo em sua própria postura ou comportamento que, mesmo inconscientemente, estava contribuindo com a situação conflituosa. Essa percepção, por si só, é significativa e naturalmente favorece a solução.

Em ações de família, muitas vezes uma constelação simples, colocando representantes para o casal em conflito e os filhos, é suficiente para evidenciar a existência de dinâmicas como a alienação parental e o uso dos filhos como intermediários nos ataques mútuos, entre outros emaranhamentos possíveis. Essas explicações têm se mostrado eficazes na mediação de conflitos familiares e, em cerca 90% dos casos, as partes reduzem resistências e chegam a um acordo.

Em alguns tribunais, no Ministério Público e na Defensoria Pública, vêm sendo realizadas experiências na área criminal, com o objetivo de facilitar a pacificação dos conflitos e a melhoria dos relacionamentos, incluindo réu, vítima e respectivas famílias. As constelações têm servido de prática auxiliar no trabalho com a Justiça restaurativa, ajudando a preparar as partes e a comunidade envolvidas para que possam dar um encaminhamento adequado à questão. No âmbito penitenciário, multiplicam-se as práticas visando proporcionar aos presos uma oportunidade de compreender as dinâmicas ocultas por trás do padrão criminoso e enxergar onde está o amor que, de forma cega, os fez repetir os comportamentos antissociais já ocorridos em gerações passadas, na história da própria família. As reações dos participantes têm indicado resultados notáveis.

Independentemente da aplicação da lei penal, acredito que as constelações possam reduzir as reincidências, auxiliar o agressor a cumprir a pena de forma mais tranquila e com mais aceitação, aliviar a dor da vítima e, quem sabe, desemaranhar o sistema de modo que não seja necessário outra pessoa da família se envolver novamente em crimes, como agressor ou vítima, por força da mesma dinâmica sistêmica.

Resultados
Durante e após o trabalho com constelações, os participantes têm demonstrado boa absorção dos assuntos tratados, um maior respeito e consideração em relação à outra parte envolvida, além da vontade de conciliar — o que se comprova também com os resultados das audiências realizadas semanas depois e com os relatos das partes e dos advogados da comarca.


A abordagem coletiva, na forma de palestras vivenciais, ocupa relativamente pouco tempo (aproximadamente três horas) e atinge simultaneamente as partes envolvidas em algumas dezenas de processos. Quando da realização das audiências de conciliação, os acordos acontecem de forma rápida e até emocionante.

Por meio de questionários respondidos após a audiência de conciliação por pessoas que participaram das vivências de constelações, obtivemos as seguintes respostas:
  • 59% das pessoas disseram ter percebido, desde a vivência, mudança de comportamento do pai/mãe de seu filho que melhorou o relacionamento entre as partes. Para 28,9%, a mudança foi considerável ou muita;
  • 59% afirmaram que a vivência ajudou ou facilitou a obtenção do acordo para conciliação durante a audiência. Para 27%, ajudou consideravelmente. Para 20,9%, ajudou muito;
  • 77% disseram que a vivência ajudou a melhorar as conversas entre os pais quanto à guarda, visitas, dinheiro e outras decisões em relação ao filho das partes. Para 41%, a ajuda foi considerável; para outros 15,5%, ajudou muito;
  • 71% disseram ter havido melhora no relacionamento com o pai/mãe de seu(s) filho(s) após a vivência. Melhorou consideravelmente para 26,8% e muito para 12,2%;
  • 94,5% relataram melhora no seu relacionamento com o filho. Melhorou muito para 48,8%, e consideravelmente para outras 30,4%. Somente 4 pessoas (4,8%) não notaram tal melhora;
  • 76,8% notaram melhora no relacionamento do pai/mãe de seu(ua) filho(a) com ele(a). Essa melhora foi considerável em 41,5% dos casos e muita para 9,8% dos casos;
  • 55% das pessoas afirmaram que desde a vivência de constelações familiares se sentiram mais calmas para tratar do assunto; 45% disseram que diminuíram as mágoas; 33% disseram que ficou mais fácil o diálogo com a outra pessoa; 36% disseram que passaram a respeitar mais a outra pessoa e compreender suas dificuldades; e 24% disseram que a outra pessoa envolvida passou a lhe respeitar mais.
Dessa forma, as pesquisas preliminares indicam que a prática contribui não apenas para o aperfeiçoamento da Justiça, mas também para a qualidade dos relacionamentos nas famílias — que, sabendo lidar melhor com os conflitos, podem viver em paz e assim proporcionar um ambiente familiar melhor para o crescimento e desenvolvimento dos filhos, com respeito e consideração à importância de cada um. Consequência natural disso é a melhora nos relacionamentos em geral e a redução dos conflitos na comunidade.

