Philip Green
A resolução alternativa de conflitos (ADR) consiste na utilização de mecanismos para dirimir conflitos sem a interferência do Estado e seu Poder Judiciário, tais como a conciliação, a mediação, a arbitragem e, inclusive, a negociação. Embora os métodos ADR tenham retornado ao centro dos holofotes nos últimos vinte anos, a verdade é que eles antecedem o surgimento da sociedade contemporânea (ou da nossa sociedade).
De fato, apesar de não haver um registro
preciso que indique o momento exato em que esses métodos surgiram na
história da humanidade, há indícios de que sua utilização preceda a
própria formação do Estado Democrático de Direito e suas instituições. O
motivo disso é simples: uma vez que, entre os povos antigos, não havia
um estado organizado dotado de estrutura judiciária, formas alternativas
de composição representavam a regra dentre os meios disponíveis para
solucionar os conflitos entre as pessoas. Há, inclusive, evidências do
uso da mediação na Mesopotâmia há mais de cinco mil anos.[1]
Da mesma forma, em um passado menos remoto, há registros de utilização frequente dos métodos ADR na Inglaterra Medieval.[2]
Contudo, com a formação dos Estados na Europa Central, unificados sob o
absolutismo dos monarcas, os métodos alternativos de resolução de
controvérsias foram perdendo espaço aos poucos. Ao longo da história, as
políticas mercantilistas acabaram por torná-los ora obsoletos, ora
auxiliares ao complexo judiciário, uma vez que o estado interventor
precisava manter o monopólio jurisdicional. Partindo da premissa de que o
Estado soberano, como conhecemos hoje, nem sempre existiu, é de se
questionar se os métodos ADR não são, de fato, os métodos tradicionais
de resolução de disputas.
De toda forma, é constatável, portanto,
que, pela dinâmica da transformação das civilizações, a resolução de
disputas nunca alcançou um estado da arte estável e perene; o que
ocorreu, na realidade, foi sua constante mutação para que os indivíduos
encontrassem a melhor forma de resolver suas diferenças.
Atualmente, com o surgimento da rede
mundial de computadores e, consequentemente, a criação de atividades
comerciais realizadas exclusivamente via internet, como, por exemplo, o e-commerce[3], instituiu-se a necessidade de criação de uma nova modalidade de resolução de conflitos que se desenvolvesse puramente online. Desse contexto, surge a Online Dispute Resolution (ODR) que pode abranger várias técnicas específicas de ADR[4],
enquanto utiliza-se de uma rede como local virtual para a solução de
uma disputa. É, verdadeiramente, o casamento da tecnologia da informação
com os meios alternativos de resolução de controvérsias.
Com efeito, os meios da ODR objetivam
facilitar tanto o acesso à justiça, devido a desburocratização e a
diminuição de custos, quanto resolver disputas de forma mais célere e
eficientes que os métodos ADR tradicionais. Em suma, o instituto surge
com a necessidade de derrubar todos os obstáculos presentes nas
modalidades offline (tradicionais) de resolução de disputas.
Os precursores da ODR foram os
professores Ethan Katsh e Janet Rifkin, os quais, em 1997, fundaram o
National Center for Technology and Dispute Resolution (NCDR), vinculado à
Universidade de Massachussets, com o objetivo de fomentar tecnologia da
informação e gerenciamento de conflitos[5], e escreveram o primeiro livro sobre o tema em 2001[6].
Após isso, diversas instituições renomadas passaram a explorar a ODR,
tais como o Departamento de Comércio dos Estados Unidos da América, a
Organização Mundial de Propriedade Intelectual (WIPO), e a Conferência
de Haia sobre Direito Internacional Privado.[7]
Como exemplo prático, há o SquareTrade,
um dos sistemas pioneiros da ODR, utilizado pela eBay, gigante do
comércio eletrônico, para resolver as disputas entre os usuários que se
utilizam da sua plataforma de compra e venda (consumer to consumer
ou C2C). Para quem não conhece, o eBay é uma plataforma global de
negociações, onde qualquer pessoa cadastrada pode anunciar e adquirir
bens de outros usuários. O sistema de resolução de disputas permite que
compradores e vendedores insatisfeitos abram reclamações a custo zero.
Por meio de algoritmos[8], o software guia os usuários através de uma série de perguntas e explicações a fim de ajudá-los a alcançar uma solução amigável[9].
Além do método exclusivamente
autocompositivo sem a intervenção de um terceiro, o sistema oferece,
ainda, a opção da contratação de um mediador no ambiente virtual pela
singela quantia de US$ 15,00, o restante dos custos é subsidiado pelo
eBay[10].
A fórmula, ao mesmo tempo simples e inovadora, é um sucesso estrondoso,
sendo responsável por resolver a marca de sessenta milhões de disputas
entre seus usuários por ano[11].
