quarta-feira, 15 de março de 2017

Seria a litigância uma questão de cultura?

À luz da Teoria dos Jogos
A crise da justiça civil brasileira é uma velha conhecida. O historiador Stuart B. Schwartz, da Yale University (EUA), relata problemas relacionados à lentidão da Justiça e ao excesso de trabalho nas Cortes desde a era do Brasil colonial[1]. Ante a falta de dados concretos do Judiciário de então, é difícil dizer se o problema se agravou ou não, mas é indubitável que ele persiste. Nos termos do último levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o estoque de processos judiciais em 2015 aumentou 3% (três por cento) em relação ao ano anterior, acumulando um crescimento de 19,4% (dezenove inteiros e quatro décimos por cento) desde 2009. O Poder Judiciário chegou quase à marca de 74 milhões de processos em tramitação no final de 2015, mesmo tendo baixado 1,2 milhão de processos a mais do que o quantitativo ingressado. Ainda que fosse possível paralisar o ingresso de novas demandas, seriam necessários aproximadamente três anos de trabalho, com a produtividade atual do Judiciário, para zerar o estoque.

Se tudo indica que os esforços de magistrados e servidores jamais serão capazes de fazer frente ao volume de trabalho, o caminho natural para contornar a crise é apostar em formas alternativas de solução de controvérsias.[2] Os números, contudo, também são extremamente desfavoráveis quanto ao índice de conciliação no Brasil. Na Justiça Estadual, em média, apenas 10,7% (dez inteiros e sete décimos por cento) das sentenças proferidas em 2015 foram homologatórias de acordo – no Tribunal de Justiça de São Paulo, houve autocomposição em apenas 1,5% (um e meio por cento) dos processos instaurados[3].

Nos Estados Unidos, o cenário é diametralmente oposto. Perante a Justiça Federal daquele país, segundo dados de 2002, apenas 1,8% (um inteiro e oito décimos por cento) das causas cíveis foram efetivamente julgadas – percentual que era de 11,5% (onze inteiros e meio por cento) em 1962[4]. Embora não se possa afirmar que os 98,2% (noventa e oito inteiros e dois décimos por cento) de causas restantes resultaram em acordo, é inegável que os meios alternativos de solução de controvérsias possuem um papel relevantíssimo para manter as prateleiras dos Tribunais mais vazias. E o número de casos que seguem até o pronunciamento final do Judiciário só diminui. De acordo com o Bureau of Justice Statistics, o número total de processos cíveis litigiosos caiu mais de 50% (cinquenta por cento) entre 1992 e 2005 nas 75 cidades mais populosas dos EUA.[5]

O que explica tamanha diferença na realidade dos dois países? Trata-se de típico caso no qual o diagnóstico errado pode piorar o problema. No Brasil, o diagnóstico costuma ter caráter metafísico: a culpa seria de uma suposta “cultura” da litigância. Por essa visão, o brasileiro possuiria, em geral, postura avessa à solução amigável dos conflitos, por motivos dissociados da sua racionalidade. Essa beligerância tupiniquim não seria explicada por fatores econômicos, pelo ordenamento jurídico ou pela estrutura da justiça civil em geral. Ao menos é o que sugere o Conselho Nacional de Justiça, ao sustentar que “as dificuldades [para que as partes façam acordos no Brasil] parecem mais culturais do que efetivamente estruturais[6].

Assim como o erro de diagnóstico de um médico, também o equívoco do jurista pode fazer piorar o quadro do paciente. Quando a intuição conduz o analista a caminhos equivocados, deve-se procurar a tábua de salvação proporcionada pela metodologia confiável. Com teorias caracterizadas pelo pragmatismo, além da ênfase na pesquisa empírica, a análise econômica do Direito pode proporcionar uma visão mais clara sobre o tema em questionamento.

