Onda conciliatória
A conciliação não é queima de estoque. A redução de trabalho no Judiciário é apenas uma consequência. A chamada “onda conciliatória”, pela qual o Judiciário está passando, acontece justamente no momento em que há a ampliação da atuação dos tribunais, mais demanda e mais participação do juiz em políticas públicas, por exemplo. A constatação é do desembargador Paulo Afonso Brum Vaz, coordenador do Sistema de Conciliação do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (Sistcon).
Na disputa sadia para ver quem conseguia maiores índices na 6ª Semana da Conciliação, no final de 2011, a Justiça Federal da 4ª. Região, que jurisdiciona sobre os três estados da Região Sul, aparece com resultados bastante módicos. Foram 4.625 audiências, 2.524 acordos homologados e R$ 40,9 milhões envolvidos. O modesto desempenho, no entanto, não desanima Paulo Brum Vaz. “No geral, avalio que os resultados foram positivos, mas entendo, por outro lado, que poderíamos ter avançado muito mais, não fosse a falta de estrutura.”
Brum Vaz, fã ardoroso da conciliação, que ele classifica como a forma mais democrática de pacificação dos conflitos e ampliação do acesso à Justiça, garante que ela só vem funcionando graças ao esforço e talento de poucos. E isso precisa mudar, não só para aliviar a sobrecarga de trabalho, mas para conferir maior nível de engajamento e profissionalismo nas políticas de conciliação.
“Conciliar demanda tempo. Não vai reduzir o trabalho do juiz; ao contrário, vai aumentar. O sistema é paradoxal, é esquizofrênico. Estamos exigindo dos juízes metas, produtividade, resultados e, ao mesmo tempo, cobramos que eles gastem tempo com a aproximação das partes para a conciliação. Por isso é que se tem de buscar um equilíbrio”, desabafa o coordenador do Sistema de Conciliação da 4ª Região (Sistcon).
A procura por este ponto de equilíbrio é um desafio interno da magistratura em função dos desdobramentos da chamada “onda conciliatória”. Afinal, os juízes e desembargadores não estão decidindo, apenas, a sorte de pendengas judiciais, mas interferindo proativamente nas questões de interesse social, corrigindo falhas dos poderes Executivo e Legislativo. “Somos verdadeiros protagonistas no estado social democrático de direito e no palco político. O rol de atribuições do Judiciário se alargou muito. Houve um câmbio no papel do juiz moderno. O eixo passou a ser Direito-juiz, ao invés de Direito-lei”, frisa.
Nesta nova lógica, continua o desembargador, a conciliação deixa de ser um método alternativo de resolução de conflitos e passa ser o foco principal do Judiciário, principalmente quando envolve ações de massa. O Sistcon, garante o desembargador, está dando um passo além da Justiça do Trabalho, pioneira na conciliação judicial. Criou um programa de conciliação pré-processual que vem resolvendo os problemas de inadimplência do crédito estudantil federal e nas desapropriações para obras públicas. “Tem muito estudante que não está conseguindo pagar, nem tem interesse em calotear ninguém. A ideia é renegociar a dívida. Nós chamamos essas pessoas e fazemos a aproximação. Se a negociação sai, todo mundo fica feliz, e não existe processo judicial’’, complementa o desembargador.
Em entrevista concedida ao Anuário da Justiça Federal, que será lançado nesta quarta-feira (29/2), em Brasília, o desembargador fala, ainda, das vantagens e dificuldades da conciliação. É contra, por exemplo, acordos que representem a perda ou diminuição dos direitos dos beneficiários do INSS. E conta dos esforços para fazer com que os advogados abracem a ideia da conciliação, percebendo que os próprios profissionais ganham com a prática.
Juiz de carreira desde 1991 e desembargador federal após 2001, Paulo Afonso Brum Vaz nasceu em Santiago (RS) no dia 2 de junho de 1959. Formou-se em Direito pela PUC (1983), fez pós-graduação em Direito Processual pela Universidade Federal de Santa Catarina (1989) e mestrado e MBA em Poder Judiciário pela Fundação Getúlio Vargas (2007).
Em junho de 2009, Brum Vaz passou a coordenar os Juizados Especiais Federais (JEFs) e, hoje, está à frente do Sistema de Conciliação (Sistcon) em toda a 4ª Região. É considerado um magistrado humanista, dotado de espírito público e visão social. “Por trás de cada processo, existe uma pessoa”, costuma dizer.
