sábado, 11 de abril de 2015

Tutela cautelar e de urgência na arbitragem (parte 1)

Fora do Tribunal
No texto da Lei de Arbitragem (9.307/1996) só há uma referência às medidas cautelares, constante do parágrafo 4o do art. 22, que possui a seguinte redação: 

Art. 22. Poderá o árbitro ou o tribunal arbitral tomar o depoimento das partes, ouvir testemunhas e determinar a realização de perícias ou outras provas que julgar necessárias, mediante requerimento das partes ou de ofício. (…)
§ 4º Ressalvado o disposto no § 2º, havendo necessidade de medidas coercitivas ou cautelares, os árbitros poderão solicitá-las ao órgão do Poder Judiciário que seria, originariamente, competente para julgar a causa.
Referido dispositivo é impreciso e pode conduzir, como de fato conduziu em várias ocasiões ao longo dos anos, a interpretações equivocadas por parte da doutrina e da jurisprudência. Constata-se que há, pelo menos, quatro problemas originados da apresentação defeituosa dessa norma.

O primeiro deles decorre da própria estruturação do dispositivo, já que o parágrafo 4o acima transcrito está inserido no art. 22, que disciplina a produção de provas na arbitragem. Seria razoável, pelo menos do ponto de vista contextual, interpretar que as “medidas coercitivas ou cautelares” ali mencionadas seriam apenas aquelas relacionadas ao âmbito probatório (antecipação de provas, condução coercitiva de testemunhas, etc.).

A segunda falha diz respeito à ausência de qualquer previsão quanto às cautelares preparatórias. Tal constatação, aliada à equivocada contextualização do §4° dentro do artigo 22,  gerou dúvidas e insegurança, havendo quem tenha, na doutrina, defendido o não cabimento de medidas cautelares em arbitragens[1], especialmente as cautelares preparatórias anteriores à instauração da arbitragem.

Há ainda outra omissão, que materializa o terceiro defeito do atual sistema de tutela de urgência da Lei de Arbitragem, que é a ausência de previsão de outras medidas de urgência, em especial a antecipação de tutela.

Por fim, o quarto problema decorre da redação imprecisa utilizada, já que o dispositivo estabelece que, “havendo necessidade (...) os árbitros poderão solicitar” medidas cautelares e coercitivas ao Poder Judiciário. Não se fala em solicitar o cumprimento, mas meramente “solicitar”. Omissão que, proposital ou não, poderia levar ao entendimento de que não caberia ao árbitro o exame do pedido, mas apenas a remessa burocrática ao magistrado, que seria, este sim, competente para analisar a cautelar. Outra confusão gerada pela falta de esmero da norma: poderia o juiz, ao receber a solicitação de cumprimento de uma cautelar deferida por um árbitro, reexaminá-la e proferir nova decisão?

Referidas falhas da norma foram, a partir da vigência da Lei de Arbitragem e ao longo dos anos, enfrentadas primeiro pela doutrina e posteriormente pela jurisprudência. São inúmeros os autores arbitrabilistas que se dedicaram ao problema, e certamente há centenas de julgados sobre a questão. Mas aqui irei destacar um julgado do STJ, que sintetiza de forma objetiva a melhor solução para os quatro problemas acima destacados. Nele se resumem anos de desenvolvimento doutrinário e maturação jurisprudencial. A ementa é a que segue:

“DIREITO PROCESSUAL CIVIL. ARBITRAGEM. MEDIDA CAUTELAR. COMPETÊNCIA.
JUÍZO ARBITRAL NÃO CONSTITUÍDO.
1. O Tribunal Arbitral é competente para processar e julgar pedido cautelar formulado pelas partes, limitando-se, porém, ao deferimento da tutela, estando impedido de dar cumprimento às medidas de natureza coercitiva, as quais, havendo resistência da parte em acolher a determinação do(s) árbitro(s), deverão ser executadas pelo Poder Judiciário, a quem se reserva o poder de imperium.
2. Na pendência da constituição do Tribunal Arbitral, admite-se que a parte se socorra do Poder Judiciário, por intermédio de medida de natureza cautelar, para assegurar o resultado útil da arbitragem.”
(…).
(REsp 1297974/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 12/06/2012, DJe 19/06/2012).


No contexto fático enfrentado no julgamento acima, quando do ajuizamento da medida cautelar não havia sido instaurada a arbitragem, o que só veio a ocorrer após a prolação de sentença pelo juiz de primeiro grau e antes do julgamento da apelação. O Tribunal de Justiça deu provimento à apelação para deferir a liminar da cautelar, que havia sido negada em primeira instância. No STJ, no entanto, entendeu-se que o tribunal já não teria mais jurisdição para analisar a cautelar quando do julgamento da apelação, uma vez que já instaurada a arbitragem.

