Fim do tabu
Preso a amarras legais e administrativas que impedem a negociação, o setor público, aos poucos, encontra caminhos para a conciliação na Justiça. Primeira a mergulhar na experiência, a estatal Emgea, gestora de ativos da Caixa Econômica Federal, é uma prova de que a indisponibilidade do bem público não limita estratégias inteligentes. Responsável por administrar dívidas não pagas por mutuários da Caixa no Sistema Financeiro de Habitação, a empresa conseguiu, por meio de conciliações, reverter o aumento do passivo. Em 2004, 107 mil contratos aguardavam uma decisão judicial. No fim de 2011, o estoque já era de quase metade disso, com 62.946 casos.
Em 2012, o uso de conciliações pela Emgea completou dez anos. Hoje, 60% das disputas judiciais terminam em acordo, isso sem contar as soluções administrativas. “Passamos a mensagem de que é possível fazer acordo não necessariamente em juízo”, explica o diretor de recuperação de crédito de pessoas físicas, Eugen Smarandescu Filho (foto). Segundo ele, de 186 mil contratos com inadimplência recebidos da Caixa, restam 50 mil. “Foram resolvidos 140 mil no campo administrativo. Indiretamente, levamos solução ao Judiciário.” Provisionados como prejuízo pela Caixa, os contratos foram cedidos à empresa, que agora tem a posse dos créditos. Do total arrecadado nas negociações, 99% vai para o FGTS.
O feito só foi possível dada a flexibilidade conseguida ao longo dos anos. Cedendo à jurisprudência, a empresa passou a reavaliar as dívidas não apenas com base nos contratos firmados, mas no real valor dos imóveis e no montante já pago pelos mutuários. Nas audiências, os prepostos, baseados em normas internas aprovadas pela cúpula da estatal, passaram a propor aos devedores acréscimo de apenas 0,5% sobre o valor financiado, multiplicado pelo número de meses de inadimplência. Em contrapartida, abatiam o valor já pago, corrigido.
Embora a conta pareça óbvia, não é. Contratos firmados antes de 1994 — quando entraram em vigor o novo Sistema Financeiro de Habitação, a tabela decrescente Sacre e o plano Real — sofreram reviravoltas devido aos seguidos planos econômicos. As prestações eram indexadas por equivalência salarial. Quando terminava de pagar as parcelas, o mutuário tinha um saldo devedor de duas a três vezes maior que o valor do imóvel. Entre os anos 1980 e 1990, a Justiça Federal viu desabar uma avalanche de processos, que até hoje ocupam os escaninhos dos tribunais. Até mesmo decisões judiciais que determinavam a troca dos índices de correção eram pegas no contrapé no momento da execução. Com o passar do tempo, muitas vezes o indexador trocado pelo juízo a pedido da parte tornava-se menos vantajoso e aumentava ainda mais a dívida.
“A experiência indica que as sentenças definitivas não resolvem o conflito, em regra. Isso porque, ou mantêm o contrato, tal como está sendo cumprido pela CEF, em relação aos reajustamentos do saldo devedor e prestações, ou promovem alguma adequação que, entretanto, não trazem o valor da dívida para patamar que estimule o adimplemento”, explicou a corregedora nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon, em artigo que faz parte do livro Conciliação e Mediação: Estruturação da Política Judiciária Nacional, organizado pelo Conselho Nacional de Justiça e publicado pela editora Forense.
Interpretação literal
O embrião das conciliações na esfera federal foi gerado em 2002, em Maringá (PR), justamente pela dificuldade em sentenciar casos do SFH. Após algumas decisões de primeiro grau serem anuladas pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região por falta de audiência de conciliação, o juiz Erivaldo Ribeiro dos Santos resolveu radicalizar. Pediu à direção da recém-criada Emgea uma reunião para saber que tipo de proposta a empresa teria para um possível mutirão conciliatório. “Até então, o usual era o juiz apenas perguntar se haveria acordo antes de iniciar a instrução processual. Mas já que o tribunal tinha anulado as sentenças, decidimos tentar realmente fazer um acordo”, lembra Santos.