De acordo com o modelo tradicionalmente formulado pelos estudiosos de “Direito e Economia”, a probabilidade de um acordo depende da relação entre o valor envolvido na disputa, o otimismo das partes em relação ao resultado final de eventual processo, os custos da litigância judicial e a predisposição das partes a correr riscos, além do comportamento estratégico de cada uma delas[7]. Não é por teimosia que as partes resistem ao acordo, mas por deixarem de reconhecer essa estratégia como a mais vantajosa. Fatores como a instabilidade da jurisprudência e a má configuração do sistema de despesas processuais são determinantes para um cenário de baixo índice de autocomposição.

Sendo a análise de estratégias um elemento central do processo civil, é imprescindível a utilização de uma ferramenta, em especial, para realizar prognósticos sobre o comportamento das partes: a teoria dos jogos. Trata-se da formalização matemática de situações nas quais a estratégia de um sujeito depende de como ele espera que outros sujeitos se comportem, partindo-se do pressuposto de que todos agirão racionalmente para maximizar seus interesses. Com esse instrumento, é possível entender os incentivos básicos que as regras jurídicas oferecem à conduta dos seus destinatários, pois a modelagem econômica elimina “interferências” que, no mundo real, podem desviar a atenção do analista e induzi-lo a erro.

Um exemplo simples, da realidade jurisprudencial brasileira, é capaz de demonstrar como a mudança das regras jurídicas tem papel chave no estímulo ou desestímulo à solução consensual de litígios. Suponha-se que dois réus sejam demandados para o pagamento, em caráter solidário, de uma dívida de R$ 100. Nas estimativas de ambos, a chance de que sejam condenados é de 50% – e as situações dos réus são perfeitamente correlacionadas, de modo que a demanda será julgada procedente para os dois ou improcedente para os dois. Desconsiderando as despesas processuais e honorários, a expectativa líquida de prejuízo, para cada um, é de R$ 25 (50% de chances de condenação pela metade do valor da dívida). Considere-se, agora, que o réu “A” decide aceitar uma proposta de acordo oferecida pela parte autora no valor de R$ 30. O réu “B” estaria, então, sujeito a qual valor de condenação?

Dependendo da resposta para essa indagação, as prováveis estratégias das partes podem mudar. Entendendo-se que o corréu remanescente no polo passivo da demanda pode ser condenado pelo valor do pedido (R$ 100) menos o valor do acordo entre o autor e o outro réu (R$ 30), a expectativa líquida de prejuízo para aquele passa a ser de R$ 35 (50% de chances de condenação pelos R$ 70 remanescentes da dívida). Note-se, portanto, que o acordo por uma das partes gera uma externalidade negativa em relação à outra, representando um incentivo adicional para o acordo proposto pelo autor.

É possível ilustrar a situação ora descrita com a seguinte bimatriz:
                              Réu 2
Não faz acordo
Faz acordo
Não faz acordo
-25, -25
-35, -30
Réu 1
-30, -35
-30, -30
Faz acordo

Para solucionar esse jogo e prever o provável comportamento dos jogadores, é necessário aplicar o conceito do equilíbrio de Nash. Ocorre um equilíbrio de Nash quando um par de estratégias são a melhor resposta uma para a outra. Em outros termos, a combinação de estratégias que os jogadores provavelmente escolherão é aquela na qual nenhum jogador teria vantagem escolhendo uma estratégia diferente, dada a estratégia que o outro adotou.

No jogo acima delineado, é possível encontrar três diferentes equilíbrios de Nash. Há equilíbrio quando os dois réus não fazem acordo e também quando ambos fazem acordo. Mais ainda, existe equilíbrio de Nash na distribuição probabilística, por ambos os jogadores, de 50% para cada estratégia (estratégia mista). Isso significa que, em tese, as duas estratégias seriam racionais para os réus: firmar ou não um acordo.

Ocorre que uma orientação consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça modifica os valores constantes do modelo apresentado – e, com isso, as prováveis estratégias das partes. Para a Corte, o réu apontado como devedor solidário que não adere ao acordo passa a responder apenas por uma fração ideal da dívida, correspondente a um rateio proporcional entre todos os sujeitos passivos da obrigação[8]. No exemplo figurado anteriormente, o réu que rejeitou o acordo poderia ser condenado, no máximo, a R$ 50[9]. Sua expectativa de prejuízo líquido, portanto, passa a ser de R$ 25 (50% de chances de condenação pelo valor máximo da sentença).

