segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

A Promessa de um Sistema Multiportas e a Inclusão da Mediação no Novo Código de Processo Civil



Doutrina
1. A Expansão dos Meios de Resolução de Conflito
O processualista mo­derno é, em verdade, um crítico, capaz de perceber que o bom proces­so conduz à garantia de efe­tiva Justiça ao maior número possível de pessoas, em tem­po razoável e com qualidade suficiente; assim, busca-se a universalização da tutela ju­risdicional, para que o acesso ao Poder Judiciário não seja apenas uma promessa formal, mas, sim, uma realidade1. Ele é, ainda, aquele que reconhe­ce que o acesso ao judiciário estatal não é suficiente para garantir a forma mais adequa­da de resolução das inúmeras facetas de conflito existentes2.

Essa nova postura do processualista é fruto de mu­dança de atitude gradativa, observada por Mauro Cappel­letti e Bryant Garth em três movimentos principiados em 1965, denominados de ondas renovatórias3: a primeira de­las, relacionada à assistência judiciária para as pessoas de baixa renda; a segunda, à pre­ocupação com os direitos difu­sos (coletivos como um todo); e a terceira, visando à reforma interna da técnica processual de acordo com seus pontos sensíveis4. A terceira onda, e mais recente, foi chamada por Cappelletti e Garth de “enfoque de acesso à justiça”; esta, além de incluir as propostas anteriores, representava uma “tentativa de atacar as barreiras ao acesso de modo mais articulado e compreensivo”, abrangendo o claro incentivo aos chamados “meios alternativos de resolução de disputas” (ADRs) como formas de resolução abrangendo maior proximidade das partes e menor formalismo5.

A fórmula de acesso à justiça visualizada por esses doutrinadores engloba, portanto, a obtenção de resultados justos, pelo meio mais adequado e em tevmpo razoável. Nas palavras de Cappelletti e Garth, “o ‘acesso’ não é apenas um direito social fundamental, crescentemente reconhecido; ele é, também, necessariamente, o ponto central da moderna processualística. Seu estudo pressupõe um alargamento e aprofundamento dos objetivos e métodos da moderna ciência jurídica.”6

Percebe-se, portanto, a existência de viés do acesso à justiça relacionado à expansão dos meios de resolução de conflitos. De fato, o que passou a se desenvolver desde a terceira onda renovatória de Cappelletti não foi apenas a ampliação ao acesso exclusivo ao judiciário estatal7, mas, sim, a expansão de acesso às formas ditas, num primeiro momento, “alternativas” de resolução de conflito - e, hoje, já firmadas como métodos adequados de resolução de disputas.

É sabido, por um lado, que a hegemonia do judiciário estatal como única forma de resolução de conflitos de há muito é questionada e criticada; por outro, é certo que a possibilidade de convivência do processo judicial com mecanismos ditos “alternativos” de resolução de disputas – como, por exemplo, a mediação, a arbitragem, a conciliação e a negociação - não é novidade8.

Realmente, a análise dos mecanismos adequados de solução de controvérsias de monstra que sua evolução já vem ocorrendo pelo menos desde a década de 90: i) por um lado, com a Lei de Arbitragem, que entrou em vigor em 1996 e foi declarada constitucional em 2001, por meio do julgamento do SE 5206/STF, confirmando e implementando a sua utilização (Lei 9.307/96); ii) de outro, com a mediação, que passou a ganhar desta que legislativo em 1998, por meio de um Projeto de Lei da Deputada Zulaiê Cobra, tendo se desenvolvido e dado vida a um Projeto de Lei, do Senado9.

Essa escalada de importância se consolidou em 2010, com a edição da Resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça, dispondo sobre “a política judiciária nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário”. 10

Tamanha foi a importância da Resolução, que passou a ser considerada como marco legal para a “política pública judiciária, pela qual a resolução consensual dos conflitos seria paulatinamente organizada na sociedade civil a partir do próprio Poder Judiciário”; inclusive, Paulo Eduardo Alves da Silva esclarece que, a partir desse marco legal, “os tribunais organizaram os seus setores de conciliação judicial e, em alguns casos, capitanearam a organização de núcleos comunitários de solução de conflitos”.11

Assim, percebe-se que um dos pontos de destaque do art. 1º da Resolução 125/CNJ consiste, justamente, na obrigatoriedade de o Poder Judiciário, além da solução adjudicada mediante sentença, oferecer outros mecanismos de solução de controvérsias, em especial os chamados meios consensuais, como a mediação e a conciliação.