Além de julgar e cuidar das políticas de conciliação, o desembargador tem intensa atividade intelectual. É articulista, professor, ex-diretor da Escola da Magistratura Federal (Emagis) e escritor. Dentre os livros, destaque para Direito Penal Econômico, que está para ser lançado, Manual da Antecipação de Tutela, Antecipação de Tutela na Seguridade Social, Agrotóxicos e Meio Ambiente, dentre outros.
Leia a entrevista
ConJur — Quais foram as metas ou deliberações da reunião com os coordenadores e assessores do Sistema de Conciliação da 4ª Região (Sistcon), no dia 6 de dezembro, na sede do TRF-4?
Paulo Afonso Brum Vaz — A reunião tinha como proposta promover um balanço do que até aqui foi realizado e discutir o planejamento estratégico para 2012, além de debater alguns problemas pontuais. Deliberamos que cada Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejuscon) deverá definir as suas metas para o próximo ano, para posterior apreciação da coordenação. E que iremos reivindicar junto às direções do Foro das Seções Judiciárias da 4ª. Região uma estrutura funcional e física adequada para o funcionamento dos Centros. Vamos postular na Corregedoria-Regional que os coordenadores regionais possam desempenhar suas atividades com prejuízo da jurisdição.
ConJur — Qual balanço o senhor faz da última Semana da Conciliação, realizada de 28 de novembro a 2 de dezembro?
Paulo Afonso Brum Vaz — No cômputo geral, avalio que os resultados foram positivos. Entretanto, entendo que poderíamos ter avançado muito mais, não fosse a falta de estrutura. Isso explica, por exemplo, o fato de que em algumas unidades jurisdicionais não se tenha realizado acordos. Em outras, tivemos dois ou três acordos. O nosso sistema de conciliação demanda mais profissionalismo e constância. Ele está funcionando mais no esforço e talento de poucos. Conciliar demanda tempo. Não vai reduzir o trabalho do juiz; ao contrário, vai aumentar. Veja como o sistema é paradoxal, é esquizofrênico. Estamos exigindo dos juízes metas, produtividade, resultados e, ao mesmo tempo, cobramos que eles gastem tempo com a aproximação das partes para a conciliação. Por isso é que se tem de buscar um equilíbrio. É preciso incentivar as conciliações, mas é necessário dar condições para o juiz continuar julgando os processos com sentença, porque muitos deles não são vocacionados para a conciliação. Nos casos em que não é possível a conciliação, precisamos ser mais rápidos para julgar, sem perder a sensibilidade e a profundidade necessárias. Eis o nosso dilema.
ConJur – Então, há um efeito contrário ao pretendido, pois o julgador passou a trabalhar mais.
Paulo Afonso Brum Vaz — Não exatamente, porque conciliação não é queima de estoque. A redução de trabalho é apenas uma consequência. Mas o certo é que a “onda conciliatória” chega a nós, juízes, justamente no momento histórico em que ampliamos nossa atuação nesse chamado movimento de judicialização da política e de politização da Justiça. Hoje, nós estamos participando e implementando políticas públicas, atuando na correção da atuação do Executivo e do Legislativo. Somos verdadeiros protagonistas no estado social democrático de direito e no palco político. O rol de atribuições do Judiciário se alargou muito. Houve um câmbio no papel do juiz moderno. O eixo passou a ser Direito-juiz, ao invés de Direito-lei. Hoje, nós somos voltados para o social, para a implementação dos direitos fundamentais e da Constituição. Isso demanda tempo e muito trabalho, principalmente nas áreas previdenciária e administrativa. Nós não nos limitamos a interpretar a lei. Não basta mais conhecer a lei. Nós criamos o Direito para o caso em julgamento, tecendo e interpretando a ordem jurídica como um todo. Isso toma tempo, dá trabalho, exige abnegação e desprendimento. Demanda muita preparação e um conhecimento multidisciplinar e humanista.
ConJur — Em que momento o senhor despertou para a importância da conciliação?
