O objetivo desse artigo é demonstrar de que forma é possível compatibilizar os princípios da resolução consensual de conflitos com os princípios jurídicos que regem a atuação da administração pública brasileira, a fim de ampliar cada vez mais a utilização desse caminho pelos entes públicos, seja no processo administrativo, seja no processo judicial, tendo em vista as vantagens trazidas em termos de celeridade, menores custos e satisfação das partes envolvidas nos conflitos, ou seja, em termos de acesso à Justiça.
Para cumprir esse propósito, em primeiro lugar, cabe analisar de que forma os cinco princípios básicos expressos no artigo 37, caput, da Constituição Federal ou outras exigências do regime jurídico-constitucional afetam seja o conteúdo de eventuais acordos envolvendo o poder público, seja o procedimento em si de negociação (direta ou facilitada por um terceiro, como na mediação e na conciliação). Em segundo lugar, cabe analisar se acaso existe, como sustentam alguns doutrinadores, alguma incompatibilidade entre a utilização dos métodos consensuais e outros princípios não expressos, mas que também são reconhecidos como legitimadores e norteadores da atuação da administração pública no Brasil, notadamente o princípio da indisponibilidade do interesse público e o princípio da supremacia do interesse público sobre o(s) particular(es).
Começando, então, pelos cinco princípios acima referidos, importa reconhecer que dois deles afetam de modo muito relevante o conteúdo dos acordos (sem negar que isso tenha reflexos no próprio procedimento), impondo-lhes limites materiais significativos: os princípios da legalidade e da isonomia.
O princípio da legalidade (ou da juridicidade) tem importância primordial, pois é ele que define toda a moldura de eventual acordo, vale dizer, o ponto de partida da negociação é identificar o quadro normativo aplicável ao tema, começando pelo texto constitucional, passando pelas espécies normativas primárias (leis complementares, ordinárias, etc) e chegando ao nível infralegal (Decretos e outras normas regulamentares). Isso porque acordo que viole norma vigente será evidentemente anulável, portanto, certamente não terá solucionado o conflito. Reconhecer esses limites, entretanto, de forma alguma inviabiliza a negociação, já que normas jurídicas possuem lacunas, contradições aparentes a serem sanadas, espaços intencionais de discricionariedade a serem preenchidos em casos concretos e seu texto muitas vezes comporta múltiplas interpretações – sendo possível e necessário, portanto, construir uma interpretação consensual para solucionar o conflito. Isso não implica afastar a possibilidade de que o próprio acordo contemple alguma alteração normativa, requerendo, nesse caso, aprovação da(s) autoridade(s) competente(s) para que possa produzir efeitos.
Quanto ao princípio da isonomia, ele representa fator extremamente relevante sempre que o conflito for de natureza repetitiva, como se dá em matéria tributária e previdenciária (em se tratando de interpretação normativa, não esclarecimentos fáticos), por exemplo, mas também em qualquer outra situação que possa se repetir no futuro. O poder público, como se sabe, fica vinculado ao “efeito precedente”, a menos que as normas se alterem ou que a situação não seja exatamente similar (e a distinção seja juridicamente relevante). Em outras palavras, qualquer acordo que seja firmado por ente público necessita ser universalizável para situações semelhantes, o que deveria sempre ter a consequência de que, antes de apresentar propostas ou firmar acordos, entes públicos fizessem a verificação sobre a eventual existência de situações semelhantes. Isso porque muitos acordos têm impactos nas receitas públicas ou implicam capacidade técnica de cumprimento e isso deverá ser verificado previamente à luz do conjunto de situações idênticas. Naturalmente, essa cautela tem duas consequências do ponto de vista temporal: a) sempre que se tratar do primeiro caso em determinada matéria, será despendido um tempo extra verificando se há situações semelhantes e em que número, tornando mais lento o processo decisório; b) nos demais casos, o poder público já terá uma proposta formulada para celebração de acordo, baseada nos parâmetros que definiu da primeira vez.
Já um outro princípio afetará sobremaneira o procedimento a ser adotado em eventual mediação ou mesmo negociação direta de qualquer conflito que envolva ao menos um ente público: trata-se do princípio da publicidade. Como se sabe, a confidencialidade é um dos princípios da mediação, fazendo que as partes fiquem à vontade para se expor, sobretudo nas sessões privadas com mediadores, sabendo que não se poderá produzir provas contra elas durante a mediação. Ocorre que, em caso de conflitos envolvendo entes públicos, quase toda a informação ali discutida já é pública por natureza, não se tornando confidencial em razão da mediação. A publicidade, então, se torna a regra, a não ser em casos de exceções legais, tais como segredo de Estado, sigilo comercial, sigilo industrial, segredo empresarial, proteção à intimidade e vida privada. Também podem as partes, naturalmente, solicitar sigilo ao mediador em relação a informações reveladas nas sessões privadas que não sejam públicas por natureza.
