segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Entrevista: Morgana Richa

Morgana Richa é juíza do trabalho do estado do Paraná. Em sua passagem pelo Conselho Nacional de Justiça, atuou focada na ampliação de projetos voltados à defesa da cidadania e pacificação de conflitos. Foi a coordenadora do movimento nacional pela conciliação e pela implantação nos tribunais da Resolução 125, que delibera a criação de centros e núcleos em todo o país. Despediu-se do CNJ em julho e faz, para a revista Resultado, uma avaliação do órgão e dos seus dois anos de mandato.

Resultado: O CNJ foi criado com a missão de contribuir para que a prestação jurisdicional seja realizada com moralidade, eficiência, efetividade em benefício da sociedade. Qual o papel do CNJ?
Morgana Richa: Na minha avaliação, tem que se compreender o papel do CNJ naquilo que foi a concepção constitucional que determinou a criação desse órgão e as suas atribuições. Quando houve a tramitação da Reforma do Judiciário e a definição de que haveria um órgão de controle do Poder Judiciário, composto de representantes da sociedade, da OAB, Ministério Público, do próprio Judiciário, se definiu ali qual seria seu papel. E o primeiro foco foi dar, ao Judiciário, uma percepção de sistema de justiça nacional, de justiça padronizada. Onde entra o aspecto das políticas públicas, que é fundamental na atuação do Conselho e é a base daquilo que nós estamos desenvolvendo? Na percepção de que as atuações necessitam de uma coordenação, de um planejamento estratégico. A política pública entra como forma de fazer com que o próprio funcionamento das estruturas ganhe essa amálgama nacional e essa dinâmica de resultado de todo o trabalho realizado. Há um terceiro aspecto, o controle administrativo, financeiro e disciplinar em relação a essa atuação dos tribunais, não adentrando a esfera jurisdicional. Essa é a estrutura do Conselho.

Como a senhora avalia a trajetória do órgão até aqui?
R. O Conselho é um órgão criado a partir da Emenda Constitucional 45/2004 e ele entra em funcionamento em 2005. Ou seja, ele tem praticamente seis anos de atuação. É um período ainda bastante pequeno para que se possa dizer que o Conselho tem um resultado finalístico naquilo que está desenvolvendo. Ele está construindo esse processo de transformação para o sistema da justiça. E isso é um crescente, mas a dinâmica está, hoje, eu diria, bem encaminhada, com algumas políticas públicas já maturadas e chegando ao momento de consolidação e de resultados já bastante avançados no âmbito do sistema de justiça nacional. A conciliação me parece ser o projeto que em termos de política pública tem a sua maior maturação hoje dentro do Conselho.

A senhora é presidente da Comissão Permanente de Acesso à Justiça e Cidadania do CNJ. Como funciona a comissão? Quais resultados a comissão já alcançou?
R. O Conselho tem cinco comissões, dentre as quais são divididas as atribuições dos conselheiros. A Comissão de Acesso à Justiça e Cidadania é a que trata das questões que envolvem os direitos fundamentais do cidadão. A meu ver, ocupa um espaço fundamental, nevrálgico, dentro da estruturação do Poder Judiciário. Nela está assentada toda base de vulnerabilidades, nós temos quatro grandes vertentes dessa atuação. A mulher, as questões que dizem respeito à efetividade da Lei Maria da Penha no combate à violência doméstica. Uma outra linha de atuação é referente à criança e adolescente, na busca da proteção integral da criança no resguardo de direitos. A terceira linha é a questão da proteção do idoso, considerada também importante, e a quarta dos portadores de deficiência que também encontram, na comissão, um trabalho bem pontual, no sentido do atendimento dentro do âmbito do Poder Judiciário.