O Poder Judiciário, quanto às medidas cautelares e de urgência anteriores à arbitragem, possuiria assim jurisdição precária, subsistindo apenas até a instauração do procedimento arbitral. No corpo do voto, a eminente ministra Nancy Andrighi assim consignou:
Nessa situação, superadas as circunstâncias temporárias que justificavam a intervenção contingencial do Poder Judiciário e considerando que a celebração do compromisso arbitral implica, como regra, a derrogação da jurisdição estatal, é razoável que os autos sejam prontamente encaminhados ao juízo arbitral, para que este assuma o processamento da ação e, se for o caso, reaprecie a tutela conferida, mantendo, alterando ou revogando a respectiva decisão. (...)
Sendo assim, me parece suficiente que o Juiz, ao encaminhar os autos ao árbitro, consigne a ressalva de que sua decisão foi concedida em caráter precário, estando sujeita a ratificação pelo juízo arbitral, sob pena de perder eficácia. Com isso, e sem que haja qualquer usurpação de competência ou conflito de jurisdição, evita-se a prática de atos inúteis e o prolongamento desnecessário do processo”.
Adotou-se no julgado acima a tese de que os árbitros poderiam sim apreciar medidas cautelares relacionadas ao litígio submetido à arbitragem. Essa é a solução ideal e lógica, não só porque a cautelar é sempre dependente do processo principal (art. 796 do CPC de 1973), mas também porque a Lei de Arbitragem revogou o art. 1.086 do Código de Processo Civil de 1973, que estabelecia ser vedado ao árbitro “empregar medidas coercitivas” ou “decretar medidas cautelares”. Ao revogar o referido artigo, deu ensejo à interpretação de que, apesar da redação ambígua do §4o do art. 22, a apreciação das cautelares deve ser submetida aos árbitros.

Quanto às medidas cautelares preparatórias, apesar do silêncio normativo, a solução encontrada no precedente acima decorre do princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5o, inciso XXXV, da Constituição Federal). O Poder Judiciário, em caráter precário, pode conhecer e apreciar medida urgente, perdendo a sua jurisdição assim que instaurada a arbitragem. A jurisdição do magistrado seria provisória porque, após a convenção de arbitragem, firmada por cláusula compromissória ou compromisso arbitral, as partes afastam a jurisdição estatal e submetem seu litígio à arbitragem. Uma vez instaurada esta, o processo deveria ser imediatamente remetido para o(s) árbitro(s).

O precedente acima copiado possui singular importância, pois apresenta solução para os problemas decorrentes da imprecisão do sistema cautelar previsto na Lei de Arbitragem e apontados acima. A uma só vez, estabelece que (1) o árbitro pode apreciar medidas cautelares em geral e (2) o juiz deve examinar as cautelares anteriores à instauração da arbitragem, remetendo-as ao árbitro tão logo possível.

Por inferência lógica, eventual antecipação de tutela anterior à instauração da arbitragem haveria de ser encaminhada ao Poder Judiciário. Apesar de não estar expressamente consignado no precedente, é de se compreender que, sendo do árbitro a jurisdição para apreciar a medida cautelar, não poderia o juiz reexaminá-la caso chamado a dar cumprimento coercitivo à mesma.

Na próxima coluna examinarei a nova disciplina das tutelas cautelares e de urgência proposta no Projeto de Lei do Senado 406/2013, em vias de ser aprovado.

[1]Carlos Alberto Carmona menciona as posições de Paulo Furtado e Uadi L. Bulos, por exemplo, que entendiam que a Lei veda a concessão de medidas cautelares pelos árbitros (Lei de arbitragem comentada, Paulo Furtado e Uadi L. Bulos, Ed. Saraiva, 1997, p. 93). Carlos Alberto Carmona faz menção ainda à posição de Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, que defende a tese de que o árbitro somente poderia conceder medidas cautelares se assim estivesse disposto expressamente na convenção de arbitragem (Aspectos Processuais da nova lei de arbitragem: A nova lei brasileira (9.307/96 e a Praxe Internacional, Coord. De Paulo de Boraba Casella, São Paulo, Ed. Ltr, 1997, o. 131-156, esp. p. 148). Ambas as citações acima constam de CARMONA. Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei 9.307/1996. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2009, pp. 324 e 325, nota de rodapé n. 54)

Por Caio Cesar Rocha, sócio do escritório Rocha Marinho e Sales Advogados e membro da comissão de juristas que elaborou o anteprojeto de lei para revisar a Lei de Arbitragem. Tem doutorado em Processo Civil pela USP e pós-doutorado pela Columbia University, de Nova York.
Fonte: ConJur

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