*Nesta sexta-feira e sábado (22 e 23/6) ocorre o I Congresso Internacional Hellinger de Direito Sistêmico, em São Paulo.

Por Sami Storch é juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, doutorando em Direito Civil (PUC-SP) e mestre em Administração Pública e Governo (Eaesp-FGV/SP). É pioneiro na aplicação das constelações familiares no sistema judiciário do Brasil e autor da expressão "Direito sistêmico".
Fonte: ConJur

quinta-feira, 14 de junho de 2018

Advogado não deve gravar audiência de conciliação, diz TED da OAB-SP

Constrangimento às partes
Para evitar qualquer constrangimento, não se justifica eticamente a gravação de audiências de conciliação. Por outro lado, não há nenhuma vedação ética que impeça o advogado de gravar as audiências de instrução e de julgamento, desde que seja feito de forma oculta.

O entendimento é da 1ª Turma de Ética Profissional do Tribunal de Ética e Disciplina da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil. No caso das audiências de instrução e julgamento, a OAB-SP indica que a gravação seja feita de forma ostensiva, sob pena de violação da lealdade com que deve ser pautada as relações processuais e as relações entre advogados.

Já quanto à audiência de conciliação, a turma entende que a gravação não é ética, pois tem a capacidade de inibir eventuais negociações, além de causar constrangimento às partes. "A gravação inibe declarações, opiniões, promessas, reconhecimentos de fatos, dentre outros atos típicos das tratativas", diz o TED da OAB-SP ao responder a uma consulta.

Segundo o colegiado, os objetivos buscados com a mediação, conciliação, judiciais ou extrajudiciais, ou mesmo em reuniões informais para esse fim entre advogados, com ou sem as partes, são contrários a que se faça gravações, sob pena de transformar o ato em busca de provas ou investigação de fatos, salvo disposição expressa das partes em sentido contrário. 

Mudança na sociedade
O advogado que, por qualquer motivo, deixa de ser sócio de um escritório, passando a atuar nele como associado, deve renunciar ao mandato anteriormente recebido para não dar a falsa impressão de pertencer à sociedade.


Segundo o TED da OAB-SP, nesses casos, o agora associado continuará atuando, porém, como advogado substabelecido com reserva de poderes, sem necessidade de comunicação ao cliente, por ser esse tipo de substabelecimento ato pessoal do advogado. "As cláusulas contratuais no contrato de associação devem ser as mais completas possíveis, detalhando-se todas as obrigações de cada uma das partes e as respectivas sanções para as hipóteses de descumprimento dessas obrigações, evitando-se conflitos desnecessários", diz a ementa. 

Causa própria
O TED da OAB-SP respondeu ainda a uma consulta sobre a possibilidade de um advogado atuar em causa própria contra a ex-empregadora. Segundo a turma, nessa hipótese não há infração ética, embora seja recomendável que se abstenha de advogar em causa própria a fim de garantir uma atuação eficiente e independente.


Em qualquer hipótese, complementa a turma de ética, deve o advogado se abster de utilizar ou divulgar informações sigilosas a que teve acesso em decorrência das funções que desempenhou na empresa, sob pena de caracterização de infração ética. A OAB-SP ressalta que nesse caso, é irrelevante o lapso temporal decorrido entre o encerramento da relação de emprego e o ajuizamento da ação judicial.

Clique aqui para ler as ementas.

Fonte: ConJur

quarta-feira, 13 de junho de 2018

A arte vai à corte

O uso de arbitragem nas controvérsias jurídico-artísticas
“Eu não gosto de literatura, disse o dr. Magalhães. Folheei algumas obras antigamente. Hoje não. Desconheço tudo isso. Sou apenas juiz, pchiu! Juiz”.

O menosprezo da fala do juiz de direito retratado no clássico “São Bernardo”, de Graciliano Ramos, revela uma equivocada convicção de que, no julgamento de uma disputa judicial, não haveria espaço para conhecimentos alheios ao universo técnico. Santa ficção! Não é nenhuma novidade que conhecimentos transjurídicos são indispensáveis no mundo do Direito.

