Em defesa dos principios
A Justiça pode interferir no julgamento arbitral se considerar que houve violação ao contraditório. Foi o que entendeu o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro ao manter sentença que anulou uma arbitragem e ordenou novo julgamento por considerar que um pedido de perícia foi indeferido erroneamente pelos árbitros. O entendimento promete gerar polêmica, uma vez que a jurisprudência brasileira tem se firmado em favor da soberania das decisões arbitrais quanto ao mérito das questões. Em geral, a Justiça só intervem quando há dúvidas em relação às cláusulas arbitrais dos contratos ou na execução dessas decisões.
Para os desembargadores da 6ª Câmara Cível da corte, a obrigação de que a arbitragem obedeça ao princípio do contraditório sujeita a sentença arbitral à análise do Judiciário caso o julgamento não atenda à regra. O fundamento vem do parágrafo 2º do artigo 21 da Lei 9.307/1996, a Lei da Arbitragem. Em setembro, a corte julgou um caso trazido pela empresa Liebherr Brasil Guindastes e Máquinas Operatrizes, que protestou contra arbitragem julgada a favor da Chaval Navegação Ltda, a respeito da instalação de guindastes em um navio. Segundo a Liebherr, a demanda entre as duas exigia uma perícia contábil, negada pelos árbitros, que afirmaram ser a perícia de engenharia suficiente para resolver a questão.
O caso foi aos árbitros depois que se constatou que guindastes da Liebherr, instalados em navio da Chaval, não funcionavam. O problema impediu que a Chaval usasse sua embarcação. Segundo a empresa naval, não houve prestação de assistência técnica.
A cláusula arbitral foi acionada para se apurar a responsabilidade da produtora pelos defeitos. O objetivo era verificar eventual vício no projeto e na confecção dos guindastes, mas também a correta operação dos equipamentos pela Chaval; o atendimento de assistência técnica; e os limites da garantia dos aparelhos; além da possível indenização a ser paga.
Alcance da perícia
Com base em laudo de um engenheiro naval, que identificou que os guindastes tinham defeitos antes mesmo de sua instalação no navio, o tribunal arbitral, por dois votos a um, condenou a Liebherr a pagar US$ 1,3 milhão à Chaval, quase todo o valor referente a lucros cessantes, por descumprimento de contrato. Segundo o perito, o prejuízo foi maior: US$ 6 milhões.
Com base em laudo de um engenheiro naval, que identificou que os guindastes tinham defeitos antes mesmo de sua instalação no navio, o tribunal arbitral, por dois votos a um, condenou a Liebherr a pagar US$ 1,3 milhão à Chaval, quase todo o valor referente a lucros cessantes, por descumprimento de contrato. Segundo o perito, o prejuízo foi maior: US$ 6 milhões.
A Liebherr, por sua vez, pediu uma perícia contábil que comprovasse o prejuízo financeiro alegado pela contratante. A empresa lembrou que o próprio engenheiro naval que periciou o caso reconheceu que o objetivo do seu trabalho não era o cálculo. “Nós não fizemos perícia contábil, nem financeira, pelo fato de que não era isso parte do escopo dessa perícia”, afirmou em juízo, segundo os autos. “As partes tinham nomeado um engenheiro mecânico e um engenheiro naval. Tratava-se, obviamente, de uma perícia de engenharia.” Mesmo assim, os árbitros entenderam que uma perícia contábil era dispensável.
Não na opinião da desembargadora Regina Lúcia Passos, incumbida da relatoria do recurso levado pela Chaval contra decisão de primeiro grau em favor da Liebherr. “Com a simples análise do depoimento do perito, permite-se concluir que é indispensável a realização da prova pericial contábil, visto que somente esta é capaz de aferir eventuais prejuízos financeiros com a paralisação da embarcação da apelante, decorrente dos defeitos apresentados pelos guindastes”, afirmou em seu voto. “Os dados elencados para fundamentar tais valores foram obtidos por indicação unilateral da apelante, restando, por conseguinte, fragilizados.” O desembargador Nagib Slaibi, revisor do processo, acompanhou o voto.