Paulo Afonso Brum Vaz — Desde o início da minha atividade jurídica, ainda como advogado, tive a consciência de que é sempre melhor buscar uma solução amigável, consensual, do que judicializar o conflito de interesses. Após ter ingressado na magistratura, percebi que resolver os conflitos pela forma da sentença adjudicada — em que o estado substitui a vontade das partes, impõe a sua vontade — não era possível num prazo razoável. E também não era satisfatório, não gerava a paz social. A solução dos conflitos por sentença, embora necessária e indispensável, acabava acirrando os ressentimentos, as mágoas. As partes são colocadas em situação dialética, num verdadeiro duelo. E o que se tem, ao invés de todos ganhando, é um vencido e um vencedor. Com o advento da chamada ‘‘terceira onda’’, incentivando a autocomposição, nós almejamos inverter esta lógica: queremos a atuar com base no “ganha-ganha”, em que todos saem do conflito felizes. Assim, o Poder Judiciário cumpre o seu papel de pacificação social. Por tabela, culmina por resolver um problema antigo que é a solução de demandas em tempo razoável; resolve o problema dos números, da estatística, da litigiosidade e da demanda sempre crescentes, que colocam o processo judicial em mora para com a sociedade, ávida por Justiça. Só vejo vantagem nisso. Apesar de atuar na área criminal, sou um grande incentivador das conciliações. Acredito que esse é o caminho para o Poder Judiciário resolver as suas crises de efetividade, de eficácia, de legitimidade e de identidade. É o caminho para nós resgatarmos a nossa credibilidade e realmente democratizarmos o acesso à Justiça, possibilitando que as partes, que criaram o conflito, possam democraticamente resolvê-lo. É o método de gestão do processo mais eficaz e que deve constituir a tônica desse início de milênio, uma verdadeira releitura do papel do Poder Judiciário para o século XXI.
ConJur -- Quais as diferenças entre conciliação, mediação e arbitragem. Em quais o Judiciário atua?
Paulo Afonso Brum Vaz — As três formas tradicionais de solução de conflitos, fora do âmbito jurisdicional, são a conciliação, a mediação e a arbitragem. São os chamados MARDs (métodos alternativos de resolução de disputas), que hoje deixaram de ser alternativos para se tornar a prima ratio para a atuação do Poder Judiciário. Um serviço que o Judiciário oferece como prioritário. No caso da Justiça Federal, temos mais casos de conciliação, que são transações mediante recíprocas concessões, em que as partes convencionam pôr fim ao litígio, abrindo mão, cada uma delas, de uma parcela de seu direito. Interessa chegar a um acordo, e o Poder Judiciário tenta aproximar as partes para este fim. A mediação, bastante usada na Justiça Estadual, é mais típica das relações de família, não interessa tanto o acordo, e muito mais resolver o problema das pessoas, resgatar a convivência harmônica. E a arbitragem não é feita pelo Poder Judiciário. É feita por árbitros e tem uma lei própria. Na Justiça Federal, não é aplicada.
ConJur — O senhor poderia explicar melhor como nasceu a expressão "terceira onda"?
Paulo Afonso Brum Vaz — A expressão ‘‘terceira onda’’ foi cunhada pelo professor Mauro Cappelletti, jurista italiano falecido em 2004. É um incremento, um incentivo, a estas formas alternativas de solução dos conflitos. Hoje, para o Poder Judiciário, a alternativa é a solução por sentença e a prioridade é a conciliação. Nós invertemos essa lógica. O que o professor Cappelletti pensava era na alternativa que pudesse oferecer a pacificação social. Há uma reengenharia do papel do Poder Judiciário, que fica agora mais centrado na aproximação das partes. E deixa como secundária a sua participação no que diz respeito ao monopólio da prestação jurisdicional, de solver conflitos com imposição de vontade, que é muito pouco democrático, convenhamos. E realmente isso tem se refletido numa redução de demandas — que não é a função primordial da conciliação. Não se concilia apenas para eliminar processos. A redução da demanda é um efeito secundário, uma mera consequência.
ConJur — Hoje, os centros de conciliação da Justiça Federal contam com uma estrutura adequada, servidores exclusivos e capacitados para atuar na promoção dos mutirões?