Quanto aos outros dois princípios, cumpre reconhecer, com relação ao princípio da eficiência administrativa, que ele é um dos principais fundamentos que justificam, recomendam ou mesmo obrigam à utilização do caminho consensual, tendo em vista as vantagens temporais, econômicas e ainda qualitativas em termos de relacionamento entre as partes e satisfação com o desfecho. Compete ao poder público sempre optar pelo caminho mais rápido, menos oneroso e que tenha potencial de trazer o melhor resultado, ou seja, que apresente a melhor relação entre custos e benefícios – tudo isso culminando na opção pela construção da solução por via do diálogo. Já o princípio da moralidade não apresenta feição específica na resolução consensual de conflitos – tem incidência, obviamente, mas isso não afeta em nada o que já de ordinário se realiza nesse cenário.
No que toca ao regime jurídico-constitucional da administração pública, é importante ressaltar, por último, que, justamente em razão da incidência dos princípios da legalidade, da isonomia e da publicidade, há necessidade de uma cautela adicional inexistente em boa parte dos conflitos privados (ao menos os que envolvem apenas direitos disponíveis): a fundamentação do acordo. Como bem sabemos, a Constituição Federal estabelece o dever de fundamentação ou motivação de todas as decisões administrativas e judiciais, exatamente com o propósito de aferir sua observância às normas jurídicas aplicáveis, à luz da situação concreta. É de se reconhecer que a celebração de acordos, seja em processos administrativos ou judiciais, não passa de uma outra forma (mais democrática e dialógica) de tomar decisões administrativas ou solucionar conflitos judiciais. Deve, assim, ser observada a exigência de fundamentação, pois, como quaisquer outras decisões administrativas, a celebração de acordos se sujeita ao controle de órgãos de controle interno (as Corregedorias), externo (as Cortes de Contas), controle do Ministério Público (quando ele já não tenha participado do processo), controle judicial e, naturalmente, também controle social.
Cabe agora analisar se e em que medida o princípio da indisponibilidade do interesse público obstaculiza a utilização dos métodos consensuais de solução de conflitos pelo poder público. Deve-se reconhecer que o interesse público tem o conteúdo e a medida que a ordem jurídica lhe confere. Sua intensidade é muito menor, por exemplo, em matéria tributária, por se tratar de interesse público secundário, subordinado à realização das finalidades estatais. Assim, a legislação vez ou outra concede reduções ou remissões de dívidas tributárias, bem como isenções tendo em conta interesses públicos primários. O simples respeito aos limites normativos, portanto, já atende ao princípio da indisponibilidade do interesse público. Ademais, vale referir que, no Direito brasileiro, há diversas previsões legais de celebração de acordos ou transações em matéria indisponível, começando pelo próprio Direito Privado (guarda e visita aos filhos, em caso de divórcio, por exemplo, desde a legislação de 1977) e passando por inúmeros temas de natureza coletiva (a primeira previsão foi introduzida na Lei 7.347/1985 — artigo 5º, § 6º — pelo Código de Defesa do Consumidor, admitindo-se a celebração de Termo de Ajuste de Conduta em todas as matérias tuteláveis por ação civil pública). O conceito de indisponibilidade, vale esclarecer, implica a impossibilidade de renunciar, transferir a terceiro ou vender, no todo ou em parte, o conteúdo do direito, não implicando porém a proibição de buscar soluções consensuais para garantir o seu exercício.
Por fim, quanto ao princípio da supremacia do interesse público sobre os particulares, a situação não é diferente. A Constituição Federal, ao proteger e garantir os chamados direitos fundamentais, sejam os individuais ou os coletivos, não trouxe hierarquia entre eles, mas trouxe limites e definiu, ao menos em parte, os seus contornos. Não é possível estabelecer que em todas as situações interesses públicos prevalecem sobre particulares, mas soluções para esses eventuais impasses devem ser buscadas no quadro normativo, começando pelo texto constitucional (os exemplos clássicos são o instituto da desapropriação e o exercício do poder de polícia, mas em outras tantas situações a atuação do poder público está sim limitada por direitos individuais — de natureza privada, portanto). Importa notar ainda que interesses públicos também colidem entre si, como ocorre com políticas públicas que disputam espaços territoriais ou recursos orçamentários limitados, de modo que ideias como a da supremacia ou da indisponibilidade do interesse público não se prestam a fornecer qualquer pista de solução em situações como essas.
Tudo quanto foi exposto leva a reconhecer que é perfeitamente viável utilizar o caminho consensual para resolver conflitos envolvendo o poder público — somente não é possível fazer isso sem consideração aos limites apontados.
Por Luciane Moessa de Souza é pós-doutora em Direito Econômico e Financeiro pela USP. Procuradora do Banco Central do Brasil (atualmente licenciada sem remuneração) e fundadora da Soluções Inclusivas Sustentáveis. Coordenou curso sobre Resolução Consensual de Conflitos Coletivos envolvendo Políticas Públicas oferecido pelo Ministério da Justiça e atuou na Câmara de Conciliação da Advocacia-Geral da União.
Fonte: ConJur
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