A crise da justiça civil
brasileira é uma velha conhecida. O historiador Stuart B. Schwartz,
da Yale University (EUA),
relata problemas relacionados à lentidão da Justiça e ao excesso
de trabalho nas Cortes desde a era do Brasil colonial[1]. Ante
a falta de dados concretos do Judiciário de então, é difícil
dizer se o problema se agravou ou não, mas é indubitável que ele
persiste. Nos termos do último levantamento realizado pelo Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), o estoque de processos judiciais em 2015
aumentou 3% (três por cento) em relação ao ano anterior,
acumulando um crescimento de 19,4% (dezenove inteiros e quatro
décimos por cento) desde 2009. O Poder Judiciário chegou quase à
marca de 74 milhões de processos em tramitação no final de 2015,
mesmo tendo baixado 1,2 milhão de processos a mais do que o
quantitativo ingressado. Ainda que fosse possível paralisar o
ingresso de novas demandas, seriam necessários aproximadamente três
anos de trabalho, com a produtividade atual do Judiciário, para
zerar o estoque.
Se tudo indica que os esforços
de magistrados e servidores jamais serão capazes de fazer frente ao
volume de trabalho, o caminho natural para contornar a crise é
apostar em formas alternativas de solução de controvérsias.[2]
Os números, contudo, também são
extremamente desfavoráveis quanto ao índice de conciliação no
Brasil. Na Justiça Estadual, em média, apenas 10,7% (dez inteiros e
sete décimos por cento) das sentenças proferidas em 2015 foram
homologatórias de acordo – no Tribunal de Justiça de São Paulo,
houve autocomposição em apenas 1,5% (um e meio por cento) dos
processos instaurados[3].
Nos Estados Unidos, o cenário é
diametralmente oposto. Perante a Justiça Federal daquele país,
segundo dados de 2002, apenas 1,8% (um inteiro e oito décimos por
cento) das causas cíveis foram efetivamente julgadas – percentual
que era de 11,5% (onze inteiros e meio por cento) em 1962[4].
Embora não se possa afirmar que os
98,2% (noventa e oito inteiros e dois décimos por cento) de causas
restantes resultaram em acordo, é inegável que os meios
alternativos de solução de controvérsias possuem um papel
relevantíssimo para manter as prateleiras dos Tribunais mais vazias.
E o número de casos que seguem até o pronunciamento final do
Judiciário só diminui. De acordo com o Bureau
of Justice Statistics, o
número total de processos cíveis litigiosos caiu mais de 50%
(cinquenta por cento) entre 1992 e 2005 nas 75 cidades mais populosas
dos EUA.[5]
O que explica tamanha diferença
na realidade dos dois países? Trata-se de típico caso no qual o
diagnóstico errado pode piorar o problema. No Brasil, o diagnóstico
costuma ter caráter metafísico: a culpa seria de uma suposta
“cultura” da litigância. Por essa visão, o brasileiro
possuiria, em geral, postura avessa à solução amigável dos
conflitos, por motivos dissociados da sua racionalidade. Essa
beligerância tupiniquim não seria explicada por fatores econômicos,
pelo ordenamento jurídico ou pela estrutura da justiça civil em
geral. Ao menos é o que sugere o Conselho Nacional de Justiça, ao
sustentar que “as
dificuldades [para que
as partes façam acordos no Brasil] parecem
mais culturais do que efetivamente estruturais”[6].
Assim como o erro de diagnóstico de
um médico, também o equívoco do jurista pode fazer piorar o quadro
do paciente. Quando a intuição conduz o analista a caminhos
equivocados, deve-se procurar a tábua de salvação proporcionada
pela metodologia confiável. Com teorias caracterizadas pelo
pragmatismo, além da ênfase na pesquisa empírica, a análise
econômica do Direito pode proporcionar uma visão mais clara sobre o
tema em questionamento.
De acordo com o modelo
tradicionalmente formulado pelos estudiosos de “Direito e
Economia”, a probabilidade de um acordo depende da relação entre
o valor envolvido na disputa, o otimismo das partes em relação ao
resultado final de eventual processo, os custos da litigância
judicial e a predisposição das partes a correr riscos, além do
comportamento estratégico de cada uma delas[7]. Não
é por teimosia que as partes resistem ao acordo, mas por deixarem de
reconhecer essa estratégia como a mais vantajosa. Fatores como a
instabilidade da jurisprudência e a má configuração do sistema de
despesas processuais são determinantes para um cenário de baixo
índice de autocomposição.
