domingo, 3 de março de 2013

Variações sobre a justiça

Reflexão
A Justiça é o tema dos temas da Filosofia do Direito por conta da força de um sentimento que atravessa os tempos: a de que o Direito, como uma ordenação da convivência humana, esteja permeado e regulado pela justiça. A palavra direito, em português, vem de directum, do verbo latino dirigere, dirigir, apontando, dessa maneira, que o sentido de direção das normas jurídicas deve ser o de se alinhar ao que é justo. O acesso ao conhecimento do que é justo, no entanto, não é óbvio. Basta lembrar que os gregos, para lidar com as múltiplas vertentes da justiça, valiam-se, na sua mitologia, de mais de uma divindade: Têmis, a lei, Diké, a equidade, Eirene, a paz, Eunômia, as boas leis, Nêmesis, que pune os crimes e persegue a desmedida.
 
No mundo contemporâneo o Direito tem uma complexa função de gestão das sociedades, que torna ainda mais problemático o acesso ao conhecimento do que é justiça, por meio da razão, da intuição ou da revelação. Essa problematicidade não afasta a força das aspirações da justiça, que surge como um valor que emerge da tensão entre o ser das normas do Direito Positivo e de sua aplicação e o dever ser dos anseios do justo. Na dinâmica dessa tensão tem papel relevante o sentimento de justiça. Este é forte, mas indeterminado. Daí as dificuldades da passagem do sentir para o saber. Por esse motivo, a tarefa da Teoria da Justiça é um insistente e contínuo repensar o significado de justiça no conjunto de preferências, bens e interesses positivados pelo Direito.
 
Nestas variações sobre justiça vou inspirar-me no ensinamento de Bobbio, para quem o Direito se constitui como ordem pacificadora, aperfeiçoa-se como igualdade e completa-se com a liberdade. Paz, igualdade e liberdade, pondera ele, não são valores idênticos ou contrapostos. Têm esferas próprias, porém a realização da justiça, na sociedade, requer sua integração, num sempre desafiante compromisso teórico-prático.
 
Num Estado de Direito a exigência de que as leis sejam gerais e impessoais atende a outro requisito da ordem jurídica como paz: o de garantir, na convivência coletiva, a segurança da certeza do Direito, que afasta a indeterminação do agir discricionário.
 
Ir além da justiça como legalidade é uma exigência da Teoria da Justiça, porque qualquer ordenamento jurídico não é necessariamente justo. Requer o exame do conteúdo da lei. Nesse contexto, na lição de Aristóteles, é a igualdade que norteia a averiguação, cabendo, no entanto, lembrar que existem afinidades entre os conceitos de ordem e igualdade. A igualdade perante a lei é uma expressão dessa afinidade, porque se contrapõe à desordenada desproporção entre as partes e das partes em relação ao todo. O Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do mensalão, ao afirmar a igualdade perante a lei, está assegurando justiça ao não diferenciar a conduta dos poderosos da do cidadão comum.
 
A igualdade é um conceito complexo, porque existem vários critérios para aferir a igualdade. Esta não se confunde com o igualitarismo, que postula que todos devem ser iguais em tudo, rejeitando, dessa maneira, a diversidade da condição humana. Numa sociedade pluralista e democrática não cabe aplicar, para se realizar a justiça, um único critério de igualdade. Todos têm sua validade no âmbito de determinadas esferas.

A justiça, como liberdade, parte da asserção kantiana de que a pessoa humana não tem preço, mas a dignidade de ser um fim em si mesmo, não redutível à natureza ou ao todo sociopolítico. Existe a dimensão da liberdade como não impedimento, ou seja, como uma esfera de atividades do ser humano não controlada pelo Estado e pela sociedade, assim como a liberdade de participação nas deliberações coletivas, que está na raiz da democracia. São desdobramentos da liberdade, por exemplo, a liberdade religiosa, que postula a tolerância, a liberdade de associação, a liberdade de pensamento e de sua expressão não censurada, a liberdade de iniciativa. O Direito assegura a justiça como liberdade quando constrói as condições apropriadas para a coexistência das liberdades, ou seja, quando cria a moldura para que a liberdade de um não se transforme em não liberdade para os outros. É nesse sentido que se pode falar em igualdade na liberdade, numa ordem jurídica alinhada com as aspirações do justo.

O mundo não é uma realidade necessária, mas um conjunto de possibilidades. É o que permite afirmar o papel e o valor de uma Teoria da Justiça que integre, de maneira pluralista, no Direito Positivo, a ordem, aperfeiçoada pela igualdade e pela liberdade. 
 
Por  Jornal O Estado de São Paulo
Fonte: Revista Resultado
Ano 8, no. 45

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