Dados empíricos
Uma arbitragem é quase sempre feita a portas
fechadas, em razão do sigilo. Aqueles que costumam atuar como árbitros,
advogados ou simplesmente procuradoresdas partes em uma arbitragem,
muitas vezes, não sabem o que fazem os seus colegas, nem como decidem os
tribunais arbitrais ao redor do mundo.
Corriqueiramente é feita a pergunta: quais as tendências na prática da arbitragem? Difícil dizer. Conhecem-se as próprias tendências e as dos árbitros com quem temos contato em casos concretos. Podemos ter uma ideia melhor lendo o que se publica nas revistas sérias e frequentando os congressos. Nossa visão será, entretanto, em parte uma fotografia do dever-ser: do mundo que queremos, e não de como as coisas realmente funcionam fora do nosso círculo de atuação. A barreira das portas fechadas é muitas vezes poderosa.
A Queen Mary University of London acaba de publicar os resultados de uma pesquisa detalhada de opinião sobre a prática da arbitragem no mundo anglo-saxão e continental. Trata-se do documento intitulado 2012 International Arbitration Survey: Current and Preferred Practices in the Arbitral Process (“Enquete sobre arbitragem internacional 2012: Práticas preferidas e atuais no âmbito do procedimento arbitragem”, clique aqui para ler). Nada se sobrepõe aos dados empíricos, quando a pergunta é pelo como se faz.
A variabilidade dos dados se deve a uma miríade de fatores. Se as partes provêm de tradições jurídicas distintas, como chegar a um acordo sobre notificações, formação do tribunal, critérios de suspeição e independência, produção de prova testemunhal, documental e pericial, validade de laudos arbitrais etc?Mesmo quando as partes compartilham a mesma Weltanschauung procedimental — ou ainda quando a arbitragem é inteiramente nacional —, ainda existe uma grande variabilidade. Como o procedimento está sujeito à vontade das partes e à concepção dos membros do tribunal arbitral formado — afora alguns parâmetros especificados na Lei de Arbitragem nacional, nos tratados internacionais em vigor e nas regras da instituição arbitral escolhida —, sempre haverá alternativas plausíveis, umas eventualmente mais eficazes que as outras. Aos advogados acostumados apenas aos processos judiciais, eis um admirável mundo novo. Em arbitragem, se ganha em flexibilidade, mas é preciso saber aproveitar a experiência, analisando os resultados dos testes.
Além disso, quando faltam regras rígidas como as de um código de processo, exige-se mais dos advogados e dos árbitros. É preciso, além de respeitar as cláusulas arbitrais (o que implica, pasmem, convencer os clientes a cumprir laudos arbitrais e a procurar a sua anulação apenas em casos realmente teratológicos), ater-se a regras implícitas de cavalheirismo e rigor científico — padrões esperados de ética e expertise, respectivamente, que no fundo resultam na mesma coisa. Uma formação deficiente (quase sempre sem culpa própria) dos advogados e árbitros, como o desconhecimento ou falta de treino em matérias exatas como lógica, método científico, matemática e economia, muito mais valorizadas no mercado do que o conhecimento específico de vários ramos do direito, costuma ser mais desastroso numa arbitragem que em um processo judicial. Em arbitragem, a falta de expertise redunda necessariamente em injustiça.
Com base na enquete mencionada, nosso objetivo é destacar algumas tendências importantes na prática da arbitragem sob a perspectiva dos práticos brasileiros. Como não há espaço para discutir todas as tendências, comentamos aquelas que nos parecem mais dignas de nota: (a) o uso das regras da IBA para a colheita de provas, valorizando-se, em particular, a nomeação de experts apenas pelas partes; (b) o uso de declarações escritas de testemunhas, eventualmente dispensando-se a sua oitiva em audiência; (c) o fator “mau comportamento” das partes e/ou seus advogados como critério de alocação de custas da arbitragem.