Paulo Afonso Brum Vaz — Não. Nós temos em vigor uma política judiciária nacional de tratamento adequado de conflitos. Esta política foi criada pelo CNJ, com a Resolução 125. No tribunal da 4ª Região, foi implementada também por uma Resolução, a de número 15. Ambas estabelecem a criação de centros de conciliação e cidadania e define toda a estrutura do sistema de conciliação. Trata-se de um sistema orgânico completo. Infelizmente, o Poder Judiciário não está preparado para implementar esta política pública. Primeiro, porque não dispõe de servidores em número suficiente. Segundo, porque não dispõe também de juízes em número suficiente. E os poucos que nós temos precisam acumular as duas atribuições. Os nossos coordenadores têm uma atividade intensa, e precisam se dividir com o trabalho diário em suas varas. Partindo da ideia de que iremos profissionalizar este serviço, precisaríamos contar com uma estrutura adequada, um quadro funcional suficiente, servidores e juízes com exclusividade, além de espaço físico adrede concebido para atender essa nova demanda que prometemos oferecer aos nossos jurisdicionados. Vale lembrar que os centros não foram criados só para aproximação das partes, a fim de obter o acordo, a conciliação. É preciso notar que foi acrescentada a palavra “cidadania”. Essa “cidadania” quer dizer ampliação do atendimento. Nós precisamos criar centros nos moldes do Tudo Fácil, Pró-Cidadão, que as grandes capitais têm. Hoje, na sede da Seção Judiciária de Porto Alegre, só temos um serviço que se aproxima daquele que previu a Política Judiciária; e também um Cejuscon com Casa de Cidadania, o de Criciúma (SC), que oferece um atendimento mais amplo. Este é um serviço de utilidade pública que depende da adesão das pessoas interessadas. Elas precisam saber que podem se dirigir a um Cejuscon e dizer que gostariam que o seu processo fosse submetido a uma forma de conciliação, o que, aliás, é um direito subjetivo seu. Quando a política pública oferece essa via de acesso ao Judiciário, isso representa o reconhecimento de um direito subjetivo. Para o Judiciário, constitui uma obrigação; para os juízes, um dever inerente ao cargo.
ConJur— Quais as demandas que favoreceram a conciliação no âmbito da Justiça Federal da 4ª. Região em 2011?
Paulo Afonso Brum Vaz — Quase todos os processos são vocacionados para a solução consensual: ações previdenciárias, principalmente por incapacidade; ações sobre o Sistema Financeiro da Habitação (SFH), FGTS, ações coletivas funcionais, execuções de contratos bancários, crédito educativo federal (FIES), dentre outros, como os processos de desapropriação das áreas para ampliação da BR-101 e também do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre. Aliás, o sucesso destes acordos nos rendeu o Prêmio Conciliar, outorgado pelo CNJ.
ConJur — Os processos envolvendo os chamados “contratos de gaveta”, financiamento oficial da casa própria, favorecem a conciliação?
Paulo Afonso Brum Vaz — Favorecem sempre. Aliás, o início do nosso trabalho se deu com a conciliação de processos do SFH. O primeiro programa, se não me engano, foi em 2003. Foi pioneiro no Tribunal. Nós, em boa medida, conseguimos resolver o problema daqueles processos de “contrato de gaveta”. Muita gente recolhia em juízo quantias insignificantes. Isso não atendia o interesse de ninguém. Nem dos mutuários, que nunca tinham a garantia do imóvel; nem do agente financeiro, que nunca recebia. Quando veio a Engea (Empresa Gestora de Ativos, criada para cumprir o papel de liquidante dos créditos imobiliário originários da CEF, tomando como base o valor do imóvel), foi possível negociar, discutir. A participação da Engea foi essencial, porque se pôde negociar com alguém que tinha interesse pelo crédito. Até então, os agentes financeiros não tinham o mínimo interesse em resgatar esse crédito e nem de regularizar as propriedades. Todo mundo perdia com isso, e o Poder Judiciário não julgava. Em 2003, começamos a chamar as pessoas, e elas foram aceitando. Percebemos que os mutuários não eram um bando de gente sem escrúpulos, que se utilizava da Justiça para não pagar a prestação, como se dizia na época. Na maioria dos casos, as pessoas estavam em situação aflitiva, não tinham condições de pagar, porque houve um aumento assustador das prestações. Conversando e esclarecendo, conseguimos milhares de acordos. Hoje, inclusive com varas especializadas, oferecemos este serviço em caráter permanente.
ConJur — A Justiça do Trabalho foi a primeira a apostar na conciliação. Há o que aprender com este pioneirismo?