Reelaborando os valores constantes do modelo antes criado, chega-se ao seguinte jogo:

    Réu 2

 Não faz acordo
  Faz acordo
Não faz acordo
-25, -25
-25, -30
Réu 1
-30, -25
-30, -30
Faz acordo

O único equilíbrio de Nash existente nessa situação é a combinação de estratégias na qual nenhum dos réus faz acordo. Para ambos, a estratégia dominante é rejeitar o acordo oferecido, de modo que pessoas racionais provavelmente adotariam esse comportamento. Uma simples mudança nos incentivos gerados pelas regras jurídicas aplicáveis pode impulsionar as partes a um comportamento socialmente indesejado.

Apesar da lógica apresentada na argumentação aqui exposta, em nenhum momento raciocínio semelhante foi levado em consideração pelo STJ nos julgamentos dos precedentes que formaram a orientação jurisprudencial comentada. Também não há notícia de qualquer pesquisa empírica para investigar as consequências desse entendimento relativamente ao número de acordos nos processos para a cobrança de dívidas solidárias em face de diversos réus.

Tudo indica que a crise da justiça civil brasileira é consequência de um erro de diagnóstico quanto às suas causas e da recusa na aplicação de ferramentas básicas para traçar soluções eficazes. Enquanto a análise econômica for uma ilustre desconhecida dos aplicadores do direito e daqueles que desenham as políticas públicas, o acúmulo de processos não deixará de existir, não importa quantas “campanhas” de conciliação sejam promovidas. Se falta uma cultura no Brasil, ela é a do pragmatismo.