O objetivo é a emancipação do exercício da cidadania, é o acesso. Um outro projeto importantíssimo está Rio de Janeiro. Nós temos um trabalho em determinados espaços - Complexo do Alemão, Cidade de Deus - que até então eram ocupados pela criminalidade. Estamos estruturando, em conjunto com órgãos de Estado e os três tribunais (Tribunal de Justiça, Tribunal Regional do Trabalho e Tribunal Regional Federal) para a prestação de serviços pelo Judiciário dentro destas localidades, especialmente através da conciliação. A conciliação e a mediação ocupam um espaço importante ali, na medida em que quanto mais se abre esse espaço, mais se tem um exercício de cidadania, apresentação dos direitos – a sociedade adentra o Poder Judiciário como sujeito ativo no exercício dos direitos. E aí você tem a inversão do um ciclo da violência para um ciclo de inserção social e de cidadania.

Em novembro de 2010, o CNJ publicou a resolução 125. Como foi o processo de criação da resolução?
R. Para compreender a Resolução 125, é preciso voltar um pouquinho mais atrás. A conciliação nasceu, para o CNJ, em dezembro de 2006. A então presidente do conselho, Ministra Ellen Gracie, estabeleceu a demanda por um trabalho na esfera da conciliação. Surge o Movimento pela Conciliação com o slogan: “Conciliar é Legal”. Ou seja: conciliar é uma atração prevista na lei e o Judiciário vai exercê-la. Foi cada vez mais ganhando aderência dos tribunais. Como parte pacificação social, da resolução dos conflitos por meios que não os tradicionais, uma solução assimilada pelo aspecto como sendo o melhor encaminhamento para não apenas o processo, mas dando fim ao litígio.

Com um outro resultado, que é fantástico, que está na efetividade e na celeridade – porque a conciliação dá um resultado concreto, dá um resultado efetivo na medida em que ela vai ser cumprida. E põe fim, de fato, àquela espera, àquela angústia, todo aspecto que torna uma demanda na justiça, às vezes, muito difícil para ter parte no contencioso. Isso veio ganhando envergadura e, a meu ver, nesses cinco anos ela foi concebida, ela criou asas e ela consolidou. Onde ela se consolidou? Na Resolução Nº 125. Qual foi a nossa avaliação, a percepção dentro da Comissão de Acesso? De que era necessário amalgamar dentro de uma estrutura consolidada que desse as diretrizes, o formato, a padronização, a definição do que é isso em termos de funcionamento do sistema. E, aí, é concebida a Resolução Nº 125.

Tanto que ela é concebida em aspectos que são muito claros a respeito do que é em uma parte filosófica, em uma parte de exposição de motivos, onde diz exatamente a questão da pacificação, efetividade, da celeridade e uma percepção de que o acesso à justiça tem a visão não apenas da entrada do processo na justiça, mas também com a saída. Ou seja, a preocupação com a entrega da atividade jurisdicional, percebendo a ordem jurídica justa como aquela que dê a resposta em tempo adequado. E a conciliação é fundamental para a contribuição desse resultado. Ela tem uma radiografia, uma definição que tem essa clareza que é de suma importância, para que se possa até mesmo prosseguir nesse alinhamento como sistema, nessa padronização das estruturas. Assim começou a construção da própria Resolução. Levou oito meses.

Oito meses?
R. Oito meses. E por que foi necessário esse tempo? Porque o sistema de justiça é visto hoje como uma necessidade e um resultado importante para se atingir. Mas nós temos que trabalhar com diferentes estruturas, com diferentes modelos do próprio funcionamento da justiça e com a equalização do todo. Não se tem como buscar, hoje, uma roupagem única para todo o sistema que presta diferentes serviços, e que, portanto, necessita de uma permeabilidade para que possa funcionar com suas diferentes vertentes.

Eu não tenho como estabelecer uma forma única para todo mundo, tem que ter um modelo que comporte essas diferentes ações. Então, esse período foi a construção, a verificação, o ajuste, a própria compreensão de cada um para chegar nesse resultado finalístico que foi a própria Resolução Nº 125. Então, ao contrário que se possa pensar, não é um processo primário. Foi preciso muita discussão, foi preciso muita aresta ali solucionada para que se pudesse chegar ao resultado. E não é, ao contrário do que se possa imaginar, um processo que a gente veja como encerrado. A gente vê como uma construção extremamente importante, mas que vai contar, no devido tempo, com nivelamentos maiores e possibilidades de alcances ainda maiores.