Fruto dessa evolução, é promulgada a Lei nº 13.140/2015 - considerada o Marco Legal da Mediação no Brasil, em vigor desde dezembro de 2015 -, que já em sua exposição de motivos teve como uma de suas justificativas a necessidade de criação de sistema de mediação afinado com o NCPC e com a Resolução 125 do CNJ.

Ainda nessa mesma linha, o Novo Código de Processo Civil, que entrará em vigor em março de 2016, acrescentará mais um elemento à promessa de concretização desse chamado da Resolução 125/CNJ: a implementação e o reforço, em seu bojo, de técnicas de mediação, conciliação e arbitragem.

2. O Novo Código de Processo Civil e o Estímulo ao Sistema Multiportas de Resolução de Conflitos 

Desde a exposição de motivos do então Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, ainda lá em 2010, havia a promessa de estímulo à solução multiportas de conflitos. Realmente, naquela oportunidade o Ministro Luiz Fux, Presidente da Comissão de juristas encarregada da elaboração do Anteprojeto, já afirmava que havia a pretensão de converter o processo em instrumento incluído no contexto social em que produzirá efeito, conferindo-se, portanto, “ênfase à possibilidade de as partes porém fim ao conflito pela via da mediação ou da conciliação”; isso porque, “entendeu-se que a satisfação efetiva das partes pode dar-se de modo mais intenso se a solução é por elas criada e não imposta pelo juiz.” 12

Essa promessa parece atender ao alerta antigo do mais recente Ex-Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, José Renato Nalini, que, já em 1994, pontuava que a Carta Magna, ao ampliar a noção de acesso à justiça, delegou ao Poder Judiciário o compromisso de multiplicar as portas de acesso à proteção dos direitos13.

Nessa medida, e como bem explicita Fernanda Tartuce, “revela-se pertinente a existência de um sistema pluriprocessual de enfrentamento de controvérsias, configurado pela presença no ordenamento de diversos mecanismos diferenciados para o tratamento dos conflitos, compreendendo mediação, arbitragem e processo judicial, entre outros”. De fato, “a oferta de diferenciados me­canismos de realização de justiça não faz com que estes se excluam; antes, podem e devem interagir os variados métodos, eficientemente, para pro­porcionar ao jurisdicionado múltiplas possibilidades de abordagem e com­posição eficiente das controvérsias”.14

Portanto, essa multiplica­ção de acesso à meios de pro­teção dos direitos é conhecida como o modelo de processo multiportas, expressão calca­da por um professor da Univer­sidade de Harvard, em 1976, justamente para concretizar a noção de que há mais de uma técnica adequada para a so­lução dos conflitos, de acor­do com as particularidades do caso concreto, além da justiça civil comum.15

Dito isso, vale reforçar que o Novo Código de Processo Ci­vil, aprovado em 16/3/201516, trouxe a promessa de um sis­tema multiportas, além de in­corporar a direção das normas contidas na Resolução nº 125/ CNJ, solidificando o uso dos meios consensuais de resolu­ção de disputas. Realmente, basta o cotejo do diploma de 1973 com o de 2015, ainda em vacatio legis17, para constatar que a atual legislação intensi­ficou e aprofundou a utilização da conciliação – muito mais tí­mida no CPC ainda vigente -, e trouxe todo um regramento próprio para a mediação - ine­xistente no CPC atual.18

Trata-se de uma mudan­ça de cultura e de concepção e, por consequência, de uma mudança efetivamente estru­tural: necessidade de formata­ção do método de ensino nas faculdades de direito, forman­do advogados, juízes e promo­tores aptos à atuação perante a nova realidade; de formação de profissionais técnicos ca­pacitados e cadastrados junto aos Tribunais; de criação de espaço físico etc.

Exemplos clássicos da adoção desse sistema multi­portas no Novo CPC são en­contrados nos artigos 3º e 334: o primeiro, declara expres­samente a possibilidade de a apreciação a lesão de direitos se dar por meio de arbitragem, além de estimular a utilização da conciliação, mediação e ou­tros métodos de solução con­sensual; o segundo, determina a designação de audiência de conciliação ou mediação pre­viamente à apresentação da contestação, quando preen­chidos os requisitos, cabendo ao juiz – ou aos técnicos dos Cejuscs - a função de analisar qual dos métodos de solução consensual é mais condizente com a disputa no caso con­creto, encaminhando-o à via adequada para essa audiência prévia.

