O uso de arbitragem nas controvérsias jurídico-artísticas
“Eu
não gosto de literatura, disse o dr. Magalhães. Folheei algumas obras
antigamente. Hoje não. Desconheço tudo isso. Sou apenas juiz, pchiu!
Juiz”.
O menosprezo da fala do juiz de direito retratado no
clássico “São Bernardo”, de Graciliano Ramos, revela uma equivocada
convicção de que, no julgamento de uma disputa judicial, não haveria
espaço para conhecimentos alheios ao universo técnico. Santa ficção! Não
é nenhuma novidade que conhecimentos transjurídicos são indispensáveis
no mundo do Direito.
No último dia 07 de junho, começou a funcionar a
Corte de Arbitragem para a Arte (CAA na sigla em inglês), na Haia,
Holanda, uma iniciativa conjunta do Netherlands Arbitration Institute e
da ONG Authentication in Art, coordenada pelo advogado americano William
Charron. O fato reflete um movimento crescente em busca de métodos
alternativos de resolução de conflitos capazes de garantir a
especialidade do julgador em temas cada vez mais transdisciplinares,
como são, sem dúvida, os aspectos jurídicos do mercado de arte.
A complexidade das relações jurídicas contemporâneas,
no plano doméstico ou global, impõe um conhecimento mais amplo ao
julgador. No caso específico do mercado da arte, temas como procedência,
autenticidade, contratualidade, desmaterialização, digitalização e
direitos autorais demandam um tipo de saber especializado que ainda não
foi sequer cogitado na grande maioria das Faculdades de Direito – um
saber rizomático que, em lugar de conhecer quase tudo sobre quase nada, é
capaz, sim, de estabelecer novas conexões entre regiões do conhecimento
aparentemente incomunicáveis. Não causa surpresa, portanto, que ainda
sejam muito poucos os juristas familiarizados com as peculiaridades do
setor das artes visuais.
Perfis como os do juiz egípcio Mahmoud Saïd
(1897-1964) ou do juiz francês Pierre Cavellat (1901-1995), que, além de
magistrados competentes, eram também consagrados pintores, são como
agulhas no palheiro! É bem verdade que Wassily Kandinsky, antes da
pintura, foi um eminente professor de Direito Romano na Universidade de
Tartu, Estônia, mas, desde o dia em que teve um êxtase durante uma
apresentação do “Lohengrin”, de Wagner, no teatro Bolshoi, abandonou
definitivamente o direito pela arte. Saïd e Cavellat, ao contrário,
levaram carreiras paralelas durante boa parte da vida.
O risco de se submeter uma controvérsia
jurídico-artística a um juiz pouco afeito às questões estéticas é
enorme. A famosa (e já nonagenária) decisão do caso entre Constantin
Brancusi e a alfândega dos Estados Unidos é um fantasma à espreita.
Embora a prova pericial seja sempre possível em
demandas judiciais envolvendo arte, escolher o próprio especialista como
julgador, atribuindo ao expert a palavra final sobre a disputa
jurídico-artística, é algo possível na arbitragem privada e que pode
trazer às partes economia de tempo e de recursos financeiros, em um
mercado já marcado pelos altos custos de transação e por enormes
especificidades técnicas e estéticas.
Ora, nessas questões, às dificuldades artísticas
somam-se dificuldades jurídicas decorrentes de um mercado cada vez mais
global. Um exemplo: desde 2012, o megacolecionador de arte russo Dmitry
Rybolovlev vem litigando contra seu antigo “art dealer” Yves Bouvier,
acusando-o de conflitos de interesses que o fizeram embolsar muitos
milhões de dólares secretamente. As frentes de batalha são tribunais
localizados em Mônaco, Cingapura, Hong Kong e França, envolvendo não
apenas Rybolovlev e Bouvier, mas também, seguradoras, transportadoras,
casas de leilão, peritos, restauradores, portos francos, galerias e até
um midiático restaurador brasileiro. Com um cenário assim tão
macarrônico, a lei aplicável, o juízo competente, a produção de provas,
os ritos do processo, o cumprimento de sentença – tudo é fugidio.
O fortalecimento da arbitragem no meio artístico pode
garantir maior previsibilidade e segurança nas transações,
especialmente porque as sentenças proferidas por árbitros podem ser
cumpridas em um elevado número de países signatários da Convenção de
Nova Iorque Sobre Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais
Estrangeiras, de 1958. A expansão da justiça privada no meio artístico
é, assim, alvissareira.
Por Marcílio Toscano Franca Filho – tem pós-doutorado em
direito pelo Instituto Universitário Europeu de Florença e foi Professor
Visitante da Universidade de Turim, ambos na Itália. É professor de
Direito da Arte na Faculdade de Direito da Universidade Federal da
Paraíba e membro do Ministério Público de Contas da Paraíba
Henrique Lenon Farias Guedes – advogado e doutorando em Direito Internacional na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Henrique Lenon Farias Guedes – advogado e doutorando em Direito Internacional na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Fonte: Jota
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