Já em 2006, numa enquete anterior, descobriu-se que o capital intangível mais valorizado na arbitragem era a flexibilidade procedimental. Enquanto isso, debate-se há anos no Brasil, com pouco sucesso, o que fazer para tornar o venerável CPC um código “efetivo”. A conhecida “OAB internacional”, a IBA — International Bar Association, pensando nisso, editou as suas IBA Rules on the Taking of Evidence in International Arbitration (“Regras Probatórias da IBA”). De acordo com a enquete de 2012, apenas 5% dos entrevistados desprezaram a sua importância. O restante as aprova plenamente, todavia, mais como guias que como regras cogentes. Sugere-se, nesse sentido, que os árbitros e as partes se orientem por elas, ao menos como máximas da experiência.
De grande importância, mesmo como inspiração, é o artigo 5º, sobre peritos indicados pelas partes. Basicamente, cada parte declara o que deseja provar e indica um ou mais peritos; estes apresentam, no prazo fixado pelo Tribunal, um relatório ou laudo técnico. Preferencialmente, para evitar suspeitas (ainda mais no Brasil, onde a cultura da independência científica ainda está por se estabelecer completamente), o expert não deve ter qualquer tipo de envolvimento empregatício ou de consultoria com a parte, e muito menos interesse no resultado. A sua independência efetiva deve ser declarada formalmente, como o fazem os árbitros; no laudo, devem indicar que estão genuinamente convencidos a respeito das opiniões ali expressas.
Mais adiante, o tribunal arbitral pode determinar aos experts das partes que procurem chegar a um consenso sobre o maior número de questões possível. Caso o tribunal não esteja convencido, ou não queira recorrer a esse expediente, pode nomear experts de sua confiança. A experiência mostra que, apesar da dificuldade de se chegar a um consenso, a produção de prova pericial ganha bastante em eficiência e celeridade quando se privilegia a indicação de experts pelas partes.
Para escândalo dos advogados brasileiros, em 90% das arbitragens — segundo os dados da enquete, que ouviu advogados e árbitros do mundo inteiro — recorreu-se a party-appointed experts. Apenas em 10% dos casos, o tribunal arbitral indicou ele mesmo um ou mais peritos. Em geral, a indicação pelas partes foi considerada mais efetiva que a indicação pelo tribunal arbitral (43% contra 31%; para 26%, é indiferente quem indicou os experts).
Outra tendência é recorrer ao uso de declarações escritas pelas testemunhas de fato, mesmo dispensando a sua oitiva em audiência. Em 48% dos casos, com efeito, as testemunhas apresentaram declarações sobre os fatos da causa dos quais tinham conhecimento, e mais tarde foram ouvidas em audiência; em quase 40% o seu testemunho foi exclusivamente escrito. Note-se a diferença entre, por exemplo, advogados latino-americanos e advogados da common law: apenas 35% dos primeiros julgam ser efetivo o método da declaração escrita, contra 71% dos segundos que pensam assim. A tendência, entretanto, é que a aceitação desse proceder seja cada vez maior entre os latinos. A experiência internacional diz que longas audiências são muitas vezes cansativas e pouco úteis, e que muitas vezes declarações escritas são suficientes para informar o tribunal arbitral sobre os fatos.
Por fim, uma opinião aparentemente polêmica, mas tranquila na visão dos arbitralistas entrevistados: para 96% dos entrevistados, o comportamento inadequado — como, por exemplo, a chicana e a desobediência às ordens do tribunal arbitral — é um fator a ser levado seriamente em conta no momento de atribuir responsabilidade pelos custos do procedimento arbitral. As consequências disso são importantíssimas (as partes devem pensar muito bem antes de contratar advogados que não estejam familiarizados com a arbitragem, ou que gostem demais de “briga” ou de atravessar espontaneamente 1.001 petições).
Diz a enquete, em sua página 41, que a maioria esmagadora dos entrevistados (96%) acredita que a conduta inadequada da parte ou dos seus advogados durante o procedimento arbitral deveria ser levada em consideração pelo tribunal arbitral no momento de decidir sobre a responsabilidade pelas despesas. O texto prossegue destacando que se trata de um recado importantíssimo dirigido aos árbitros: espera-se que eles penalizem a conduta inadequada das partes e dos seus advogados ao decidir sobre a responsabilidade pelas despesas.
Essas e outras tendências evidenciadas na enquete não são meras curiosidades. Elas indicam o que ocorre a portas fechadas no interior das arbitragens ao redor do mundo: Europa, Ásia, América e Oriente Médio. Presumindo que refletem sólida experiência na área, seria imprudente não dar ouvidos a ela.