Mais especificamente que tange à mediação, o novo diploma processual incorpora, ainda, as seguintes e princi­pais alterações (arts. 165 a 175): i) dever de criação de centros judiciários de solução consensual de conflitos (Ce­juscs); ii) existência de princí­pios norteadores da mediação; iii) capacitação de mediadores em entidades credenciadas; iv) redenciamento de media­dores e Câmaras de Mediação junto aos quadros dos Tribu­nais; v) previsão de remunera­ção dos mediadores em tabela fixada pelo Tribunal; vi) causas de impedimento e descreden­ciamento dos mediadores; e vii) possibilidade de criação de Câmaras específicas à resolu­ção consensual de conflitos no âmbito administrativo.

É esperado, então, que essa promessa de um sistema multiportas venha acompanha­da de uma série de desafios para a sua implementação, como por exemplo: os de or­dem estrutural (estrutura física para recebimento dos Cejuscs, contratação de pessoal, orga­nização de agendas e rotinas); os de ordem educacional (pre­paração dos operadores do direito, dos funcionários dos Cejuscs e dos mediadores); e os de ordem cultural (criação de novos paradigmas sobre a utilização dos meios consen­suais).19

Concluindo: O regramento de mediação contido no novo diploma processual está con­textualizado com o cenário de reformas processuais e de es­tímulo ao acesso à justiça20. Portanto, a promessa do siste­ma multiportas está concreti­zada no novo diploma; somen­te o tempo e a prática dirão, contudo, se a nova sistemáti­ca processual será suficiente para produzir resultados prá­ticos efetivos nesse sistema diferenciado de resolução de conflitos. 

1 De acordo com Cândido Rangel Dinamarco, “Nasce um novo pro­cesso civil”, Reforma do Código de Processo Civil, p. 1-17, p. 1/2.
2 Para uma visão completa das reformas do CPC nos últimos 20 anos, vide o meu “Audiência de conciliação ou mediação do art. 334 do NCPC: facultativa ou obrigató­ria? Afronta à voluntariedade da mediação?”, in Novo Código de Processo Civil, Impactos na Legis­lação Extravagante e Interdiscipli­nar, p. 41-49.
3 Acesso à justiça, p. 31 e se­guintes. Ver, também de Mauro Cappelletti, “Problemas de reforma do processo civil nas sociedades contemporâneas”, Revista de pro­cesso, nº 65, p. 127-143, p. 130 e seguintes.
4 Ver também Cândido Rangel Dina­marco, “Nasce um novo processo civil”, p. 4.
5 Acesso à justiça, p. 31, 68-71.
6 Acesso à justiça, p. 13.
7 Por meio, por exemplo, das Leis dos Juizados Especiais e do alarga­mento da assistência jurídica.
8 A esse respeito, conferir Paulo Eduardo Alves da Silva, in Nego­ciação, Mediação e Arbitragem – Curso básico para programas de graduação em direito, p. 1/3.
9 O projeto de Lei da Câmara, de Zulaiê Cobra, era o de nº 4.827/98; tramitou, em seguida, o PL 517/11, composto pelos projetos 405 e 434/2013, de iniciativa do Senado, aprovado na Câmara, com o nº 7.169/14, em 7/4/15. A respeito da evolução da Media­ção no Brasil, conferir “O instituto da mediação e a versão da Câmara dos deputados para o Projeto do Novo Código de Processo Civil Brasileiro”, in Novas tendências do processo civil, V.2, p. 679/683, de Humberto Dalla Bernardina de Pinho.  Ainda a esse respeito, Fernanda Tartuce apresenta dados de uma conferência de Adolfo Braga, pon­tuando um crescimento significativo da utilização da mediação no Brasil nos últimos tempos, já que, em 1997, havia no País 18 instituições de mediação e arbitragem, número que saltou para 77 em 2004. Medi­ção nos conflitos civis, p. 209.
10 O texto da resolução e a Emenda Regimental nº 1, de março de 2013, que deixou ainda mais claros os objetivos que norteiam a política pública de solução adequada de conflitos, podem ser consultados em www.cnj.jus.br.

