segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Amor e futebol se encontram na audiência de separação

Reconciliação
Sempre me senti muito desconfortável quando, nas separações consensuais, a lei me obrigava a perguntar ao casal se eles tinham certeza da decisão tomada.

Ora, se procuraram um advogado, estabeleceram as cláusulas da separação e ali estavam, na frente de um juiz pra encurtar aquele período de desgaste, o que se esperava que fossem responder?

Tratava, então, de diminuir o constrangimento e começava, assim, as audiências:

— Desculpem, não quero parecer invasiva ou inconveniente, mas a lei manda que eu pergunte se vocês querem mesmo se separar.

Então prosseguia perguntando se eles ratificavam o acordo para, no mesmo ato, decretar a separação. Simples, rápido, sem qualquer rito especial exceto pela exposição pública da frustração daqueles mortais que percebiam que a felicidade perene, o até que a morte nos separe chegava ao fim sem pompa, sem música, sem convite e sem festa.

Dependendo do casal e do clima, me permitia um ou outro comentário pra aliviar a tensão e reduzir a dor da perda. Sim, porque nossa tendência, após anos trabalhando na mesma atividade é perder a capacidade de individualizar as dores e os conflitos que chegam às nossas mesas. Cada processo é um processo. Cada casal é um casal. Cada fim de casamento é um fim de mundo e cada audiência é única para aqueles que comparecem diante de um juiz e expõem as frustrações pela incapacidade de viver um grande amor.

É uma pena que o amor não acabe ao mesmo tempo para os dois. O amor acaba e ninguém avisa isso pra ninguém que pretende se casar. E a percepção do fim acontece de repente. Não se consegue estabelecer uma data, um fato, um porquê, mas de uma hora pra outra alguém constata que não dá um beijo na boca do outro há mais de um mês. Os prazeres tomam caminhos solitários e um não consegue sequer saber o que comove ou sensibiliza seu companheiro.

A rotina, a falta de dinheiro, problemas com os filhos adolescentes, desemprego, stress, cansaço, a crise política, tudo parece conspirar para mascarar o diagnóstico e retardar a terrível constatação captada com perfeição pelo poeta... o nosso amor acabou, que coincidência é o amor, a nossa música nunca mais tocou...

Daí pra frente, o casamento vira uma espécie de prorrogação, de terceiro tempo sem tempo pra terminar e dependendo da capacidade de suportar a vida pintada em bege, as relações podem até mesmo durar pela vida toda.

Tenho observado que nos processos de separação, quando não há uma nova paixão avassaladora, as decisões são, na maioria das vezes, tomadas pelas mulheres. Observo, também, que quando a separação importa na redução da capacidade financeira, os casais têm optado pela manutenção da relação e procurado formas de convívio menos dolorosas.

Foi, portanto, com algum estranhamento, que vi entrar na sala de audiências o contador Robério e professora aposentada Idalina.

Trinta e oito anos de casamento, quatro filhas, todas casadas, seis netos, nenhum patrimônio para partilhar, nenhum pedido de pensão alimentícia.

Na petição inicial nenhum ressentimento declarado ou qualquer imputação de culpa. Pretendiam a separação por incompatibilidade de gênios.

Formulei, então, a burocrática pergunta: Querem mesmo se separar ou há possibilidade de reconciliação?

Silêncio. Idalina baixou a cabeça encorajando Robério a se expressar.

— Ninguém quer se separar não, excelentíssima. Nem sei porque viemos aqui.

Estava tão acostumada com a repetição que, confesso, não sabia como prosseguir. Tentei me manter impávida e voltei à abordagem:

— Bem, se não querem se separar por que entraram com a ação?

— Essa mulher tá com a cabeça virada. Mas a gente já se acertou, aliás, passamos uma noite maravilhosa..., disse Robério mal conseguindo conter o orgulho da virilidade naquela idade.

Idalina nada falava. Parecia distante e perdida. Decidi ser mais firme em apoio ao que imaginei fosse o desejo daquela mulher.