A resolução fala sobre a criação de Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos e dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania. Qual a diferença entre eles? Como está a implantação desses núcleos e centros nos tribunais brasileiros?
R. O que é o Núcleo de Conciliação? É a inteligência da conciliação. A conciliação e mediação passam a ser programadas pelos tribunais, por cada unidade, a partir do funcionamento, das demandas, dos contingentes, das especificidades que há dentro daquela prestação jurisdicional. O núcleo vai tratar do quê? Da política pública da conciliação no âmbito estadual. Vai levar inteligência ao funcionamento da politica no âmbito desse tribunal. E vai, também, programar outras duas estruturas que estão ali interligadas e paralelas: a capacitação dos operadores, que também é de suma importância para um funcionamento.

Temos que ter que trabalhar não com qualquer conciliação, mas com a qualificação desses processos e a qualificação dos resultados nos preocupam. Então nós precisamos profissionalizar as nossas estruturas e preparar, capacitar os agentes que atuam. E a questão da estatística, que é o controle para efeito de verificação da efetividade do funcionamento da conciliação através de uma base de dados que permita o acompanhamento, a verificação e a própria evolução daquilo que se programe em termos de futuro para a conciliação.

Saindo dos Núcleos, nós chegamos aos Centros de Conciliação. Os centros agregam uma outra vertente: o funcionamento da conciliação e da mediação dentro dos tribunais. Quando trabalhamos com colaboradores, nós temos a preocupação que isso funcione dentro desses centros e que ali haja uma dinâmica organizada, capacitada e programada para o seu melhor funcionamento. E outros aspectos ali também estão previstos. Mas é um processo de construção muito pensado, desde a constituição até o resultado e o acompanhamento para efeito de programação futura.

A percepção que nós temos hoje, e é muito gratificante, é de que a conciliação chegou aos tribunais. Chegou como uma compreensão de movimento, de estrutura e de política pública do próprio Tribunal. Com uma compreensão muito grande, com uma simpatia muito grande por parte da sua implantação. Há estados em um estágio mais avançado, outros estão mais incipientes, mas o fato é que todos estão alinhados na compreensão de que isto é algo que eles estão programando e que irão fazê-lo nos termos previstos. Têm buscado esse auxilio do Conselho e temos auxiliado a tornar o resultado concreto. O problema maior está na própria estruturação a partir das dificuldades encontradas pelos tribunais na quantidade de servidores e de magistrados e de condições financeiras para que a estrutura possa ter esse resultado todo.

A Resolução prevê parcerias com entes privados.Em que a sociedade civil organizada pode ajudar o Judiciário nessa implantação?
R. Quando se fala que o Judiciário é moroso, que tem dificuldades na entrega da apreciação jurisdicional, é uma verdade. Mas uma outra verdade é o contingente de demandas que existem em tramitação. Temos oitenta e seis milhões e meio de demandas tramitando. Isso significa quase um processo por habitante no Brasil, pois há pelo menos duas partes em cada. Isso demonstra a impossibilidade de resultado, de um funcionamento adequado dessa estrutura, que com esse contingente de demandas não consegue superar gargalos para traduzir essa celeridade, essa efetividade e eficiência da prestação jurisdicional. Bom, aí, se tem um cenário que tem que ser administrado e que tem que operar. É preciso que o Judiciário conheça quais são esses gargalos. Pesquisamos e estão na prestação de serviços, tanto da União, estados e municípios, quanto de telefonia, plano de saúde, questões elétricas, entre outras. É preciso chamar esses segmentos e ver as responsabilizações para que se possa equacionar o problema e que se possa não apenas solucionar a demanda, mas evitar a demanda. Então a importância das parcerias está nesse sentido, tanto
que foi feito um seminário em São Paulo, há poucos meses, dos maiores litigantes e todos foram chamados ali, esses que no ranking nacional ocupam os espaços de maior escala, para debater as demandas. É preciso
debater as demandas.

