Impossível falar em arbitragem sem mencionar grandes números. No Brasil, um levantamento feito pela Fundação Getúlio Vargas revelou que a arbitragem brasileira bateu seus próprios recordes em 2009. Os valores envolvidos em decisões por esse método quase triplicaram, passando de R$ 867 milhões, em 2008, para R$ 2,4 bilhões. O número de casos quase dobrou, passando de 77 procedimentos em 2008 para 134 no ano passado.
Neste domingo (23/5), no Rio de Janeiro, tem início a Conferência do Conselho Internacional de Arbitragem Comercial (ICCA, sigla da designação em inglês) , com o tema Desafio para a Prática de Arbitragem em Tempos de Mudança. É a primeira vez que o Brasil sedia o evento. A escolha não foi por acaso. De acordo com o ranking da Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional (CCI), o Brasil é o líder regional em partes envolvidas em procedimentos arbitrais.
“A arbitragem está instituída e arraigada no Brasil. O número de procedimentos e valores só tende a crescer”. A afirmação é do advogado Carlos Nehring Netto, um dos primeiros brasileiros a ingressar na CCI. Membro da ICCA desde 1987, sua história com a arbitragem começa nos anos 1970, época em que mantinha um escritório em Paris, cidade sede da CCI. Lá foi convidado pela primeira vez para participar de uma arbitragem. “O presidente da CCI me perguntou se eu sabia o que é arbitragem. Eu não sabia, não ensinavam nas faculdades, tive que aprender”. Nos primeiros casos, ficou apenas assistindo. Até pegar seu primeiro procedimento como advogado por uma empresa brasileira.
O advogado aponta a área da construção civil como a maior fonte de arbitragem em todo o mundo. “Devido à complexidade da coisa. Qualquer defeitinho numa construção pode traduzir efeitos e consequências mirabolantes”, explicou.
Uma das mudanças que destaca é a redução do fator “confidencialidade”. “Na nossa lei, há tantas hipóteses para as partes recorrerem à Justiça comum que a confidencialidade fica comprometida. Por outro lado a publicação de decisões arbitrais é desejada por todos para podermos se socorrer de jurisprudência”, comentou.
Carlos Nehring é bacharel em Direito. Desde 1967, exerce a advocacia por conta própria, juntamente com dois sócios, no escritório Nehring e Associados – Advocacia. É autor de diversos artigos sobre Arbitragem, publicados na imprensa especializada nacional e internacional. Nessa entrevista à ConJur, Nehring fala sobre assuntos ligados ao método como corrupção, a influência do setor econômico, os cuidados de um árbrito e os casos mais comuns de processos envolvendo arbitragem no Brasil e no mundo.
Leia a entrevista
ConJur — De 2005 para cá, houve um grande aumento em número de procedimentos de arbitragem. O valor foi de 2,4 bilhões em 2009. O crescimento do ano passado pode ter tido uma relação com a crise econômica?
Carlos Nehring — Na época em que eu fui membro da Corte de Arbitragem da CCI, a entrada de casos era cerca de um por dia. Hoje, entra mais de dois por dia. Mas isso é apenas a evolução natural. É claro que alguns casos se devem à crise, porque o problema econômico surge, e consequentemente, a qualidade do trabalho pode ser afetada e é natural que surjam problemas que não se pode prever. Agora, o mundo tem tanta obra, progresso e investimento acontecendo que é fatal que os problemas vão crescer também.
ConJur — É correto dizer que o crescimento da arbitragem depende de como está a economia?
Carlos Nehring — Sim. Num escritório de advocacia, você chama os anos positivos de pastas verdes, cor da esperança. E tem também os anos de crise, nos anos de crise, você tem as pastas vermelhas, porque também vai ter o mesmo número de acontecimentos que tenham que terminar na Justiça, ou coisa parecida.
ConJur — Vieram mais investimentos estrangeiros para o Brasil depois que passamos a fazer parte da Convençaõ de Nova York [tratado internacional sobre arbitragem assinado por 140 países, entre eles o Brasil]?
Carlos Nehring — Não, viria de qualquer forma. A forma de resolução do conflito ajuda, claro, entusiasma ou encoraja o empreendedor a vir, mas ele viria de qualquer maneira para o Brasil, querendo ou não querendo, qualquer que seja o momento.