Nessa onda, outros softwares
foram desenvolvidos com arquiteturas semelhantes para resolver disputas
de forma análoga. Em 2002, o Ministério da Justiça da Inglaterra e do
País de Gales, lançou o programa Money Claim Online que permite que
usuários possam “ajuizar” ações de cobrança no valor de até £
100.000,00. A informação é de que essas cortes virtuais são capazes de
resolver mais de 60.000 casos por ano[12].
Em 2009, no mesmo sentido, a União
Europeia emanou a Diretiva nº 2009/22/EC regulando a utilização de uma
plataforma ODR para a resolução de conflitos envolvendo consumidores dos
países membros[13]. No mês de fevereiro de 2016, o software foi
lançado ao público com a finalidade de permitir que consumidores e
fornecedores ou prestadores de serviços resolvessem suas disputas de uma
forma rápida e fora dos tribunais[14].
Embora a ODR esteja se expandido a todo o
vapor no mundo, os seus métodos ainda estão restritos a controvérsias
mais simples e que se adéquam a parâmetros pré-definidos. No estágio
atual das coisas, ainda é praticamente inimaginável cogitar-se da sua
utilização em causas complexas, com valores vultosos em jogo, e que
demandem a produção de provas volumosas ou complexas[15].
Os litígios envolvendo o direito do
consumidor, que, na maior parte das vezes, têm como pano de fundo
questões de fato e de direito extremamente simples, representam uma
grande fatia do acervo judiciário[16].
Para se ter uma ideia, de 2006 a 2012, o número de processos envolvendo
questões consumeristas quadruplicou no Supremo Tribunal Federal,
conforme apontou estudo da Fundação Getúlio Vargas[17].
Se o aparato da justiça fosse amplamente acessível, barato e rápido, o
presente artigo sequer existiria, mas a verdade, como sabemos, é outra: o
Poder Judiciário está superlotado e a máquina pública, à beira de um
colapso. Litigar convencionalmente nos tribunais é custoso, lento e,
muitas vezes, ineficiente[18].
No Brasil, timidamente, softwares de
ODR vêm ganhando espaço. No banco de dados da Associação Brasileira de
Lawtechs & Legaltechs (AB2L) – entidade que visa apoiar o
desenvolvimento de empresas que oferecem produtos ou serviços inovadores
por meio do uso de recursos tecnológicos para a área jurídica –,
encontramos as empresas Acordo Fechado, Concilie Online, eConciliar,
Jussto, Mol e Sem Processo, as quais prestam serviços de resolução de
disputas no campo virtual[19].
Contudo, em pesquisa nacional sobre o cenário de tecnologias para o
mercado jurídico realizada pela referida associação, verificou-se que a
demanda do mercado por plataformas de negociações de acordo é de apenas
2%[20].
A nosso ver, a baixa procura por ODR se
deve em grande parte por conta da falta do conhecimento dos potenciais
usuários acerca dos benefícios de resolver suas controvérsias através de
uma plataforma online[21]. Embora
poucos advogados e escritórios de advocacia levem o ODR a sério, é
certo que, em um curto espaço de tempo, essa forma virtual e alternativa
de resolver conflitos causará uma ruptura na área mais antiga e perene
da prestação de serviços advocatícios: o litígio. Nas palavras do
professor Richard Susskind, inevitavelmente, os métodos ODR tomarão de
assalto esse mercado, fazendo surgir uma excelente oportunidade para
novos players assumirem esse setor inexplorado[22].
Sem dúvidas, a propagação em massa dos
métodos ODR servirá para melhorar o acesso à justiça e aumentar a
pacificação social, uma vez que eles seriam capazes de reduzir a
judicialização de conflitos corriqueiros e de natureza mais simples, mas
que representam parte substancial da massa de litígios. Além disso, os
ODRs são perfeitamente adequados para desonerar a máquina pública,
permitindo que a arrecadação tributária seja destinada para outros fins
mais urgentes. Como sociedade, devemos pensar melhor se realmente
queremos investir uma larga parcela dos nossos limitados recursos
públicos no Poder Judiciário quando existem alternativas mais velozes e
menos custosas à disposição. A eficiência proporcionada pelos métodos de
ODR é também uma questão de justiça social.
[1]“A doutrina costuma afirmar que, nas contendas entre as primitivas tribos, existiam procedimentos pacíficos, tais como mediação e arbitragem. Na base da especulação sobre as possíveis soluções de contendas entre Egito, Creta, Assíria e Babilônia, supõe-se que a mediação fosse empregada, citando-se, mesmo, um caso de arbitragem entre Cidades-Estado da Babilônia, cerca do ano 3000 antes de Cristo. Ainda no Oriente antigo, menciona-se o caso dos hebreus, que, na câmara composta de três árbitros, a Beth-Din, resolviam todas as pendências de direito privado, pela via arbitral.” (LEMOS, Luciano Braga; LEMOS, Rodrigo Braga. A arbitragem e o direito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 21)
[2] BORN, Gary. Beach Books, for International Arbitration Lawyers. Kluwer Arbitration Blog. Disponível em: http://kluwerarbitrationblog.com/blog/2013/07/26/beach-books-for-international-arbitration-lawyers/– Acesso em 23 de maio 2017.