Sendo a análise de estratégias um
elemento central do processo civil, é imprescindível a utilização
de uma ferramenta, em especial, para realizar prognósticos sobre o
comportamento das partes: a teoria dos jogos. Trata-se da
formalização matemática de situações nas quais a estratégia de
um sujeito depende de como ele espera que outros sujeitos se
comportem, partindo-se do pressuposto de que todos agirão
racionalmente para maximizar seus interesses. Com esse instrumento, é
possível entender os incentivos básicos que as regras jurídicas
oferecem à conduta dos seus destinatários, pois a modelagem
econômica elimina “interferências” que, no mundo real, podem
desviar a atenção do analista e induzi-lo a erro.
Um exemplo simples, da realidade
jurisprudencial brasileira, é capaz de demonstrar como a mudança
das regras jurídicas tem papel chave no estímulo ou desestímulo à
solução consensual de litígios. Suponha-se que dois réus sejam
demandados para o pagamento, em caráter solidário, de uma dívida
de R$ 100. Nas estimativas de ambos, a chance de que sejam condenados
é de 50% – e as situações dos réus são perfeitamente
correlacionadas, de modo que a demanda será julgada procedente para
os dois ou improcedente para os dois. Desconsiderando as despesas
processuais e honorários, a expectativa líquida de prejuízo, para
cada um, é de R$ 25 (50% de chances de condenação pela metade do
valor da dívida). Considere-se, agora, que o réu “A” decide
aceitar uma proposta de acordo oferecida pela parte autora no valor
de R$ 30. O réu “B” estaria, então, sujeito a qual valor de
condenação?
Dependendo da resposta para essa
indagação, as prováveis estratégias das partes podem mudar.
Entendendo-se que o corréu remanescente no polo passivo da demanda
pode ser condenado pelo valor do pedido (R$ 100) menos o valor do
acordo entre o autor e o outro réu (R$ 30), a expectativa líquida
de prejuízo para aquele passa a ser de R$ 35 (50% de chances de
condenação pelos R$ 70 remanescentes da dívida). Note-se,
portanto, que o acordo por uma das partes gera uma externalidade
negativa em relação à outra, representando um incentivo adicional
para o acordo proposto pelo autor.
É possível ilustrar a situação ora
descrita com a seguinte bimatriz:
Réu 2 |
||
Não faz acordo
|
Faz acordo
|
|
Não faz acordo
|
-25, -25
|
-35, -30
|
Réu 1 |
-30, -35
|
-30, -30
|
Faz acordo
|
Para solucionar esse jogo e prever o
provável comportamento dos jogadores, é necessário aplicar o
conceito do equilíbrio de Nash. Ocorre um equilíbrio de Nash quando
um par de estratégias são a melhor resposta uma para a outra. Em
outros termos, a combinação de estratégias que os jogadores
provavelmente escolherão é aquela na qual nenhum jogador teria
vantagem escolhendo uma estratégia diferente, dada a estratégia que
o outro adotou.
No jogo acima delineado, é possível
encontrar três diferentes equilíbrios de Nash. Há equilíbrio
quando os dois réus não fazem acordo e também quando ambos fazem
acordo. Mais ainda, existe equilíbrio de Nash na distribuição
probabilística, por ambos os jogadores, de 50% para cada estratégia
(estratégia mista). Isso significa que, em tese, as duas estratégias
seriam racionais para os réus: firmar ou não um acordo.
Ocorre que uma orientação
consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça modifica os valores
constantes do modelo apresentado – e, com isso, as prováveis
estratégias das partes. Para a Corte, o réu apontado como devedor
solidário que não adere ao acordo passa a responder apenas por uma
fração ideal da dívida, correspondente a um rateio proporcional
entre todos os sujeitos passivos da obrigação[8]. No
exemplo figurado anteriormente, o réu que rejeitou o acordo poderia
ser condenado, no máximo, a R$ 50[9]. Sua
expectativa de prejuízo líquido, portanto, passa a ser de R$ 25
(50% de chances de condenação pelo valor máximo da sentença).