Por Julio Cesar Lazzarine Lemos
Fonte: ConJur
Corriqueiramente é feita a pergunta: quais as tendências na prática da arbitragem? Difícil dizer. Conhecem-se as próprias tendências e as dos árbitros com quem temos contato em casos concretos. Podemos ter uma ideia melhor lendo o que se publica nas revistas sérias e frequentando os congressos. Nossa visão será, entretanto, em parte uma fotografia do dever-ser: do mundo que queremos, e não de como as coisas realmente funcionam fora do nosso círculo de atuação. A barreira das portas fechadas é muitas vezes poderosa.
A Queen Mary University of London acaba de publicar os resultados de uma pesquisa detalhada de opinião sobre a prática da arbitragem no mundo anglo-saxão e continental. Trata-se do documento intitulado 2012 International Arbitration Survey: Current and Preferred Practices in the Arbitral Process (“Enquete sobre arbitragem internacional 2012: Práticas preferidas e atuais no âmbito do procedimento arbitragem”, clique aqui para ler). Nada se sobrepõe aos dados empíricos, quando a pergunta é pelo como se faz.
A variabilidade dos dados se deve a uma miríade de fatores. Se as partes provêm de tradições jurídicas distintas, como chegar a um acordo sobre notificações, formação do tribunal, critérios de suspeição e independência, produção de prova testemunhal, documental e pericial, validade de laudos arbitrais etc?Mesmo quando as partes compartilham a mesma Weltanschauung procedimental — ou ainda quando a arbitragem é inteiramente nacional —, ainda existe uma grande variabilidade. Como o procedimento está sujeito à vontade das partes e à concepção dos membros do tribunal arbitral formado — afora alguns parâmetros especificados na Lei de Arbitragem nacional, nos tratados internacionais em vigor e nas regras da instituição arbitral escolhida —, sempre haverá alternativas plausíveis, umas eventualmente mais eficazes que as outras. Aos advogados acostumados apenas aos processos judiciais, eis um admirável mundo novo. Em arbitragem, se ganha em flexibilidade, mas é preciso saber aproveitar a experiência, analisando os resultados dos testes.
Além disso, quando faltam regras rígidas como as de um código de processo, exige-se mais dos advogados e dos árbitros. É preciso, além de respeitar as cláusulas arbitrais (o que implica, pasmem, convencer os clientes a cumprir laudos arbitrais e a procurar a sua anulação apenas em casos realmente teratológicos), ater-se a regras implícitas de cavalheirismo e rigor científico — padrões esperados de ética e expertise, respectivamente, que no fundo resultam na mesma coisa. Uma formação deficiente (quase sempre sem culpa própria) dos advogados e árbitros, como o desconhecimento ou falta de treino em matérias exatas como lógica, método científico, matemática e economia, muito mais valorizadas no mercado do que o conhecimento específico de vários ramos do direito, costuma ser mais desastroso numa arbitragem que em um processo judicial. Em arbitragem, a falta de expertise redunda necessariamente em injustiça.
Com base na enquete mencionada, nosso objetivo é destacar algumas tendências importantes na prática da arbitragem sob a perspectiva dos práticos brasileiros. Como não há espaço para discutir todas as tendências, comentamos aquelas que nos parecem mais dignas de nota: (a) o uso das regras da IBA para a colheita de provas, valorizando-se, em particular, a nomeação de experts apenas pelas partes; (b) o uso de declarações escritas de testemunhas, eventualmente dispensando-se a sua oitiva em audiência; (c) o fator “mau comportamento” das partes e/ou seus advogados como critério de alocação de custas da arbitragem.
Já em 2006, numa enquete anterior, descobriu-se que o capital intangível mais valorizado na arbitragem era a flexibilidade procedimental. Enquanto isso, debate-se há anos no Brasil, com pouco sucesso, o que fazer para tornar o venerável CPC um código “efetivo”. A conhecida “OAB internacional”, a IBA — International Bar Association, pensando nisso, editou as suas IBA Rules on the Taking of Evidence in International Arbitration (“Regras Probatórias da IBA”). De acordo com a enquete de 2012, apenas 5% dos entrevistados desprezaram a sua importância. O restante as aprova plenamente, todavia, mais como guias que como regras cogentes. Sugere-se, nesse sentido, que os árbitros e as partes se orientem por elas, ao menos como máximas da experiência.