Paulo Afonso Brum Vaz — Queremos copiar as ideias boas deste modelo. Nós estamos implementando, incentivando e apostando todas as nossas fichas nas conciliações pré-processuais. Já temos, inclusive, alguns programas de conciliação pré-processual. Antes de instaurado o processo, nós tentamos resolvê-lo. É uma espécie de programa de redução de demanda. Eu diria que estamos indo mais longe do que a Justiça do Trabalho, porque tentamos conciliar antes de ajuizada a ação. Um exemplo é processos do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), o chamado crédito estudantil federal. A Caixa Econômica Federal, que opera a linha de financiamento, encaminha ao tribunal a lista dos devedores e declara que aceita negociar. Tem muito estudante que não está conseguindo pagar, nem tem interesse em calotear ninguém. A ideia é renegociar a dívida. Nós chamamos essas pessoas e fazemos a aproximação. Se a negociação sai, todo mundo fica feliz, e não existe processo judicial. Nas desapropriações, a sistemática foi a mesma: evitou inúmeras e dispendiosas ações judiciais.
ConJur — Em quais processos?
Paulo Afonso Brum Vaz — Nos casos de indenização dos moradores em imóveis situados na rodovia BR-101, que está sendo duplicada no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. Fizemos audiências prévias, e o Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (DNIT) apresentou as propostas. No trecho do RS, 90% dos proprietários aceitaram a indenização oferecida. Foram inúmeras ações evitadas.
ConJur— Até onde vai o limite da conciliação? Há risco de ocorrer a redução de direitos?
Paulo Afonso Brum Vaz — Este risco existe, máxime nas conciliações sobre direitos da seguridade social, que envolvem o INSS e o segurado. Eu tenho dito que, nestes casos, não é ético, nem moral, que se ofereça uma proposta que passe pela redução dos direitos, porque são créditos de natureza alimentar. O INSS só apresenta proposta conciliatória quando o direito é inequívoco, líquido e certo. Então, não tem nenhum fundamento obrigar a pessoa a aceitar uma proposta com redução do valor que lhe é devido por lei. Eu chamo isso de calote sob os olhos do Poder Judiciário, de calote oficial. Eu brigo muito pela elevação dos patamares quantitativos dos acordos. No início, nós tínhamos propostas de até 50%, depois passou para 60, 70%. Agora, nós estamos entre 80 e 90%. Mas estamos nos aproximando dos 100%. E só vamos nos dar por satisfeitos quando conseguirmos atingir os 100%, que é o valor efetivamente devido ao segurado, que não tem que abrir mão de nada. É preciso superar estas práticas. O INSS nega o direito na via administrativa, obriga a judicialização da questão e, depois, quer que o segurado concilie, abrindo mão de parte de seus direitos. E se o segurado não o fizer terá de esperar quatro ou cinco anos para obter uma solução definitiva. Às vezes, o Poder Judiciário faz esse papel. O juiz ainda ameaça, pressiona: “Olha, se você não aceitar 80%, isso vai levar uns quatro anos, e eu nem sei se vou reconhecer esse direito”. Essa é uma péssima técnica de condução de uma conciliação, que não podemos aplaudir. A capacidade de o estado aguardar um processo sem prejuízo é muito maior do que a da parte hipossuficiente, principalmente nos casos de direitos previdenciários. A pessoa que está sem o benefício, com problemas de saúde ou em situação de miserabilidade, aceita qualquer acordo, mesmo quando aviltante.
ConJur — É pratica comum ou exceção?
Paulo Afonso Brum Vaz — São exceções, mas existem. Em regra, nossos juízes são bem treinados. Nós investimos pesadamente na capacitação dos juízes e servidores há uns cincos anos, e hoje, nossos juízes são formadores, professores e ministram cursos. Basta lembrar que ganhamos, pela segunda vez, o Prêmio Conciliar.
ConJur — O objetivo, então, é atacar as demandas de massa, que mexem com o social, deixando o trabalho de produzir sentenças e acórdãos para os casos realmente complexos?
Paulo Afonso Brum Vaz - Está correto o raciocínio. Tanto o Poder Judiciário estadual como o federal têm se preocupado muito com as demandas de massa. O sistema de Juizados Federais não pode processar essas demandas coletivamente. Para nós, embora tenha uma grande importância social, é um problema. Nós achamos que este tipo de processo deve ser resolvido na via consensual, porque toma tempo e impede de darmos mais atenção aos processos complexos e que não são passíveis de conciliação. Nas demandas de massa, é importante a conciliação, porque, geralmente, os valores envolvidos são mais baixos. É aquela questão de se verificar o custo-benefício da demanda para as duas partes, principalmente para os grandes litigantes. O que se paga de juros de mora nos precatórios é uma fábula. Nós chegamos a mais de 50% do valor principal, onerando os cofres públicos. Têm demandas, por outro lado, que não valem a pena. Às vezes, ganhando, o INSS acaba perdendo, porque gasta com a movimentação da sua procuradoria e máquina administrativa.