Reelaborando os valores constantes do
modelo antes criado, chega-se ao seguinte jogo:
Réu 2 |
||
Não faz acordo
|
Faz acordo
|
|
Não faz acordo
|
-25, -25
|
-25, -30
|
Réu 1 |
-30, -25
|
-30, -30
|
Faz acordo
|
O único equilíbrio de Nash existente
nessa situação é a combinação de estratégias na qual nenhum dos
réus faz acordo. Para ambos, a estratégia dominante é rejeitar o
acordo oferecido, de modo que pessoas racionais provavelmente
adotariam esse comportamento. Uma simples mudança nos incentivos
gerados pelas regras jurídicas aplicáveis pode impulsionar as
partes a um comportamento socialmente indesejado.
Apesar da lógica apresentada na
argumentação aqui exposta, em nenhum momento raciocínio semelhante
foi levado em consideração pelo STJ nos julgamentos dos precedentes
que formaram a orientação jurisprudencial comentada. Também não
há notícia de qualquer pesquisa empírica para investigar as
consequências desse entendimento relativamente ao número de acordos
nos processos para a cobrança de dívidas solidárias em face de
diversos réus.
Tudo indica que a crise da justiça
civil brasileira é consequência de um erro de diagnóstico quanto
às suas causas e da recusa na aplicação de ferramentas básicas
para traçar soluções eficazes. Enquanto a análise econômica for
uma ilustre desconhecida dos aplicadores do direito e daqueles que
desenham as políticas públicas, o acúmulo de processos não
deixará de existir, não importa quantas “campanhas” de
conciliação sejam promovidas. Se falta uma cultura no Brasil, ela é
a do pragmatismo.
—————————–
[1] “A insuficiência de pessoal
afligiu o Tribunal Superior da Bahia ao longo de toda a sua história.
Queixas de excesso de trabalho, feitas pelos magistrados, devem ser
encaradas com reservas, mas o volume e a consistência de pleitos
semelhantes, oriundos de várias fontes, não podem ser ignorados.
Juízes ausentes de Salvador em investigações especiais,
atribuições extras de natureza administrativa e um grande número
de casos à espera de julgamento combinavam para retardar o processo
judicial. (…) Só uma série de queixas em 1698 finalmente
conseguiu aumentar o contingente do Tribunal Superior para dez
juízes, mas o crescimento da colônia e os compromissos cada vez
mais numerosos dos desembargadores não resultaram num decréscimo
das pressões sobre o cargo magistrático. (…) [O] volume de
litígios excedia em muito o tempo disponível. (…) O volume de
recursos civis costumava ser tão grande que sobrava pouco tempo para
outros casos. Como resultado, pessoas acusadas de delitos criminais
geralmente padeciam meses, ou anos, na decrépita cadeia de Salvador,
sofrendo extremas privações; alguns até morriam de fome. (…)
Certamente os magistrados tinham alguma responsabilidade pela
situação, mas a carga de trabalho de cada um devia ser enorme”.
SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: o
Tribunal Superior da Bahia e seus desembargadores, 1609-1751. Trad.
Berilo Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 205-206.
[2] Barbosa Moreira, em texto de 1981,
atribuiu o problema da demora dos processos a uma “longa série de
questões: falhas da organização judiciária, deficiências na
formação profissional de juízes e advogados, precariedade das
condições sob as quais se realiza a atividade judicial na maior
parte do país, uso arraigado de métodos de trabalho obsoletos e
irracionais, escasso aproveitamento de recursos tecnológicos”.
Todavia, o autor questionava a capacidade dos meios alternativos de
solução de controvérsias para fazer frente ao referido problema:
“Pode-se crer na conveniência de estimular métodos alternativos
de solução de litígios, como o juízo arbitral e outros; pouco
verossímil, em todo caso, é a solução de que por tal meio se
logre, pelo menos a curto prazo, aliviar a quota de trabalho dos
órgãos judiciais em proporção verdadeiramente compensadora.