O desembargador Pedro Raguenet divergiu. Para ele, a Liebherr deveria ter feito a ressalva quanto à expertise do perito durante o julgamento arbitral. “Suscitar esse questionamento em momento temporalmente diferenciado, e após a realização de todo um processo de instrução e de debates, só pode ser entendido como atuação em desconformidade com a legislação aplicável ao caso em tela”, afirmou em seu voto. “Fica a conduta da autora desta demanda, a Liebherr, reconhecida como pretensão da mesma em se furtar aos efeitos da condenação imposta pelo Juízo Arbitral.” Segundo ele, o princípio do contraditório foi respeitado, tendo em vista que o voto do árbitro presidente equilibrou a decisão ao rechaçar, “em maior parte, as conclusões do laudo pericial tanto quanto ao período de indisponibilidade dos equipamentos quanto reduzindo sensivelmente o valor da indenização fixado”.
Interferência do Judiciário
Para o advogado Leandro Rinaldi, do escritório L. S. Rinaldi de Carvalho Advogados, que defende a Chaval desde que o caso chegou ao tribunal, o acórdão abre precedente perigoso. “Acabei de assumir a causa, já em segunda instância, e fiquei surpreso com a decisão. Ela relativizou os princípios da soberania da decisão arbitral e do livre convencimento do árbitro, que constituem a essência da arbitragem”, avaliou. “De quebra, o tribunal ainda reabriu uma questão que já estava sepultada pelos tribunais superiores, trazendo insegurança jurídica para os processos arbitrais.”
Para o advogado Leandro Rinaldi, do escritório L. S. Rinaldi de Carvalho Advogados, que defende a Chaval desde que o caso chegou ao tribunal, o acórdão abre precedente perigoso. “Acabei de assumir a causa, já em segunda instância, e fiquei surpreso com a decisão. Ela relativizou os princípios da soberania da decisão arbitral e do livre convencimento do árbitro, que constituem a essência da arbitragem”, avaliou. “De quebra, o tribunal ainda reabriu uma questão que já estava sepultada pelos tribunais superiores, trazendo insegurança jurídica para os processos arbitrais.”
Os membros da 6ª Câmara não chegaram facilmente à conclusão. Eles divergiram sobre a intervenção da Justiça no mérito de uma decisão arbitral. Para Raguenet, “a sentença judicial adentrou o mérito da causa submetida à Justiça Arbitral, o que é vedado por lei”, afirmou. “Não haverá, desta maneira, que se falar como válida a fundamentação da sentença [judicial, de primeira instância] agora debatida, que em verdade, se pôs a reexaminar a perícia efetuada, que se processou consoante a vontade dos litigantes.”
Após o voto do vogal, o revisor, desembargador Nagib Slaibi, mudou seu voto, que inicialmente prestigiava a decisão arbitral. “Apesar da evidente relevância dada às decisões arbitrais, a Lei 9.307/96 prevê duas formas para sua impugnação no caso de serem nulas, quais sejam: os embargos de devedor à execução proposta pelo credor, e a ação de nulidade de sentença arbitral, situações fáticas que merecem ser vistas de forma abrangente, para não se vulnerar o direito fundamental de acesso à jurisdição”, afirmou.
Já Regina Passos, relatora, viu a questão pelo ponto de vista da inafastabilidade da jurisdição, prevista no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal. Mas ponderou: “Cabe ressalvar que não é possível a análise do mérito da sentença arbitral pelo Poder Judiciário, sendo, contudo, viável a apreciação de eventual nulidade no procedimento arbitral”. Logo depois, arrematou: “A sentença proferida pelo Juízo Arbitral não obedeceu ao Princípio Constitucional do Contraditório, pois condenou a apelada ao pagamento de quantia vultuosa, sem oportunizar a realização de prova pericial contábil indispensável para aferir eventual indenização, haja vista a evidente incapacidade técnica do perito nomeado, engenheiro naval, para tal mister, devendo, portanto, ser declarada a nulidade da sentença arbitral”.
Fio da navalha
Segundo o advogado Arnoldo Wald, membro da Corte Internacional de Arbitragem e presidente da Comissão de Arbitragem do Comitê Brasileiro da Câmara de Comércio Internacional, decisões da Justiça brasileira que anulam julgamentos arbitrais são raras. "Talvez menos de 2%", diz. A maioria cai devido à falta de citação de uma das partes ou de convenção de arbitragem.
