Doutrina
É desnecessário ressaltar a profundidade da modificação na estrutura da Justiça do Trabalho promovida pelo Congresso Nacional no exercício de seu Poder Constituinte derivado, ao aprovar em dezembro de 1999 a Emenda Constitucional nº 24 que extinguiu sua representação classista (que, desde sua origem, foi uma de suas mais polêmicas notas características). O momento de discutir a conveniência da medida já se encontra, hoje, superado: cumpre, agora, analisar as conseqüências conceituais e práticas dessa alteração radical na composição e na forma de atuação do ramo do Poder Judiciário que, a cada ano, concentra o maior número de dissídios em nosso país.
Apesar de a extinção dos Juízes Classistas representantes dos empregados e dos empregadores acarretar conseqüências múltiplas e igualmente importantes, aqui serão abordados somente seus efeitos sobre a conciliação das partes já em Juízo, um dos mais importantes aspectos da atividade jurisdicional da Justiça do Trabalho e que, de certo modo, sempre foi uma das peculiaridades que a diferenciavam da Justiça Comum (fazendo, por outro lado, que esta Justiça Especial fosse encarada, por alguns, de uma forma injustificadamente preconceituosa).
Embora muito se espere dos mecanismos extrajudiciais de conciliação constituídos pelas Comissões Prévias de Conciliação, cuja instituição foi recentemente prevista e disciplinada pela Lei nº 9.958, de 12.01.2000 (a qual, dentre outras providências, acrescentou os artigos 625-A a 625-H à Consolidação das Leis do Trabalho que regulam sua atuação), é preciso reconhecer que sua implantação, por mais bem sucedida que seja, não eliminará boa parte dos dissídios trabalhistas, os quais continuarão a exigir o exercício da função jurisdicional do Estado. Nessa perspectiva, continuarão a ser de grande relevância as reiteradas tentativas de conciliação que o Juiz do Trabalho, passando a atuar agora de forma monocrática, ainda tem o dever legal de encaminhar ao longo do processo, por força dos artigos 846, “caput” e seu § 1º, 847 e 850 da Consolidação das Leis do Trabalho.
São óbvias as modificações imediatas na dinâmica das audiências trabalhistas com o fim dos Classistas e das Juntas de Conciliação e Julgamento: desaparece a função dos primeiros de, na prática, tomar a iniciativa nas tratativas conciliatórias e de servir de uma espécie de intermediários entre o Juiz, de um lado, e as partes e seus procuradores, de outro (eliminando a possibilidade de uma atuação mais inerte e passiva do primeiro, que poderia ocorrer no modelo antes existente); o reclamante e o reclamado desacompanhados de advogado deixam de contar com a possível e freqüente assistência do respectivo Juiz classista representante das categorias profissionais ou econômicas, para esclarecer pontos de fato e de direito e orientá-los acerca da dinâmica das audiências e do próprio processo, bem como para convencê-los da eventual conveniência da celebração de acordos; desaparece a possibilidade do cálculo prévio dos valores objeto das parcelas pleiteadas de forma ilíqüida nas peças iniciais, que alguns Juízes Classistas mais operosos e preparados faziam antes das audiências; também deixará de existir o diálogo menos formal (e, por vezes, bastante persuasivo) que alguns Juízes Classistas estabeleciam com as partes em geral e, em especial, com aquelas por ele representadas. A mais visível conseqüência do fim da representação classista é que, agora, o contato entre o julgador e as partes interessadas será direto e imediato: de um lado, o desgaste pessoal do primeiro será maior; em contrapartida, a influência e a correspectiva responsabilidade do juiz de carreira necessariamente serão aumentadas. Tais mudanças na dinâmica da Justiça do Trabalho evidentemente não trarão maiores dificuldades, cabendo a cada Juiz do Trabalho, em seu dia-a-dia, estabelecer nova sistemática de trabalho, à qual com certeza em breve todos os demais partícipes dos processos trabalhistas se adaptarão.
É claro, porém, que, por trás dessas alterações aparentemente banais, há aspectos mais profundos a salientar. Cumpre, desde logo, apontar uma conseqüência fundamental: o reforço substancial do papel desempenhado pelo Juiz do Trabalho que, passando a ter competência monocrática para apreciar, conciliar e julgar em primeira instância todos os dissídios individuais a ele distribuídos, teve sua responsabilidade institucional aumentada de orma correspondente. Para que ele possa desempenhar de forma adequada seu mister nessas novas condições, é preciso que se compreenda adequadamente o que a sociedade e a própria Constituição da República (fontes, em última análise, do poder jurisdicional no qual foi investido) dele esperam. É esse, portanto, o primeiro ponto a examinar.
Ao mesmo tempo, há riscos que devem ser considerados: como evitar que o desaparecimento dos juízes leigos torne a Justiça do Trabalho - a partir de agora composta exclusivamente de juízes profissionais, concursados e de formação jurídica universitária - um órgão burocrático, elitista e distanciado das necessidades de seus jurisdicionados? Será que a nova Justiça do Trabalho, negando tanto suas origens quanto os princípios peculiares que determin aram sua instituição e indevidamente influenciada por concepções privatísticas do processo civil hoje já ultrapassadas até mesmo em sua disciplina de origem, passará a adotar uma atitude preconceituosa em relação à conciliação judicial, como se esta fosse uma faceta menor da função jurisdicional e, como tal, merecedora de menos prioridade? Para responder a essas e a outras relevantes indagações, é preciso relembrar o significado e a função da conciliação no quadro maior da ordem jurídica como um todo e, mais especificamente, no âmbito do funcionamento do sistema processual de solução dos conflitos intersubjetivos de interesses. A seguir, será útil verificar também qual o significado que hoje os ordenamentos jurídicos dos países mais avançados atribuem à conciliação, para extrair de suas experiências aquilo que possa ser útil para a solução de nossos próprios problemas.
Por José Roberto Freire Pimenta
Fonte: CNJ
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