ConJur — A conciliação que o Ministério Público faz na origem, com os Termos de Ajustamento de Conduta (TACs), ajuda a desafogar o Judiciário?
Paulo Afonso Brum Vaz — Doutrinariamente, tenho alguma reserva em considerar TAC como conciliação. Trata-se de uma questão técnica. Por exemplo, o direito ao meio ambiente é indisponível. O que pode haver, através do TAC, é um compromisso de não continuar degradando. Mas ninguém, nem o MP, qualquer órgão ambiental ou o Poder Judiciário, pode transigir em relação ao que já foi degradado. Não se pode perdoar a degradação. Eu tenho reclamado muito da falta de eficiência da instância administrativa ambiental, por exemplo. Os órgãos ambientais não funcionam para licenciamento ambiental, para fiscalização. O TAC não tem a natureza, sob o ponto de vista jurídico, de um acordo. Mas tudo o que é feito para redução de demanda é sempre bem-vindo. E o MP tem colaborado muito com suas Ações Civis Públicas. Tivemos uma, recentemente, que dizia respeito ao agendamento das perícias médicas do INSS, que era muito demorado. A pessoa tinha que esperar meses para ser atendida e periciada. Às vezes, morria no meio do caminho. Nós chamamos as partes, conversamos, e conseguimos estabelecer um calendário novo de agendamento, abreviando o tempo para as perícias.
ConJur — Na prática, então, o Judiciário está virando local multiportas.
Paulo Afonso Brum Vaz — A ideia do tribunal multiportas corresponde a um local onde se entra para resolver qualquer tipo problema jurídico. O cidadão é orientado na sua ação: se segue via administrativa ou judicializa, se pode ou não conciliar, com assistência jurídica ampla. Ele não sai sem resposta. Se tiver que judicializar, será, por exemplo, encaminhado para a Defensoria Pública. Esse é um sonho que acalentamos, mas que sabemos ainda está muito distante.
ConJur — Mas Florianópolis, por exemplo, não tem Defensoria pública estadual, só federal.
Paulo Afonso Brum Vaz — Eu considero este fato muito negativo no movimento de ampliação do acesso à Justiça. O Poder Judiciário tem se preocupado com isso. Os advogados catarinenses, que são contrários à criação da Defensoria Pública, que me desculpem, mas penso que o serviço seria melhor oferecido se tivéssemos um órgão especificamente criado para tal fim. E isso certamente não prejudicaria o mercado de trabalho dos advogados.
ConJur — Em geral, os advogados são afeitos à conciliação?
Paulo Afonso Brum Vaz — O advogado, geralmente, acha que a conciliação sai do seu bolso. E não sai. O advogado deveria aproveitar essa oportunidade que é oferecida de antecipação dos seus honorários no tempo, porque nenhuma conciliação deixa de fora os honorários advocatícios, depois de prestada a assessoria. Se alguém vem intimando diretamente o cliente, deixando de lado o advogado, depois que já foi assistido, está cometendo um erro. E o advogado é, sobretudo, um parceiro essencial. Se o Poder Judiciário pretende dar efetividade para a política nacional de conciliações, não pode abrir mão da participação do advogado. E ele se beneficia com a conciliação, porque recebe antes, presta um serviço adequado para o cliente, faz com que este fique satisfeito mais rapidamente. Ele não pode apostar na demora da Justiça para estender a base de cálculo de seus honorários. Isso é colocar o interesse do advogado acima do do cliente. O advogado assume o compromisso de defender os direitos e não de protelá-los. E é isso que eventualmente ocorre. O advogado também precisa compreender que é necessário se capacitar, se quiser assessorar bem o seu cliente. É preciso frisar que ninguém deve se atrever a sentar numa mesa de negociação para conciliar sem estar assistido de um advogado. Por isso, o advogado não perde trabalho. Todos têm que estar capacitados: tribunal, litigantes (como INSS, Fazenda) e advogados. O sistema não vai funcionar se o INSS encaminha um preposto que não está preparado para discutir, transigir, acordar. Acredito que há uma ampliação do rol de atividades do advogado com a conciliação. Por isso, tem que estar preparado, para que possa fazer uma negociação justa, e o cliente consiga o máximo possível da negociação. Afinal, do outro lado, há um gigante, um procurador concursado, qualificado, uma estrutura administrativa, com sistema informatizado, que sabem extrair todas as vantagens do litígio. O papel do advogado é avultado e essencial ao sucesso da política conciliatória. A melhora no patamar qualitativo —valores mais próximos do efetivamente devido — das propostas apresentadas pelo Poder Público é fundamental para que os advogados se sintam atraídos para as práticas acordistas.