No último dia 07 de junho, começou a funcionar a Corte de Arbitragem para a Arte (CAA na sigla em inglês), na Haia, Holanda, uma iniciativa conjunta do Netherlands Arbitration Institute e da ONG Authentication in Art, coordenada pelo advogado americano William Charron. O fato reflete um movimento crescente em busca de métodos alternativos de resolução de conflitos capazes de garantir a especialidade do julgador em temas cada vez mais transdisciplinares, como são, sem dúvida, os aspectos jurídicos do mercado de arte.

A complexidade das relações jurídicas contemporâneas, no plano doméstico ou global, impõe um conhecimento mais amplo ao julgador. No caso específico do mercado da arte, temas como procedência, autenticidade, contratualidade, desmaterialização, digitalização e direitos autorais demandam um tipo de saber especializado que ainda não foi sequer cogitado na grande maioria das Faculdades de Direito – um saber rizomático que, em lugar de conhecer quase tudo sobre quase nada, é capaz, sim, de estabelecer novas conexões entre regiões do conhecimento aparentemente incomunicáveis. Não causa surpresa, portanto, que ainda sejam muito poucos os juristas familiarizados com as peculiaridades do setor das artes visuais.

Perfis como os do juiz egípcio Mahmoud Saïd (1897-1964) ou do juiz francês Pierre Cavellat (1901-1995), que, além de magistrados competentes, eram também consagrados pintores, são como agulhas no palheiro! É bem verdade que Wassily Kandinsky, antes da pintura, foi um eminente professor de Direito Romano na Universidade de Tartu, Estônia, mas, desde o dia em que teve um êxtase durante uma apresentação do “Lohengrin”, de Wagner, no teatro Bolshoi, abandonou definitivamente o direito pela arte. Saïd e Cavellat, ao contrário, levaram carreiras paralelas durante boa parte da vida.

O risco de se submeter uma controvérsia jurídico-artística a um juiz pouco afeito às questões estéticas é enorme. A famosa (e já nonagenária) decisão do caso entre Constantin Brancusi e a alfândega dos Estados Unidos é um fantasma à espreita.

Embora a prova pericial seja sempre possível em demandas judiciais envolvendo arte, escolher o próprio especialista como julgador, atribuindo ao expert a palavra final sobre a disputa jurídico-artística, é algo possível na arbitragem privada e que pode trazer às partes economia de tempo e de recursos financeiros, em um mercado já marcado pelos altos custos de transação e por enormes especificidades técnicas e estéticas.

Ora, nessas questões, às dificuldades artísticas somam-se dificuldades jurídicas decorrentes de um mercado cada vez mais global. Um exemplo: desde 2012, o megacolecionador de arte russo Dmitry Rybolovlev vem litigando contra seu antigo “art dealer” Yves Bouvier, acusando-o de conflitos de interesses que o fizeram embolsar muitos milhões de dólares secretamente. As frentes de batalha são tribunais localizados em Mônaco, Cingapura, Hong Kong e França, envolvendo não apenas Rybolovlev e Bouvier, mas também, seguradoras, transportadoras, casas de leilão, peritos, restauradores, portos francos, galerias e até um midiático restaurador brasileiro. Com um cenário assim tão macarrônico, a lei aplicável, o juízo competente, a produção de provas, os ritos do processo, o cumprimento de sentença – tudo é fugidio.

O fortalecimento da arbitragem no meio artístico pode garantir maior previsibilidade e segurança nas transações, especialmente porque as sentenças proferidas por árbitros podem ser cumpridas em um elevado número de países signatários da Convenção de Nova Iorque Sobre Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, de 1958. A expansão da justiça privada no meio artístico é, assim, alvissareira.

Por Marcílio Toscano Franca Filho – tem pós-doutorado em direito pelo Instituto Universitário Europeu de Florença e foi Professor Visitante da Universidade de Turim, ambos na Itália. É professor de Direito da Arte na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Paraíba e membro do Ministério Público de Contas da Paraíba
Henrique Lenon Farias Guedes – advogado e doutorando em Direito Internacional na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Fonte: Jota

terça-feira, 12 de junho de 2018

Poder Judiciário não pode ser visto como único meio de solução de conflito



Ponto de vista
Em 5 de outubro de 1988 foi promulgada a Constituição, principal instrumento de redemocratização após longo período de Estado de exceção. Em meio a fortes discursos e momentos de emoção, ficaram famosas as palavras de Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte: “Declaro promulgado o documento da liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça social do Brasil. Que Deus nos ajude para que isso se cumpra!”