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[1] “A insuficiência de pessoal afligiu o Tribunal Superior da Bahia ao longo de toda a sua história. Queixas de excesso de trabalho, feitas pelos magistrados, devem ser encaradas com reservas, mas o volume e a consistência de pleitos semelhantes, oriundos de várias fontes, não podem ser ignorados. Juízes ausentes de Salvador em investigações especiais, atribuições extras de natureza administrativa e um grande número de casos à espera de julgamento combinavam para retardar o processo judicial. (…) Só uma série de queixas em 1698 finalmente conseguiu aumentar o contingente do Tribunal Superior para dez juízes, mas o crescimento da colônia e os compromissos cada vez mais numerosos dos desembargadores não resultaram num decréscimo das pressões sobre o cargo magistrático. (…) [O] volume de litígios excedia em muito o tempo disponível. (…) O volume de recursos civis costumava ser tão grande que sobrava pouco tempo para outros casos. Como resultado, pessoas acusadas de delitos criminais geralmente padeciam meses, ou anos, na decrépita cadeia de Salvador, sofrendo extremas privações; alguns até morriam de fome. (…) Certamente os magistrados tinham alguma responsabilidade pela situação, mas a carga de trabalho de cada um devia ser enorme”. SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: o Tribunal Superior da Bahia e seus desembargadores, 1609-1751. Trad. Berilo Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 205-206.
[2] Barbosa Moreira, em texto de 1981, atribuiu o problema da demora dos processos a uma “longa série de questões: falhas da organização judiciária, deficiências na formação profissional de juízes e advogados, precariedade das condições sob as quais se realiza a atividade judicial na maior parte do país, uso arraigado de métodos de trabalho obsoletos e irracionais, escasso aproveitamento de recursos tecnológicos”. Todavia, o autor questionava a capacidade dos meios alternativos de solução de controvérsias para fazer frente ao referido problema: “Pode-se crer na conveniência de estimular métodos alternativos de solução de litígios, como o juízo arbitral e outros; pouco verossímil, em todo caso, é a solução de que por tal meio se logre, pelo menos a curto prazo, aliviar a quota de trabalho dos órgãos judiciais em proporção verdadeiramente compensadora. Eis-nos de volta, com isso, ao problema do imprescindível aparelhamento do Poder Judiciário – em termos quantitativos e qualitativos – para enfrentar de maneira condigna as suas responsabilidades. Ocioso repetir que, para tanto, será preciso mobilizar vultosos recursos financeiros – o que não implica apenas a existência deles, senão também a disposição de canalizar-lhes parcela considerável para uma aplicação a que em geral se sobrepõem prioridades de outra natureza. A esta altura parece chegado, para o processualista, o momento de reconhecer que esbarra numa daquelas raias extremas da sua competência específica. E decerto não se proclamará novidade alguma se a isso se quiser acrescentar que o estudo do tema em nível mais profundo necessariamente desembocaria em ampla reflexão (incabível nesta sede) sobre o contexto político, econômico e social em que se insere a problemática da “efetividade” do processo” (MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Notas sobre o problema da ‘efetividade’ do processo”. In: Temas de Direito Processual. Terceira Série. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 31 e 42). Concorda-se com a afirmação do citado jurista quanto à inserção da crise da justiça civil em um contexto mais amplo, que desborda da análise puramente processual. Nada obstante, procura-se demonstrar no presente texto que há ferramentas à disposição do processualista para tornar o sistema de Justiça mais eficiente, à vista dos escassos recursos afetados à missão. Mais ainda, confia-se no potencial dos mecanismos alternativos de solução de controvérsias como remédio efetivo para o problema do abarrotamento dos Tribunais, considerando os exemplos positivos da experiência internacional.
[3] CNJ, Relatório “Justiça em Números 2016”, p. 42. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/10/b8f46be3dbbff344931a933579915488.pdf>.
[4] REFO, Patricia Lee. “The Vanishing Trial”. In: The Journal of the Section of Litigation, Vol. 30, n. 2, 2004.
[5] <https://www.bjs.gov/index.cfm?ty=tp&tid=45>
[6] Relatório “Justiça em Números 2016”, p. 113. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/10/b8f46be3dbbff344931a933579915488.pdf>.
[7] POLINSKY, A. Mitchell. An Introduction to Law and Economics. 4ª ed. Wolters Kluwer, 2011.
[8] AgRg no REsp 1002491/RN, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUARTA TURMA, julgado em 28/06/2011, DJe 01/07/2011. REsp 1170239/RJ, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 21/05/2013, DJe 28/08/2013. REsp 1.079.293-PR , Rel. Min. Carlos Fernando Mathias (Juiz convocado do TRF da 1ª Região), 4ª Turma, julgado em 7/10/2008. AgRg no REsp 1091654/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/03/2009, DJe 25/03/2009.
[9] Em hipótese idêntica, a Min. Nancy Andrighi assim fundamentou seu voto:
Há na espécie, entretanto, uma peculiaridade: a recorrente celebrou transação com um dos co-devedores, aceitando, com efeito de pagamento, valor inferior ao postulado na petição inicial, concedendo-lhe plena, geral e irrevogável quitação.
O pagamento parcial, a remissão, a dação ou a novação implicam exoneração daquele devedor-solidário, subsistindo para os demais o dever de pagar o restante do débito, abatido o valor remido, dado em pagamento ou novado.
Na espécie, a relação jurídica é constituída de apenas dois devedores solidários, cuja conseqüência é que somente um ficou responsável pelo valor restante da obrigação. Esse valor remanescente, segundo melhor exegese do art. 282, parágrafo único, do CPC, é aquele que resulta da subtração da quota-parte que cabia ao devedor exonerado da relação solidária. Como no particular, a obrigação, na relação jurídica interna, era de 50% para cada co-devedor, o pagamento de qualquer valor por um deles, aceito pelo credor, com quitação geral, importa subtração de 50% do total da dívida.”
(REsp  1089444/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 09/12/2008, DJe 03/02/2009)

Por Bruno Bodart - Mestre e bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Cursou análise econômica do Direito pela Universidade de Chicago (EUA). Juiz de Direito (TJRJ). Professor convidado da pós graduação da FGV. Professor da Emerj e da Emarf. Diretor da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).

Fonte: Jota

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