A semana de conciliação foi criada em 2006, de lá pra cá, houve um aumento de 7,5% do comparecimento das partes. Como o CNJ tem combatido o índice de abstenção nas sessões de conciliação?
R. Em primeiro lugar, na visibilidade da conciliação como forma de solução do conflito. A sociedade hoje tem tido uma compreensão cada vez maior da pacificação social para essa via. Então quando as pessoas percebem a importância disso e esse movimento chega, sai da instituição e chega à sociedade, você tem naturalmente um maior interesse das partes em buscar a conciliação e a mediação para solucionar o problema. E também porque se percebe o resultado do funcionamento. Isso começa a ganhar
espaço perante a sociedade. Isso é um aspecto fundamental.

O outro é que nós estamos buscando também, claro, nos tornar cada vez mais eficientes nas intimações. Buscando a intimação não apenas dos advogados, mas a intimação da própria parte. Ela recebe na casa dela uma cartinha convidando a participar e resolver a questão da pacificação. Nós tivemos uma percepção entre as audiências designadas e as audiências realizadas, os nossos patamares de perda giram em torno de 20%, alguma coisa por aí. E temos um comparecimento entre, vamos dizer, entre 75 e 80% daquelas designadas. Também outro aspecto é o seguinte: as audiências designadas para conciliação são escolhidas dentro daqueles processos que têm maior potencial e aptidão para essa solução. Isso também é um aspecto importante, porque não adianta pegar uma pauta e designar para conciliação, quando eu tenho processos ali que não têm a mínima possibilidade de serem resolvidos por essa via.

Qual foi o resultado do seminário do CNJ sobre conciliação e mediação? E a senhora termimou o mandato como conselheira no CNJ, como foi essa xperiência?
R. Eu diria que o seminário foi um coroamento do trabalho da conciliação ao longo desses quase cinco anos de existência. Consolida a existência de uma política pública. Ele traz a publicação de uma obra com todo o histórico, o desenvolvimento e a definição do funcionamento, desde a capacitação, a informática, os conceitos, toda a descrição do formato existente de uma política pública nacional com as suas diferentes vertentes. E o aspecto que as pessoas que estavam ali são aquelas que, de fato, constituem a nossa base de funcionamento da conciliação e mediação. Desde os tribunais até alguns segmentos que nós trabalhamos em conjunto, por exemplo, o Sebrae. O sentimento foi que o trabalho encontra uma crença muito grande, um profissionalismo muito grande e uma satisfação de ver que isso, de fato, deslanchou. A conciliação aconteceu. Foi um dia de trabalho completo.

O Conselho tem que ser compreendido por quem recebe e por quem sai como algo que está em crescimento, algo que se recebe e que se vai entregar na busca de que ele vai ser aprimorado. Eu acho que nós conseguimos, ao longo desses dois anos, dar uma panorâmica de enraizamento, de consolidação, de profundidade e dessa capilarização nacional da conciliação. Então, para nós, a maior felicidade é que a conciliação realmente ela ganhou esse peso. E ganhou esse peso não apenas para o Conselho, mas para as instituições, para a sociedade.

O que a gente espera, qual é a previsão?
R. É que essa profissionalização, essa estruturação, que ela efetivamente atinja a sua eficácia em termos finalísticos nos tribunais. A gente sabe que há muito para construir. É um desafio, é o que nós temos pela frente. E a gente espera que cada vez mais esses patamares de evolução sejam atingidos, que a sociedade atinja melhores níveis de maturação e de funcionamento juntamente com as estruturas do Estado, que a gente possa apresentar esse país mais equilibrado, mais justo, um país mais cidadão, com menos problemas, com menos diferenças. É uma grande engrenagem que tem que ter todo um funcionamento específico em toda a sua ocorrência, ao longo de todo o seu desenvolvimento.

Fonte: Revista Resultado

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