Segundo ele, o primeiro problema estava na alçada da Emgea, que não foi criada para fazer acordos, mas para livrar a Caixa do crédito “podre”. “Eles não tinham nenhuma possibilidade de proposta, mas conseguimos sensibilizá-los”, conta Santos. “Ele me ludibriou”, brincou Eugen Simarandescu Filho ao falar do assunto em palestra sobre o sucesso das conciliações. Segundo o diretor, desacreditando na proposta, em vez de comparecer à reunião com o juiz, ele enviou uma assessora, que acabou “comprando a ideia”.
As primeiras audiências ocorreram em agosto e setembro de 2002. (Na foto, o juiz Erivaldo Santos, ao centro, dirige uma audiência no TRF-4.) Mesmo com a pequena margem de manobra da empresa, o índice de acordos foi de 45% nas 136 audiências feitas. Sem uma regra padrão, cada redução de crédito ou parcelamento era submetido à diretoria da Emgea, que por sua vez dependia do aval do Tribunal de Contas da União.
“Pegamos todos os contratos que tínhamos em Maringá e levamos para o conselho de administração, e aprovamos medidas para um conjunto de contratos. Com isso, conseguimos viabilizar que um preposto nos representasse, uma vez que já tinha sido deliberada antecipadamente a possibilidade de transigir”, diz Smarandescu. Em 2003, outras 488 audiências foram feitas no Paraná. “No fim de 2002, a Emgea percebeu que esse era o caminho e, depois de um ano ou dois, estendeu para mais estados a possibilidade de negociação”, completa Santos.
O juiz lembra de histórias de vida que mudaram com as conciliações. “Em um dos casos, uma empregada doméstica que trabalhava em Nova Iorque para juntar dinheiro participou das audiências por telefone, com a ajuda da mãe, no Brasil. Quando fechamos o acordo, ela se emocionou. Disse que, doente, já poderia voltar ao Brasil e quitar a dívida”, conta.
Tipo exportação
“Vamos tirar uma foto porque esta reunião é histórica. Vocês verão isso no futuro.” A frase, dita aos não tão convencidos juízes Erivaldo Santos, Antonio Schenkel do Amaral e Silva e Taís Schilling Ferraz, foi do desembargador Vladimir Passos de Freitas, então presidente do TRF-4 em 2003, hoje aposentado. Logo ao tomar posse, ele convocou os juízes para implantar a conciliação como projeto no tribunal, o Projecon. Erivaldo Santos, à esquerda na foto ao lado, hoje se emociona ao lembrar da ocasião. “Foi a primeira experiência efetiva e não apenas formal de conciliação em tribunal federal”, diz. Ele representou o estado do Paraná no projeto. Antonio Schenkel do Amaral e Silva, ao lado de Santos na foto, veio de Santa Catarina, e Taís Ferraz, do Rio Grande do Sul. “Todos tinham perfil de conciliadores”, recorda Freitas, que na foto está ao lado da juíza.
Em 2003, de 63 contratos habitacionais discutidos, 43 foram readequados ou quitados, um sucesso de 69% nos acordos. Em 2004, o volume cresceu e 5.611 audiências foram realizadas. Era a primeira vez que as conciliações envolviam recursos em segundo grau.
Além de investir na experiência, Freitas passou a difundi-la ao convidar juízes e desembargadores de outras regiões para conhecer o projeto. “Eu já tinha essa ideia depois que visitei tribunais em Washington, nos Estados Unidos”, lembra o desembargador. “Depois que criamos o grupo, baixei uma resolução pedindo que os juízes mandassem processos passíveis de conciliação. Apenas um não mandou, mas depois que viu o resultado, mudou de ideia.”
A novidade ainda precisava de apoio e o desembargador foi buscá-lo na própria Caixa Econômica Federal, em Brasília. Quem o recebeu foi o então diretor jurídico do banco, Antonio Carlos Ferreira, hoje ministro do Superior Tribunal de Justiça. Segundo Freitas, a proposta foi ouvida com entusiasmo. “Isso é atividade política judiciária, contatos políticos são indispensáveis. Se o presidente de um tribunal quiser ser apenas juiz e não falar com ninguém, não vai dar certo”, afirma.