— Olha seu Robério. Eu sei que esta decisão é muito difícil, que vocês viveram muitos anos juntos, mas, quando os dois não querem, acho impossível continuar casado. Vocês têm uma família grande, netos, mas quem sabe não é melhor cada um seguir sua vida, não é dona Idalina?, perguntei, cúmplice.

Pela primeira vez ela tomou as rédeas da situação e foi firme na intervenção:

— Não é melhor não, doutora, melhor mesmo é continuar com ele.

Ela não sorria, não esboçava qualquer sinal que indicasse a felicidade do reencontro. Imaginei que pudesse estar pressionada ou submetida ao poder daquele que exerceu o controle de uma vida inteira.

Decidi que seria solidária e transmitiria à Idalina, a segurança que ela tanto precisava.

É claro que aquele comportamento não integrava meus deveres funcionais. No entanto, a magistratura era uma das muitas funções que eu exercia na vida e é claro que todas as minhas virtudes e vícios transpareciam de alguma forma no exercício da profissão. Naquela ocasião atuei parcialmente em favor de Idalina para compensar as diferenças daquela relação que intui tão desigual e prossegui:

— O respeito é sempre muito importante. E vocês devem continuar sendo amigos. Se as coisas mudarem, quem sabe até voltam a namorar?

Idalina me interrompeu.

— Eu não quero me separar mas preciso falar umas coisas. Por isso vim aqui.

Robério coçou a cabeça como uma criança que se prepara para um sermão.

— Eu não agüento mais tanta falta de atenção. Eu só quis me separar porque me sinto muito sozinha. As crianças foram embora. A casa tá vazia. A gente mal se fala. Almoço e janta com a televisão ligada. Tudo que eu falo ele não escuta. Mas a gota d’agua é o futebol. Eu não suporto futebol todo dia. Enquanto ele assistia o jogo no mês passado, disse que estava saindo de casa. Sabe o que ele respondeu? Nada. Pediu que eu saísse da frente porque tinha sido impedimento... Dá pra acreditar? Impedimento?!!! Naquela mesma noite fui pra casa da minha filha e no dia seguinte procurei o advogado.

— Mas, D. Idalina, há quanto tempo ele assiste futebol?, perguntei.

— A vida toda. Mais de vinte anos...

Não pude conter o riso. Pensei em meu pai e sua paixão alucinada pela peleja. Avaliei os riscos que corria.

Ela prosseguiu:

— Ele é um homem bom, doutora. A gente lutou muito junto. Toda a vida e a gente nunca se largou. Ele nunca teve mulher na rua.

Robério, verdadeiramente sensibilizado olhou para Idalina e quase num sussurro a fez lembrar da aquisição da casa, da única viagem de férias a Cabo Frio, da perda do filho homem num acidente de carro e do quanto, juntos, eles dividiram toda a vida.

Os dois, de mãos dadas sobre a mesa, choravam.

Eu tentava me socorrer do conhecimento jurídico para retomar o rumo daquela audiência e só lembrava dos filmes e romances que lera pela vida a fora.

Entendi que sabia muito pouco da vida. Aquele casal se amava e esperava que da minha autoridade viesse uma resposta para o abismo que ali se instalou. Achei que não podia decepcioná-los.

— Olha aqui pessoal. Eu não vou separar vocês não. A gente combina o seguinte: suspendo o processo por 60 dias. Nesse período, o Seu Robério só assiste aos jogos do Flamengo. No resto do tempo, vocês saem, passeiam um pouco pela cidade, almoçam domingo na casa das filhas, ajudam com os netos. Tá bom assim?

Aliviados, os dois nem me olharam. Estavam encantados um pelo outro.

Nem o advogado nem o Ministério Público discordaram de decisão tão teratológica. Quem ousaria depois de presenciar tanto mistério?

Antes de sair, já do lado de fora da porta, Idalina me olha e sorrindo pergunta:

— É só jogo do Flamengo mesmo, né, doutora?

*Esta crônica faz parte de uma experiência literária da juíza Andréa Pachá que, junto com outros textos, deverá em breve se transformar em livro.

Por Andréa Pachá é juíza de Direito em Petrópolis (RJ) e ex-conselheira do Conselho Nacional de Justiça
Fonte: ConJur

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