Eis-nos de volta, com isso, ao problema do imprescindível
aparelhamento do Poder Judiciário – em termos quantitativos e
qualitativos – para enfrentar de maneira condigna as suas
responsabilidades. Ocioso repetir que, para tanto, será preciso
mobilizar vultosos recursos financeiros – o que não implica apenas
a existência deles, senão também a disposição de canalizar-lhes
parcela considerável para uma aplicação a que em geral se
sobrepõem prioridades de outra natureza. A esta altura parece
chegado, para o processualista, o momento de reconhecer que esbarra
numa daquelas raias extremas da sua competência específica. E
decerto não se proclamará novidade alguma se a isso se quiser
acrescentar que o estudo do tema em nível mais profundo
necessariamente desembocaria em ampla reflexão (incabível nesta
sede) sobre o contexto político, econômico e social em que se
insere a problemática da “efetividade” do processo” (MOREIRA,
José Carlos Barbosa. “Notas sobre o problema da ‘efetividade’
do processo”. In: Temas de Direito Processual. Terceira Série. São
Paulo: Saraiva, 1984. p. 31 e 42). Concorda-se com a afirmação do
citado jurista quanto à inserção da crise da justiça civil em um
contexto mais amplo, que desborda da análise puramente processual.
Nada obstante, procura-se demonstrar no presente texto que há
ferramentas à disposição do processualista para tornar o sistema
de Justiça mais eficiente, à vista dos escassos recursos afetados à
missão. Mais ainda, confia-se no potencial dos mecanismos
alternativos de solução de controvérsias como remédio efetivo
para o problema do abarrotamento dos Tribunais, considerando os
exemplos positivos da experiência internacional.
[3] CNJ, Relatório “Justiça em
Números 2016”, p. 42. Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/10/b8f46be3dbbff344931a933579915488.pdf>.
[4] REFO, Patricia Lee. “The
Vanishing Trial”. In: The Journal of the Section of Litigation,
Vol. 30, n. 2, 2004.
[5]
<https://www.bjs.gov/index.cfm?ty=tp&tid=45>
[6] Relatório “Justiça em Números
2016”, p. 113. Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/10/b8f46be3dbbff344931a933579915488.pdf>.
[7] POLINSKY, A. Mitchell. An
Introduction to Law and Economics. 4ª ed. Wolters Kluwer, 2011.
[8] AgRg no REsp 1002491/RN, Rel.
Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUARTA TURMA, julgado em
28/06/2011, DJe 01/07/2011. REsp 1170239/RJ, Rel. Ministro MARCO
BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 21/05/2013, DJe 28/08/2013. REsp
1.079.293-PR , Rel. Min. Carlos Fernando Mathias (Juiz convocado do
TRF da 1ª Região), 4ª Turma, julgado em 7/10/2008. AgRg no REsp
1091654/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em
17/03/2009, DJe 25/03/2009.
[9] Em hipótese idêntica, a Min.
Nancy Andrighi assim fundamentou seu voto:
“Há na espécie, entretanto,
uma peculiaridade: a recorrente celebrou transação com um dos
co-devedores, aceitando, com efeito de pagamento, valor inferior ao
postulado na petição inicial, concedendo-lhe plena, geral e
irrevogável quitação.
O pagamento parcial, a remissão, a
dação ou a novação implicam exoneração daquele
devedor-solidário, subsistindo para os demais o dever de pagar o
restante do débito, abatido o valor remido, dado em pagamento ou
novado.
Na espécie, a relação jurídica é
constituída de apenas dois devedores solidários, cuja conseqüência
é que somente um ficou responsável pelo valor restante da
obrigação. Esse valor remanescente, segundo melhor exegese do art.
282, parágrafo único, do CPC, é aquele que resulta da subtração
da quota-parte que cabia ao devedor exonerado da relação solidária.
Como no particular, a obrigação, na relação jurídica interna,
era de 50% para cada co-devedor, o pagamento de qualquer valor por um
deles, aceito pelo credor, com quitação geral, importa subtração
de 50% do total da dívida.”
(REsp 1089444/PR, Rel. Ministra
NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 09/12/2008, DJe
03/02/2009)
Por Bruno Bodart - Mestre e bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Cursou análise econômica do Direito pela Universidade de Chicago (EUA). Juiz de Direito (TJRJ). Professor convidado da pós graduação da FGV. Professor da Emerj e da Emarf. Diretor da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).
Fonte: Jota
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