ConJur — O Judiciário da 4ª Região tem procurado a OAB para mostrar a importância da conciliação?
Paulo Afonso Brum Vaz — Tem. Reconheço que demoramos um pouco para perceber que, sem o advogado do nosso lado, as políticas conciliatórias não iriam decolar. Então, comecei a discutir isso nos fóruns interinstitucionais previdenciários, palestras, encontros e reuniões. E, hoje, nós conversamos com os advogados. Eu tenho orientado todos os meus coordenadores, os juízes em geral, que é necessário trazer o advogado para o nosso lado. Temos que revelar aos advogados as vantagens da conciliação. Tenho bom relacionamento com o presidente Cláudio Lamachia [presidente da OAB-RS]. Sempre que tenho oportunidade, vou até ele para falar sobre conciliação. Na área da previdência, fui a Brasília falar no congresso nacional do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBPD). Mas é preciso trabalhar mais. Há ainda um hiato enorme a ser suprido.
ConJur — Pode-se dizer que muita demanda contra o INSS, por exemplo, nasce do simples desconhecimento do beneficiário, que não sabe como as coisas funcionam e que não tem noção dos seus direitos?
Paulo Afonso Brum Vaz — A questão do acesso à Justiça, o professor Mauro Cappelletti falava nisso, passa primeiro pelo esclarecimento sobre a existência e a titularidade dos direitos. Primeiro, eu preciso ensinar as pessoas que elas são titulares de direitos. Depois, dizer quais são os direitos. E, então, mostrar quais as vias de acesso ao Poder Judiciário para fazer valer esses direitos. Se as pessoas não os conhecem por ignorância, hipossuficiência cultural, econômica, social, cognitiva, é óbvio que também não têm discernimento para pleiteá-los em juízo. Trabalhamos muito nos Juizados com cartilhas de esclarecimento simples e acessíveis a todos, que têm noções básicas de Direito Previdenciário, justamente para esclarecer os bolsões de miséria. Mas não adianta fazer isso em aeroporto, onde não tem pobre. Alguém se lembrou de colocar um Juizado Avançado na vila Cruzeiro [bairro pobre de Porto Alegre], para mostrar para aquele povo sofrido que ele tem direitos e que pode reivindicá-los no JEF? Com a criação dos Juizados Especiais Federais, em 2001, houve uma corrida para o Poder Judiciário. Havia uma enorme demanda reprimida, milhares de ações foram ajuizadas, e os JEFs estouraram. Surgiu, naturalmente, o problema das ações totalmente infundadas, que acabaram transformando o Poder Judiciário num balcão para discutir benefício previdenciário. O segurado era simplesmente rechaçado do balcão de benefícios do INSS e vinha para a Justiça. Hoje, isso não ocorre mais, porque a Instrução Normativa 45 diz que ninguém pode sair do balcão da Previdência sem um atendimento adequado, mesmo que seja a resposta negativa. Se a pessoa não tem direito, o servidor tem de lhe informar o que falta, por que falta e como proceder para solucionar o problema. Ainda hoje muitas pessoas fazem dos JEFs o balcão previdenciário, utilizando a faculdade de deduzir o seu pedido por atermação — comparece sem advogado e reduz a termo a sua reclamação. Quando se dispensou a presença do advogado, se correu um sério risco. Eu acho que não é conveniente. De fato, muita gente que desconhecia seus direitos, tendo ouvido falar que os Juizados resolvem todos os problemas previdenciários, começou a frequentá-los, muitas vezes na busca de direitos inexistentes. A consequência é que não tivemos condições de julgar todos os processos. Houve uma superdemanda. Esse fenômeno justifica em parte o chamado “endurecimento” da jurisdição dos Juizados, que, num dado momento, passou a julgar mais improcedente do que procedente.
Por Jomar Martins
Fonte: ConJur