quarta-feira, 13 de junho de 2018

A arte vai à corte

O uso de arbitragem nas controvérsias jurídico-artísticas
“Eu não gosto de literatura, disse o dr. Magalhães. Folheei algumas obras antigamente. Hoje não. Desconheço tudo isso. Sou apenas juiz, pchiu! Juiz”.

O menosprezo da fala do juiz de direito retratado no clássico “São Bernardo”, de Graciliano Ramos, revela uma equivocada convicção de que, no julgamento de uma disputa judicial, não haveria espaço para conhecimentos alheios ao universo técnico. Santa ficção! Não é nenhuma novidade que conhecimentos transjurídicos são indispensáveis no mundo do Direito.

No último dia 07 de junho, começou a funcionar a Corte de Arbitragem para a Arte (CAA na sigla em inglês), na Haia, Holanda, uma iniciativa conjunta do Netherlands Arbitration Institute e da ONG Authentication in Art, coordenada pelo advogado americano William Charron. O fato reflete um movimento crescente em busca de métodos alternativos de resolução de conflitos capazes de garantir a especialidade do julgador em temas cada vez mais transdisciplinares, como são, sem dúvida, os aspectos jurídicos do mercado de arte.

A complexidade das relações jurídicas contemporâneas, no plano doméstico ou global, impõe um conhecimento mais amplo ao julgador. No caso específico do mercado da arte, temas como procedência, autenticidade, contratualidade, desmaterialização, digitalização e direitos autorais demandam um tipo de saber especializado que ainda não foi sequer cogitado na grande maioria das Faculdades de Direito – um saber rizomático que, em lugar de conhecer quase tudo sobre quase nada, é capaz, sim, de estabelecer novas conexões entre regiões do conhecimento aparentemente incomunicáveis. Não causa surpresa, portanto, que ainda sejam muito poucos os juristas familiarizados com as peculiaridades do setor das artes visuais.

Perfis como os do juiz egípcio Mahmoud Saïd (1897-1964) ou do juiz francês Pierre Cavellat (1901-1995), que, além de magistrados competentes, eram também consagrados pintores, são como agulhas no palheiro! É bem verdade que Wassily Kandinsky, antes da pintura, foi um eminente professor de Direito Romano na Universidade de Tartu, Estônia, mas, desde o dia em que teve um êxtase durante uma apresentação do “Lohengrin”, de Wagner, no teatro Bolshoi, abandonou definitivamente o direito pela arte. Saïd e Cavellat, ao contrário, levaram carreiras paralelas durante boa parte da vida.

O risco de se submeter uma controvérsia jurídico-artística a um juiz pouco afeito às questões estéticas é enorme. A famosa (e já nonagenária) decisão do caso entre Constantin Brancusi e a alfândega dos Estados Unidos é um fantasma à espreita.

Embora a prova pericial seja sempre possível em demandas judiciais envolvendo arte, escolher o próprio especialista como julgador, atribuindo ao expert a palavra final sobre a disputa jurídico-artística, é algo possível na arbitragem privada e que pode trazer às partes economia de tempo e de recursos financeiros, em um mercado já marcado pelos altos custos de transação e por enormes especificidades técnicas e estéticas.

Ora, nessas questões, às dificuldades artísticas somam-se dificuldades jurídicas decorrentes de um mercado cada vez mais global. Um exemplo: desde 2012, o megacolecionador de arte russo Dmitry Rybolovlev vem litigando contra seu antigo “art dealer” Yves Bouvier, acusando-o de conflitos de interesses que o fizeram embolsar muitos milhões de dólares secretamente. As frentes de batalha são tribunais localizados em Mônaco, Cingapura, Hong Kong e França, envolvendo não apenas Rybolovlev e Bouvier, mas também, seguradoras, transportadoras, casas de leilão, peritos, restauradores, portos francos, galerias e até um midiático restaurador brasileiro. Com um cenário assim tão macarrônico, a lei aplicável, o juízo competente, a produção de provas, os ritos do processo, o cumprimento de sentença – tudo é fugidio.

O fortalecimento da arbitragem no meio artístico pode garantir maior previsibilidade e segurança nas transações, especialmente porque as sentenças proferidas por árbitros podem ser cumpridas em um elevado número de países signatários da Convenção de Nova Iorque Sobre Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, de 1958. A expansão da justiça privada no meio artístico é, assim, alvissareira.

Por Marcílio Toscano Franca Filho – tem pós-doutorado em direito pelo Instituto Universitário Europeu de Florença e foi Professor Visitante da Universidade de Turim, ambos na Itália. É professor de Direito da Arte na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Paraíba e membro do Ministério Público de Contas da Paraíba
Henrique Lenon Farias Guedes – advogado e doutorando em Direito Internacional na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Fonte: Jota

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