[3] KATSH, Ethan; RIFKIN, Janet; GAITENBY, Alan. E-Commerce, E-Disputes, and E-Dispute Resolution: In the Shadow of “eBay Law”. University of Massachusetts Review. Disponível em: http://www.umass.edu/cyber/katsh.pdf – Acesso em 21 de junho 2017.
[4] SCHULTZ, Thomas et al. Online Dispute Resolution: the state of the art and the issues. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=899079 – Acesso em 21 de junho 2017.
[5] NCDR. Mission. The National Center for Technology and Dispute Resolution. Disponível em: http://odr.info/mission/ – Acesso em 01 de maio 2017.
[6] KATSH, Ethan; RIFKIN, Janet. Online Dispute resolution – resolving conflicts in cyberspace. Nova York: John Wiley & Sons, 2001.
[7] BETANCOURT, Julio César; ZLATANSKA, Elina. Online Dispute Resolution (ODR): What is it, and is it the Way Forward? International Journal of Arbitration, Mediation and Dispute Management, Issue 3, 2013. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=2325422 – Acesso em 01 de maio 2017.
[8] BECKER, Daniel; LAMEIRÃO, Pedro. Filosofia e algoritmos: o dilema moral dos carros autônomos. Direito da Inteligência Artificial. Disponível em: https://direitodainteligenciaartificial.com/2017/07/28/filosofia-e-algoritmos-o-dilema-moral-dos-carros-autonomos/ – Acesso em 19 de ago 2017.
[9] MATLACK, Carol. Robots Are Taking Divorce Lawyers’ Jobs, Too: Online tools that are cheaper than lawyers improve access to justice. Bloomberg BusinessWeek. Disponível em: https://www.bloomberg.com/news/articles/2016-06-30/robots-are-taking-divorce-lawyers-jobs-too – Acesso em 01 de maio 2017.
[10] EBAY. Dispute Resolution Overview. ebay. Disponível em: http://pages.ebay.com/services/buyandsell/disputeres.html – Acesso em 02 de mai. 2017.
[11] BBC. eBay-style online courts could resolve smaller claims. BBC News. Disponível em: http://www.bbc.com/news/uk-31483099 – Acesso em 02 de maio de 2017.
[12] SUSSKIND, Richard. Tomorrow’s Lawyers: an introduction to your future. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 102.
[13] READE, Emma. Changing the dispute resolution culture – will the EU consumer disputes legislation lead to an increased awareness of ADR in Member States? Kluwe Mediation Blog. Disponível em: http://kluwermediationblog.com/2016/04/04/changing-the-dispute-resolution-culture-will-the-eu-consumer-disputes-legislation-lead-to-an-increased-awareness-of-adr-in-member-states-2/ – Acesso em 09 de maio 2017.
[14] Comissão Europeia. Alternative and Online Dispute Resolution (ADR/ODR). Disponível em http://ec.europa.eu/consumers/solving_consumer_disputes/non-judicial_redress/adr-odr/index_en.htm – Acesso em 09 de maio 2017.
[15] KALLEL, Sami. Online Arbitration. Journal of International Arbitration, vol. 24, nº 3, Haia: Kluwer Law International, 2008, p. 351-353.
[16] FLÁVIO DE OLIVEIRA, Amanda. Garantias do consumo: Em seus 25 anos, Código de Defesa do Consumidor ampliou acervo do Judiciário. Consultor Jurídico. Disponível em http://www.conjur.com.br/2016-fev-03/garantias-consumo-25-anos-cdc-ampliou-acervo-judiciario – Acesso em 09 de maio 2017.
[17] Valor Econômico. Supremo em Números mostra explosão de ações de consumidor. Legislação. Disponível em http://www.valor.com.br/legislacao/3243360/supremo-em-numeros-mostra-explosao-de-acoes-de-consumidor – Acesso em 09 de maio 2017.
[18] SUSSKIND, Richard. Tomorrow’s Lawyers: an introduction to your future. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 96.
[19] AB2L. Associação Brasileiro de Lawtechs & Legaltechs. Disponível em: http://www.ab2l.net.br/ – Acesso em 16 de ago. 2017.
[20] STARTUPI. AB2L apresenta primeira pesquisa nacional sobre o cenário de lawtechs e legaltechs. StartUpi. Disponível em: https://startupi.com.br/2017/07/ab2l-apresenta-primeira-pesquisa-nacional-sobre-o-cenario-de-lawtechs-e-legaltechs/ – Acesso em 16 de ago. 2017.
[21] MAIA, Andrea. Elementary My Dear Watson! Kluwer Mediation Blog. Disponível em:
http://kluwermediationblog.com/2017/08/08/elementary-dear-watson/ – Acesso em 17 de ago. 2017.
[22] SUSSKIND, Richard. Tomorrow’s Lawyers: an introduction to your future. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 102.
Por Daniel Becker e Pedro Lameirão
Fonte: Direito da Inteligência Artificial
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