ConJur — A arbitragem é só para grandes empresas e grandes causas, ou ela pode ser usada, por exemplo, na área trabalhista?
Carlos Nehring — Para manter uma instituição arbitral tem que ter um certo mínimo qualitativo e quantitativo que te obriga a ter realmente uma estrutura que custa alguma coisa. E para isso, o orçamento deve estar muito mais ajustado aos grandes conflitos do que aos pequenos. Na CCI, um processo de US$ 20 mil, US$ 30 mil é impensável. O custo dela por caso é do milhão para cima ou qualquer coisa assim. A grande arbitragem é causa grande.
ConJur — A disseminação da arbitragem lá fora também ocorre porque a Justiça é lenta?
Carlos Nehring — Eu tive um escritório fora do país. Não vou dizer que a demora seja tão grande como no Brasil. O juiz estatal não tem tempo útil. Por mais que conheça do direito societário para resolver um problema, ele tem dois dias de audiência para ouvir todo mundo que lá está. Nos Estados Unidos pode ser que seja um pouco melhor, mas há sempre uma pressão de tempo atrás do juiz estatal. Ele tem deveres que ultrapassam o tempo de trabalho dele. Já vi sentença de mil e duzentas páginas. Certa vez, fui chamado como testemunha em Direito brasileiro, um expert witness, no EUA. Os autos desse processo ocupavam uma parede de quatro metros. A audiência foi de sete dias corridos com 52 testemunhas. Duas apenas falaram sobre o Direito brasileiro e 50 falaram dos aspectos técnicos do problema. Não há justiça estatal que possa competir com isso.
ConJur — Mesmo se houvesse varas especializadas, juízes especializados?
Carlos Nehring — Falta tempo, necessariamente. Pode e deve haver especialização. Se você tem juízes de vara de família é porque vai tratar de negócios de separação, talvez até de direito sucessório. Mas e daí? A sala deles está sempre atolada de procedimentos.
ConJur — A qualidade não vai ser a mesma?
Carlos Nehring — Não pode. Não dá. Não digo que não haja brilhantes atuações na segunda instância ou nas instâncias ainda superiores à corte de apelação. Mas a base não nasceu perfeita.
ConJur — Como se faz uma cláusula arbitral? O que é levado em conta?
Carlos Nehring — Você tem cláusulas modelo que as instituições de arbitragem recomendam. Elas são universais. Muda um termo, muda a língua, muda um adjetivo, mas elas são todas parecidas. E preferem ser como a Constituição americana, ou seja, uma coisa curta, enxuta, que apenas anuncia que haverá uma arbitragem. Agora, quando você analisa um contrato que vai ser assinado deve-se fazer algo harmônico e que represente os interesses postos na mesa por ambas as partes. Aí vai mais ao detalhe, pode escrever uma cláusula arbitral de três páginas. Não há problema. É só você imaginar tudo o que pode acontecer no conflito.
ConJur — Um advogado precavido já não vai fazer a sua defesa previamente na hora de redigir o contrato?
Carlos Nehring — O recomendável seria sempre fazer isso. Mas nem sempre a gente quer discutir um problema teórico. Você naquele momento supõe que não vá existir problema. Por exemplo, você é um banco, você vai emprestar dinheiro a alguém. Você exigiu garantias para o recebimento futuro do seu principal, dos juros, acessórios, tudo que você possa prever. Será que vale a pena escrever muita coisa em uma clausula arbitral ou simplesmente dizer: "Ah, a lei do estado de Alabama vai prevalecer e eu vou fazer esta arbitragem sobre a égide dela? Em um negócio de empréstimo é tudo tão simples". Agora, amanhã você vai construir a barragem de Belo Monte. Meu Deus! Deve haver milhões de fatores a serem decididos. Você pode até em um contrato dessa natureza somente certas matérias são sujeitas a arbitragem, outra não. Tudo isso depende realmente não só dos personagens do drama como da circunstância em que você está criando numa clausula arbitral. Fica meio ao critério dos advogados das partes na feitura do contrato.
ConJur — O senhor acha necessária a lista de árbitros que existe em algumas câmaras?