Não sem razão, ficaram consignadas nessas breves palavras quatro grandes missões da chamada Constituição Cidadã: liberdade, dignidade, democracia e justiça social. Passados 30 anos de vigência, podemos ver sérios problemas em todas essas áreas, que tornam a nossa amada Constituição um tanto distante da realidade percebida.
A Emenda Constitucional 45/2004, no artigo 5º, inciso 78, dispõe que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”
O novo Código de Processo Civil, cuja criação é fruto da dedicação do ministro Luiz Fux, estampou o princípio da razoável duração como um direito das partes, dos jurisdicionados (artigo 4º: As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa), mediante a conduta cooperativa de todos os sujeitos processuais, incluindo o magistrado.
Nesse aspecto, a Corregedoria exerce importante função de estímulo da postura proativa e engajada por parte dos juízes destinada à solução efetiva dos conflitos submetidos à apreciação do Judiciário.
Segundo relatório do Conselho Nacional de Justiça, o Brasil tem os juízes mais produtivos do mundo, principalmente em comparação com os juízes europeus. Cada um dos 18 mil juízes brasileiros produz, em média, 1.749 sentenças por ano contra a média de 959 dos juízes italianos, 689 dos espanhóis e 397 dos portugueses.
Apesar disso, o Brasil possui um dos Judiciários mais morosos e assoberbados do mundo. Cada instância e cada ramo da Justiça têm seus problemas específicos, mas, de modo geral, há excesso de demanda desnecessária e faltam juízes. Para cada grupo de 100 mil brasileiros, há 8,2 magistrados. Em Portugal, são 19 juízes para cada grupo de 100 mil habitantes. Na Itália, são 10,2. Na Espanha, 10,7 para cada grupo de 100 mil pessoas.
Cada juiz brasileiro recebe, em média, 1.375 casos novos por ano. Sem falar dos picos de média de até 2.900 em estados como Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul. Em Portugal, cada juiz recebe apenas 379 casos por ano. Na Itália, 667; e, na Espanha, 673. Em termos numéricos, o juiz brasileiro tem o dobro da carga de trabalho do juiz europeu. E o número de processos em tramitação em nosso país só aumenta a cada ano: atualmente, somam cerca de 109 milhões.
No entanto, culpar o cidadão por buscar seus direitos não explica a complexidade do problema da Justiça brasileira. Todo conflito de interesses deságua na Justiça, como convém a uma sociedade democrática. Com o crescimento do país, surgem nossos direitos sociais, novas relações de consumo, novos crimes etc.
Também não podemos colocar a culpa nos juízes, que trabalham intensamente. Analisando os dados, vemos que governos, bancos, companhias telefônicas e de internet e INSS são os responsáveis por boa parte das ações judiciais em tramitação no Brasil.
Problemas com serviços públicos sobrecarregam o Poder Judiciário com demandas desnecessárias ou repetitivas, que poderiam ser facilmente resolvidas pelas agências reguladoras ou pela própria administração pública. A responsabilidade pela solução dos problemas sociais e interpessoais não pode ser direcionada apenas ao Poder Judiciário.
É certo que o acesso à Justiça está previsto no artigo 5º, inciso 35 da Constituição Federal, que diz: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito.” Porém, deve-se ter em mente que o Poder Judiciário não pode ser visto como o único meio de solução de conflitos. Meios alternativos podem e devem ser utilizados evitando-se uma judicialização desnecessária, que gera ônus financeiro e dispêndio de tempo pelo Poder Judiciário.
A administração pública, maior litigante nacional, segundo pesquisa realizada pela AMB, precisa se conscientizar da importância de se adotar formas outras de solução de controvérsias contribuindo para que a Justiça destine seu tempo e sua estrutura aos demais problemas da sociedade.
O bom e integrado relacionamento entre os Poderes do Estado é essencial para a adequada condução da sociedade, de forma que, se o Executivo não presta de forma apropriada o seu serviço e não disponibiliza meios para a solução do problema, este acaba sendo direcionado ao Judiciário, avolumando o já elevado contingente de demandas judiciais e comprometendo a observância da garantia constitucional da razoável duração do processo.
Mas há maneiras de o Judiciário melhorar: a atuação integrada entre os Poderes de Estado, com vistas à “solução pacífica das controvérsias”, mencionada no preâmbulo da nossa Constituição Federal, e a estruturação planejada do Poder Judiciário, administrada com base nos fundamentos de gestão, que não se restringe ao ramo empresarial, mas se estende ao Poder Público, inclusive, com a atribuição de uma nova visão da Magistratura em que o juiz deve ser enxergado como gestor, pragmático, como agente transformador. Isso é indispensável nos tempos atuais.
Por Cláudio de Melle Tavares,  é desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e corregedor-geral de Justiça
Fonte: ConJur