11 Negociação, Mediação e Arbitra­gem – Curso básico para progra­mas de graduação em direito, p. 9.
12 Disponível para consulta: <http:// www.senado.gov.br/senado/novo­cpc/pdf/anteprojeto.pdf>. Acesso em: 11 de abril de 2015.
13 O juiz e o acesso à justiça, p. 32/33.
14Mediação nos conflitos civis, p. 87/88
15 A esse respeito, conferir as consi­derações de Leonardo Carneiro da Cunha e João Luiz Lessa de Azeve­do Neto, em “A mediação e a con­ciliação no projeto de novo CPC: meios integrados de resolução de disputas”, in Novas tendências do processo civil, vol. 3, p. 202/204.
16 Lei 13.105/2015. 1
17 Esse artigo foi entregue em 27 de janeiro de 2016, período que ainda compreendia a vacatio legis do NCPC.
18 O Novo Código, logo de início, vem informado por um modelo pro­cessual cooperativo, contemplando a admissibilidade de arbitragem e o estímulo aos meios consensuais de resolução de conflitos, conforme enunciado no art. 3º. A esse respei­to, Leonardo Carneiro da Cunha e João Luiz Lessa de Azevedo Neto, ainda falando da redação dada ao projeto, que não se alterou muito com relação a essa matéria, afir­mam que “Da leitura do projeto ob­serva-se que os meios alternativos de resolução de disputas deixam de ser apenas alternativos, passando a compor um quadro geral dos meios de resolução de disputas; passam a ser meios integrados de resolução de disputas. A dicotomia (resolução judicial X meios alternativos) fica atenuada. Não se fala mais no meio de resolução de disputas e suas alternativas, mas se oferece uma série de meios, entrelaçados entre si e funcionando num esquema de cooperação, voltados à resolução de disputas e pacificação social”, “A mediação e a conciliação no projeto de novo CPC: meios integrados de resolução de disputas”, in Novas tendências do processo civil, vol. 3, p. 200.
19 A esse respeito, vide interessante artigo de João Luiz Lessa Neto, “O Novo CPC adotou o modelo multiportas!!! E agora?”, Revista de processo, nº 244, p. 427-441.
20 A respeito do acesso à justi­ça estatal e aos números a ele relacionados, vale conferir o último relatório da Justiça em Números, do CNJ, ao final de 2013, contem­plando a existência de 8 magistra­dos para cada 100 mil habitantes, além de 95 milhões de ações tramitando, somando-se os casos novos e os processos pendentes de baixa (http://www.cnj.jus.br/relato­rio-justica-em-numeros/#p=justica­emnumeros – acesso em 11/4/15).

Referências Bibliográficas:
ALVES DA SILVA, Paulo Eduardo. Negociação, Mediação e Arbitra­gem – Curso básico para programas de graduação em direito. Coor­denação Carlos Alberto de Salles, Marco Antônio Garcia Lopes Lo­rencini e Paulo Eduardo Alves da Silva. São Paulo, Método, 2013.

AZEVEDO NETO, João Luiz Lessa de. “A mediação e a concilia­ção no projeto de novo CPC: meios integrados de resolução de dis­putas”. Novas tendências do processo civil, Vol. 3, p. 202-204.

___. “O novo CPC adotou o modelo multiportas!!! E agora?!”, Re­vista de Processo, ano 40, Vol. 244, junho 2015, p. 427-441.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei de Mediação nº 7.169/2014. Disponível em http://www.camara.gov.br/proposico­esWeb/fichadetramitacao?idProposicao=606627. Acesso em 12/4/15.

BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Projeto de Lei de Me­diação nº 517/2011.Disponível em http://www.senado.gov.br/ativida­de/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=101791. Acesso em 12/4/15.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Relatório Justi­ça em Números. Disponível em http://www.cnj.jus.br/relato­rio-justica-em-numeros/#p=justicaemnumeros. Acesso em 11/4/15.

CAPPELLETTI, Mauro. GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988.

CARNEIRO DA CUNHA, Leonardo. “A mediação e a conciliação no projeto de novo CPC: meios integrados de resolução de dis­putas”. Novas tendências do processo civil, Vol. 3, p. 202-204. 

Por Ana Cândida Menezes Marcato
Advogada. Sócia de Marcato Advogados. Mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Educação Executiva em Mediação de Disputas no Programa de Negociação da Harvard University. Especialista em Arbitragem pela Fundação Getúlio Vargas - FGV. Membro do IBDP e do CBAr. Membro da atual Diretoria do Ceapro.
Fonte: Mediação e Conciliação - Revista Científica Virtual Ed. 23

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