O esforço deu resultado. No TRF da 3ª Região, a juíza Daldice Santana (foto) — hoje desembargadora — foi destacada para acompanhar o projeto no Sul e levou o conceito a São Paulo e Mato Grosso do Sul. O juiz Erivaldo Santos foi enviado ao TRF-3 pelo TRF-4 para auxiliar na implantação. Os custos foram arcados pelo próprio tribunal sulista. A partir daí, Freitas conseguiu promover a prática em todos os tribunais.
Estratégia nacional
Em 2005, o Conselho Nacional de Justiça lançou o programa Conciliar é Legal, colocando em prática conceitos aplicados pelo TRF-4. Mesclando a experiência dos Juizados Especiais, o órgão estimulou a solução negociada para além do Sistema Financeiro de Habitação, incluindo outras áreas, como desapropriações e benefícios previdenciários. Em 2010, editou a Resolução 125, que determinou aos tribunais a criação de núcleos de soluções consensuais.
Erivaldo Santos foi chamado para auxiliar na Corregedoria do órgão. Segundo ele, foi uma coincidência. “A ministra Eliana não conhecia minha experiência na área, só ficou sabendo em uma solenidade”, conta. Hoje, ele faz parte do comitê gestor de conciliações do CNJ, comandado pelo conselheiro José Roberto Neves Amorim, desembargador do TJ-SP.
É o CNJ quem atualmente coordena as conciliações. No ano passado, a meta estabelecida foi de fazer 20 mil audiências de conciliação, atingida integralmente. Até agosto, o mutirão na área de habitação resultou em 7,5 mil audiências, 3,5 mil acordos e recuperação de R$ 184 milhões para os cofres públicos, de acordo com o Conselho. Ao todo, as conciliações promovidas pelo CNJ em todas as áreas arrecadaram R$ 360 milhões para o erário. “A Justiça Federal nunca foi afeita à conciliação, por lidar principalmente com órgãos públicos, vinculados à indisponibilidade do crédito público. Mas as audiências quebraram esse paradigma”, comemora Erivaldo Santos. “O interesse público é muito mais bem protegido dessa forma.”
Para 2012, o alvo são 15 mil audiências, meta que será divulgada até o fim de março. O órgão prioriza causas que já passaram por duas audiências sem resultado positivo. Além de ações sobre Sistema Financeiro de Habitação, está em estudo a agregação de matérias como cobranças previdenciárias e execuções fiscais, principalmente as ajuizadas por conselhos profissionais. “No fim de maio começaremos um mutirão para cuidar de execuções dos conselhos de classe”, adianta Santos. O órgão estima que há cerca de 540 mil ações referentes aos conselhos que poderão ser levadas para a mesa de negociação. Só no TRF da 1ª Região, que abrange 13 estados e o Distrito Federal, são 170 mil ações desse tipo — 90% acerca do não pagamento de anuidades. Em São Paulo, só na primeira instância, são 130 mil. Levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Avançada publicado no ano passado pela ConJur mostrou que os conselhos de classe, que cobram anuidades como se fossem órgãos do governo, são responsáveis por 37,3% das execuções fiscais em andamento no país.
Em outubro, o CNJ ensaiou um mutirão com 400 execuções fiscais de multas de autarquias como Ibama e Inmetro contra pessoas físicas e jurídicas. Das cobranças ainda não ajuizadas, a solução negociada resolveu 100% dos casos. Das já ajuizadas, o índice foi de 95%. O maior desafio foi o de convencer os órgãos a transigir em relação a créditos públicos. “Um ato da Advocacia-Geral da União permitiu descontos de até 10% no valor dos débitos e o êxito foi total”, diz Santos. “Existe margem, e se não houver, partimos para o parcelamento. O que não pode haver é preconceito. Ninguém está fazendo renúncia fiscal ou redução de crédito sem base legal, mas ouvimos o executado para que ele nos dê subsídio.”
Também no ano passado, o CNJ conseguiu 100% de acordos em audiências de conciliação para pagamento de gratificações a servidores públicos federais. Apesar de a jurisprudência estar do lado dos servidores, a União insistia em rejeitar os pedidos. Ações nos TRF da 1ª e da 4ª Regiões terminaram graças ao acerto.