quinta-feira, 7 de junho de 2018

No país da encrenca, startup fatura resolvendo conflitos entre empresas e clientes

Inspirada em experiências de conciliação que existem no exterior, startup Mediação Online quer aumentar o diálogo e diminuir custos processuais

Cerca de 80 milhões de processos circulam, atualmente, na justiça brasileira. Destes, somente um em cada 10 são resolvidos na conversa (os outros nove se acumulam). Enquanto os tribunais quebram cabeça para aumentar o diálogo — e diminuir a fila na mesa dos juízes — uma startup passou a ofertar o serviço de conciliação de forma virtual. E tem ganhado terreno. 
A Mediação Online foi criada por Melissa Gava, inspirada em experiências de fora do Brasil. Ela se formou em Direito em Roma, na Itália; fez uma bolsa na Sorbonne (França) e depois migrou para os Estados Unidos, onde começou a trabalhar com mediação.  Em um ano já intermediou 600 processos.
"O que me inspirou foi um dado real: O Brasil é o maior litigante do mundo, com praticamente um processo por pessoa. Nos Estados Unidos, onde o acesso à justiça é muito mais amplo, somente 5% dos processos vão para juízes", comenta a CEO. 
A startup chamou a atenção de grandes corporações, como o Banco Pan, que tem capital aberto na bolsa e uma carteira de mais de 4,3 milhões de clientes. Ao fechar contrato, as empresas passam um pacote de processos para a startup. Aí os mediadores entram em ação. 
A empresa conta hoje com 20 mediadores, que trabalham em home office. Podem ser profissionais de qualquer área, mas é exigido um curso de capacitação técnica de mediador (há opções disponíveis em cursos privados e do próprio Conselho Nacional de Justiça). 
Grandes empresas, em especial no setor de serviços, dispendem cifras milionárias com trâmites judiciais que poderiam muito bem terminar em acordo. Mas isso raramente acontece, mesmo com a obrigação do judiciário de marcar audiências prévias de conciliação e mediação (que passou a valer há dois anos, com o novo Código de Processo Civil). 
Na Mediação Online, o processo é todo virtual. De posse das informações cedidas pela empresa, o mediador entra em contato com as partes para agendar uma sessão. Pode ser por videoconferência, telefone ou chat. 
No dia e hora marcados, entram as duas partes e o mediador na sala virtual. A conversa dura, geralmente, uma hora. Se necessário é marcada uma segunda sessão. Mas dificilmente passa de três. 
Se houver consenso, o mediador emite um acordo, envia para assinatura digital na mesma hora, e gera um termo extrajudicial. Se o caso já está ajuizado, no entanto, os advogados precisam homologar o termo de ação para encerrar o caso e gerar um título judicial. 
Ganhar no volume
A estratégia da startup é ganhar no volume. Fechar um pacote de 10 mil processos de uma vez, por exemplo, e aproveitar a agilidade da ferramenta virtual para resolvê-los rapidamente. 
Os clientes pagam um valor por sessão, além de bônus por performance. Um valor adicional para resolução de 50% dos casos, por exemplo. As metas, bem como os valores de remuneração, são estabelecidas no contrato, caso a caso. 
Não há nenhum tipo de cobrança da pessoa física. A empresa também não retém nenhum porcentual do acordado. Caso uma mediação resulte em indenização, por exemplo, o consumidor recebe 100% do valor acordado. 
A startup cobra ainda uma mensalidade pelo uso da plataforma. O que dá direito a uma série de relatórios analíticos dos acordos. 
Embora não seja o foco do negócio, a Mediação Online também está aberta para pessoas físicas. É possível resolver, por lá, um processo de divórcio, por exemplo. Neste caso não há necessidade de pagar licença de uso para a plataforma. 
Fonte: Gazeta do Povo