Carlos Nehring — Não concordo que haja necessidade de ter uma lista de árbitros. Se a arbitragem está sujeita à autonomia e à vontade das partes, não deveria ser exigível que algum árbitro tenha que ser sócio do clube. A CCI, por exemplo, não tem uma lista. Quando é chamada para nomear alguém, pede indicação ao comitê do país das pessoas a serem recomendadas. Se o conflito for entre partes de países diferentes, o presidente deveria idealmente ser de um país neutro. Uma exceção conhecida do Brasil e aceitável é a da Câmara Brasil-Canadá. Ela tem uma lista. E é dessa lista que ela exige pelo regulamento que seja escolhido o presidente do tribunal. Isso pode ser interpretado como restritivo, mas também como selo de qualidade. Ela quer assegurar qualidade ao indicar árbitros que figuram na lista dela. Mas, o mundo arbitral não é muito grande. A gente se conhece, todo mundo se conhece. E, se você sair da linha, passa para uma lista negra, em vez de uma lista branca.
ConJur — O senhor já testemunhou algum caso de corrupção em arbitragem?
Carlos Nehring — Corrupção é uma coisa que eu acho que não entra na arbitragem. Se entrar, o árbitro ou quem quer que seja está excluído no dia seguinte. Percebe-se. Fica-se sabendo. A pessoa que se presta a ser árbitro fica sob suspeita às vezes racional, às vezes justa, às vezes até irracional, injusta. Conheço casos em que se percebe que ali houve alguma coisa estranha.
ConJur — Mas o que ficou decidido permanece, mesmo estando o árbitro sob suspeita?
Carlos Nehring — Ah sim. A menos que você tenha prova. Se tiver a prova da corrupção na sua mão, se tiver a fotografia, imagem na televisão do árbitro botando dinheiro na meia, aí você pode derrubá-lo.
ConJur — Já aconteceu alguma vez de um árbitro ser derrubado por corrupção?
Carlos Nehring — Uma vez, na Europa, houve um tribunal arbitral composto de três pessoas, uma delas era uma mulher que chamava a atenção por sua beleza. O advogado da parte que tinha nomeado a senhora como árbitro também era um cidadão muito boa pinta. E o advogado da outra parte sentiu alguma coisa. Ele colocou um detetive que filmou em um motel a entrada da senhora no quarto daquele senhor numa determinada noite. Com este filme, houve a impugnação e a anulação da arbitragem porque o voto teria sido proferido por quem não podia proferir. Em compensação, em outros países, é bem conhecida a história de um de nós, árbitros, que um dia desembarcou num país árabe qualquer e foi direto para a prisão, devolvido diretamente para o país de origem. Quer dizer, impediram esse árbitro, que ia participar de um tribunal arbitral para decidir um certo conflito. Criaram um impedimento físico. Isso acontece.
ConJur — Como evitar esse tipo de pendências com os árbitros?
Carlos Nehring — Quando se é nomeado árbitro você tem que se perguntar: eu já trabalhei para este cidadão ou para este grupo? Eu já o defendi em alguma causa? Eu já fiz um parecer para esta companhia no passado? Depois de todas as respostas negativas, você é um cidadão independente, o público está convencido que você é um cidadão imparcial. Então, você reúne as qualidades para ser e aceitar a função de árbitro. No termo de independência, é melhor relatar qualquer coisa, do que esconder. Há advogado, que não reconhecendo os méritos da arbitragem, quando sente que o vento está tocando em uma direção que não lhe agrada, começa a criar problemas em relação ao árbitro. Em certos momentos, cria uma tal animosidade que o árbitro não tem outro remédio senão o de renunciar. Isso é um mal que se faz contra o instituto da arbitragem.
ConJur — Na prática, como age o advogado mal intencionado?
Carlos Nehring — Ele acusa de tudo que você imaginar, de partidarismo até corrupção. Faz suposição de que o árbitro está vendido à outra parte. E aí, destrói o andamento da arbitragem. Isso me incomoda. A nossa lei podia fazer com que o juiz estatal penalizasse em pecúnia essa manobra toda, não propriamente ao advogado, mas à parte que ele está defendendo.
Por Geiza Martins e Lilian Matsuura
Fonte: Conjur
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