De grande importância, mesmo como inspiração, é o artigo 5º, sobre peritos indicados pelas partes. Basicamente, cada parte declara o que deseja provar e indica um ou mais peritos; estes apresentam, no prazo fixado pelo Tribunal, um relatório ou laudo técnico. Preferencialmente, para evitar suspeitas (ainda mais no Brasil, onde a cultura da independência científica ainda está por se estabelecer completamente), o expert não deve ter qualquer tipo de envolvimento empregatício ou de consultoria com a parte, e muito menos interesse no resultado. A sua independência efetiva deve ser declarada formalmente, como o fazem os árbitros; no laudo, devem indicar que estão genuinamente convencidos a respeito das opiniões ali expressas.
Mais adiante, o tribunal arbitral pode determinar aos experts das partes que procurem chegar a um consenso sobre o maior número de questões possível. Caso o tribunal não esteja convencido, ou não queira recorrer a esse expediente, pode nomear experts de sua confiança. A experiência mostra que, apesar da dificuldade de se chegar a um consenso, a produção de prova pericial ganha bastante em eficiência e celeridade quando se privilegia a indicação de experts pelas partes.
Para escândalo dos advogados brasileiros, em 90% das arbitragens — segundo os dados da enquete, que ouviu advogados e árbitros do mundo inteiro — recorreu-se a party-appointed experts. Apenas em 10% dos casos, o tribunal arbitral indicou ele mesmo um ou mais peritos. Em geral, a indicação pelas partes foi considerada mais efetiva que a indicação pelo tribunal arbitral (43% contra 31%; para 26%, é indiferente quem indicou os experts).
Outra tendência é recorrer ao uso de declarações escritas pelas testemunhas de fato, mesmo dispensando a sua oitiva em audiência. Em 48% dos casos, com efeito, as testemunhas apresentaram declarações sobre os fatos da causa dos quais tinham conhecimento, e mais tarde foram ouvidas em audiência; em quase 40% o seu testemunho foi exclusivamente escrito. Note-se a diferença entre, por exemplo, advogados latino-americanos e advogados da common law: apenas 35% dos primeiros julgam ser efetivo o método da declaração escrita, contra 71% dos segundos que pensam assim. A tendência, entretanto, é que a aceitação desse proceder seja cada vez maior entre os latinos. A experiência internacional diz que longas audiências são muitas vezes cansativas e pouco úteis, e que muitas vezes declarações escritas são suficientes para informar o tribunal arbitral sobre os fatos.
Por fim, uma opinião aparentemente polêmica, mas tranquila na visão dos arbitralistas entrevistados: para 96% dos entrevistados, o comportamento inadequado — como, por exemplo, a chicana e a desobediência às ordens do tribunal arbitral — é um fator a ser levado seriamente em conta no momento de atribuir responsabilidade pelos custos do procedimento arbitral. As consequências disso são importantíssimas (as partes devem pensar muito bem antes de contratar advogados que não estejam familiarizados com a arbitragem, ou que gostem demais de “briga” ou de atravessar espontaneamente 1.001 petições).
Diz a enquete, em sua página 41, que a maioria esmagadora dos entrevistados (96%) acredita que a conduta inadequada da parte ou dos seus advogados durante o procedimento arbitral deveria ser levada em consideração pelo tribunal arbitral no momento de decidir sobre a responsabilidade pelas despesas. O texto prossegue destacando que se trata de um recado importantíssimo dirigido aos árbitros: espera-se que eles penalizem a conduta inadequada das partes e dos seus advogados ao decidir sobre a responsabilidade pelas despesas.
Essas e outras tendências evidenciadas na enquete não são meras curiosidades. Elas indicam o que ocorre a portas fechadas no interior das arbitragens ao redor do mundo: Europa, Ásia, América e Oriente Médio. Presumindo que refletem sólida experiência na área, seria imprudente não dar ouvidos a ela.
Por Julio Cesar Lazzarine Lemos
Fonte: ConJur
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