Convênio com a Previdência
Destinatário de quase metade dos recursos em processos federais do país, o TRF da 3ª Região montou seu gabinete de conciliação em 2008, apesar de já desenvolver um projeto piloto desde 2004. Os principais alvos foram os casos envolvendo SFH e benefícios previdenciários. Até o ano passado, 60 mil processos passaram pelo gabinete, 20 mil deles previdenciários, relativos a aposentadorias por idade de trabalhadores rurais. Foram concluídas 30 mil conciliações. Em 2011 foram feitas 3 mil audiências em processos do SFH, tendo 1,2 mil terminado em acordo, gerando R$ 63 milhões em créditos para a Caixa. Hoje, a corte tem um calendário anual de semanas de conciliação, nas capitais e no interior de São Paulo e Mato Grosso do Sul. Funcionários da Emgea e do INSS auxiliam nos trabalhos.
O trabalho em causas previdenciárias vem desde 2007, iniciado pelo desembargador Antônio Cedenho (foto), hoje coordenador do gabinete da conciliação no TRF-3. “A proposta do INSS é pagar 80% dos atrasados e implantar o benefício imediatamente”, explica. Os honorários advocatícios, segundo ele, também são pagos em 80% do valor, com autorização da AGU.
Cedenho explica o roteiro: “o advogado da parte recebe um ofício sobre o convênio com INSS, com uma planilha de cálculo dos valores corrigidos e uma petição-proposta dirigida ao gabinete da conciliação, já assinada pelo procurador do INSS e com campo próprio para a parte assinar. Se concordar, assina e manda pelo correio. O desembargador homologa e o INSS, pelo sistema, recebe a informação e implanta o benefício, pago via requisição de pequeno valor. O processo então volta para juízo de origem e, em até 40 dias, o valor é pago. Mais de 20 mil casos foram resolvidos assim”.
Ações vindas dos Juizados Especiais Federais envolvendo a Caixa Econômica Federal também têm sido resolvidas na base do acordo. São feitas conciliações em demandas sobre cheque especial, empréstimos e dívidas com cartões de crédito. “A média tem sido de 80% de conciliação”, conta Cedenho. “Dívidas de R$ 1 milhão foram resolvidas por R$ 3 mil.” O próximo passo será conciliar saldos devedores do Financiamento Estudantil oferecido pela Caixa, o Fies. Mas como o governo federal tem insistido em pedir garantias, acordos têm sido raros.
Hoje, o gabinete da conciliação do tribunal não tem mais de pedir que os desembargadores encaminhem os processos passíveis de solução negociada. A rotina já foi assimilada pelos julgadores. A Escola da Magistratura da 3ª Região também faz sua parte, ao ministrar um curso específico sobre conciliação para os juízes.
Mas nem sempre foi assim. “Antes, os desembargadores ficavam bravos porque tinham que separar os casos e nos mandar, e quando a conciliação não dava certo, tinham o trabalho de recadastrar tudo de novo”, conta Cedenho. Foi na gestão do desembargador Roberto Haddad na presidência que a corte baixou uma resolução determinando o envio de processos primeiro à conciliação, para depois seguirem para os relatores.
Outra novidade são as centrais de conciliação montadas pelo gabinete em locais estratégicos. Na capital paulista, a central fica na Praça da República e funciona com uma juíza e oito funcionários. Campo Grande e Campinas também já têm unidades. Os planos são instalar outras em municípios do interior. “Com isso, pretende-se dar solução também à multidão de execuções fiscais movidas por conselhos de classe. “A ideia é fazer um rodízio: enquanto funcionários do Conselho Regional de Medicina estão em uma cidade, os do Conselho Regional de Farmácia estão em outra. Todo mundo vai saber, inclusive os juízes, que durante aquela semana determinado conselho estará na cidade resolvendo todos os casos”, explica Cedenho.
Segundo ele, cada central vai desenvolver seus próprios programas de conciliação com os temas mais recorrentes na sua região, mas sempre tratando também das matérias que fazem parte do programa do gabinete e do CNJ. A proposta é que todas tenham um juiz titular e um auxiliar.
Por Alessando Cristo
Fonte: ConJur
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