Segundo o advogado Arnoldo Wald, membro da Corte Internacional de Arbitragem e presidente da Comissão de Arbitragem do Comitê Brasileiro da Câmara de Comércio Internacional, decisões da Justiça brasileira que anulam julgamentos arbitrais são raras. "Talvez menos de 2%", diz. A maioria cai devido à falta de citação de uma das partes ou de convenção de arbitragem.
Para ele, a Justiça pode, sim, avaliar se o contraditório foi respeitado no processo. "Em tese, a verificação do contraditório não implica entrar no mérito, mas sim é uma verificação do rito processual adotado e da garantia constitucional do direito de defesa", afirma.
Porém, em sua opinião, a negação de uma perícia pelo tribunal arbitral não fere o princípio do contraditório. "Ao juiz, como ao árbitro, é lícito examinar as provas que julga oportunas. Só há violação se a perícia for a única prova, e se apresentar como sendo evidentemente indispensável para julgar o caso."
Já para outra especialista, Selma Ferreira Lemes, também membro da Corte Internacional de Arbitragem da CCI e uma das autoras do anteprojeto da Lei de Arbitragem brasileira, os árbitros só poderiam negar uma perícia se fossem técnicos no assunto e pudessem quantificar os danos causados. Por isso, a decisão da Justiça não ultrapassou os limites legais, segundo ela.
"Para fazer a verificação se foi respeitado o princípio do contraditório, há necessidade de uma análise do Judiciário aos menos perfunctória do mérito. Assim também é feito no Superior Tribunal de Justiça, quando analisa o reconhecimento e execução de sentença arbitral estrangeira, o chamado juízo de delibação", diz.
Histórico de interferências
Caso célebre foi julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em 2010 com dilema semelhante, envolvendo o Metrô paulista e o Consórcio Via Amarela, responsável pela construção da Linha 4 do metrô. Os dois acionaram o tribunal arbitral da CCI para resolver questão sobre mudanças no método de construção e o respectivo reequilíbrio financeiro do contrato assinado.
Caso célebre foi julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em 2010 com dilema semelhante, envolvendo o Metrô paulista e o Consórcio Via Amarela, responsável pela construção da Linha 4 do metrô. Os dois acionaram o tribunal arbitral da CCI para resolver questão sobre mudanças no método de construção e o respectivo reequilíbrio financeiro do contrato assinado.
A corte arbitral julgou o caso favoravelmente ao consórcio, determinando a indenização por custos adicionais, mas o Metrô pedia perícia de engenharia para apuração precisa dos valores que seriam gastos com ambos os métodos, para comparação. A perícia foi negada.
O Metrô recorreu à Justiça para ter o direito de fazer prova. Em primeiro grau, conseguiu uma liminar, que perdeu seus efeitos depois de uma decisão de segunda instância, que manteve a arbitragem até que o caso fosse julgado no mérito — clique aqui para ler a decisão.
Outro embate parecido, também envolvendo revisão de contrato, foi o da empreiteira Racional Engenharia Ltda contra a imobiliária Rio do Brasil Projetos sobre a construção da Torre Almirante, edifício de 36 andares concluído em 2005, onde está instalada a sede da Petrobrás, no Rio de Janeiro.
A construtora levou à Justiça uma ação declaratória de nulidade de sentença arbitral proferida em 2006 pelo Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá. A empresa foi condenada na arbitragem a pagar R$ 9 milhões em multa e lucros cessantes, mas alegou na Justiça que lhe foi negada uma perícia contábil para avaliar o desequilíbrio do contrato.
Em primeiro grau, a ação foi negada. "Se os árbitros se convenceram da desnecessidade da produção da prova pericial contábil, ante a existência de outras provas capazes, por si sós, de formar o seu convencimento e resolver a lide, não há falar-se em cerceamento probatório ou de defesa. Já se decidiu que sendo o juiz — e aqui também o árbitro — o destinatário da prova, somente a ele cumpre aferir sobre a necessidade ou não de sua realização", afirmou o juiz Jorge Tosta, então na 2ª Vara Cível da capital paulista.
Na sentença, Tosta afirmou ainda que a vedação à interferência da Justiça nas decisões arbitrais não violam o princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição. "A arbitragem é um equivalente jurisdicional e, tendo as partes optado por ela, não pode haver retorno da questão ao Judiciário", cravou — clique aqui para ler a decisão.
Apelação Cível 0351390-45.2011.8.19.0001
Por Alessandro Monteiro Paiva
Fonte: ConJur
Fonte: ConJur
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