Uso da máquina
Segundo o relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça, a cada ano, para cada dez novas demandas propostas no Poder Judiciário brasileiro, apenas três demandas antigas são resolvidas. Some-se a este preocupante dado que encontram-se pendentes cerca de 93 milhões de feitos. Sem dúvida vivemos um sério problema de déficit operacional.
Segundo o relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça, a cada ano, para cada dez novas demandas propostas no Poder Judiciário brasileiro, apenas três demandas antigas são resolvidas. Some-se a este preocupante dado que encontram-se pendentes cerca de 93 milhões de feitos. Sem dúvida vivemos um sério problema de déficit operacional.
Algumas das atuais soluções para esta delicada situação deficitária envolvem uma preocupação essencial com o uso racional e eficiente da máquina estatal. Certamente se pode afirmar que, se uma parte vence uma disputa mas ainda encontra-se insatisfeito ao final do processo, há algo nesta máquina estatal (ou no seu uso) a ser questionado.
De fato, partes vencedoras de uma disputa frequentemente se sentem perdedoras em razão do tempo, custas e, principalmente, perda de vínculo. Este último item para muitos dos maiores litigantes no nosso país é especialmente precioso, pois a perda de vínculo com um consumidor envolve necessidade de dispêndio com marketing para repor o cliente perdido e o prejuízo decorrente da imagem da marca. Não restam dúvidas de que um litígio gera adversários de grande animosidade e pode destruir as relações entre os envolvidos.
Todavia, a adoção de novas práticas para uso eficiente do Poder Judiciário consiste em uma decisão eminentemente de política empresarial: perceber que pode haver ganho com a participação da empresa nas conciliações, tratando estas como uma oportunidade de marketing direto e de aproximação com o consumidor. Ganha o consumidor, que é melhor atendido; e ganha a empresa, que preserva seu maior patrimônio: o cliente.
Para tanto, faz-se necessário ter uma perspectiva não adversarial de uma disputa judicial. Perceber o consumidor como adversário em um processo judicial induz a empresa a agir de forma defensiva e até mesmo passiva quanto ao contexto apresentado pelo autor (e.g. “os autores argumentam que prestamos esse serviço de forma falha e nós contra-argumentamos que o serviço foi bem prestado”).
Por outro lado, perceber o consumidor (de forma não adversarial) como parceiro essencial da empresa, mesmo em um processo judicial, induz a empresa a agir de forma construtiva e proativa quanto ao contexto indicado pelo autor (e.g. “os autores argumentam que prestamos esse serviço de forma falha e, como compartilhamos do interesse dos nossos clientes de prestar serviços de excelência, gostaríamos de conversar sobre formas de melhor atende-los”).
A mudança de perspectiva acima apresentada requer – entre outras atividades típicas de empresas modernas no sentido de contar com um programa de desenho de um sistema de prevenção e resolução de disputas - treinamento de prepostos com o intuito de otimização de recursos da própria empresa. Esta conclusão tem sido trabalhada pelo Conselho Nacional de Justiça desde 2009 . Nesta oportunidade, indicou-se que se faz necessário trabalhar a noção de que o Estado precisa preparar o jurisdicionado para adequadamente utilizar o sistema público de resolução de disputas.
Para melhor elucidação da importância deste trabalho nas políticas públicas em prevenção e resolução consensual de disputas pode-se utilizar a alegoria de que, se o Poder Judiciário se propõe a ser um hospital de relações sociais – voltado também à melhoria destes vínculos -, faz-se necessária a adoção de práticas de orientação para o uso eficiente do sistema público de resolução de disputas.
Assim, como indicado em outra oportunidade , imagine-se um cirurgião que, ao adentrar uma sala de cirurgia, nota que o paciente está com roupas cotidianas e sujo — não passou pela assepsia usual a essa prática. O mesmo, com adaptações necessárias, foi identificado na prática brasileira da conciliação. Frequentemente, partes chegavam à conciliação sem a adequada preparação: pelo conciliador, pela empresa, ou mesmo pela parte pessoa física. O “cirurgião” recebia apenas breves apontamentos teóricos de como “operar” e os “pacientes”, sem nenhuma orientação de como se prepararem. O tempo da “cirurgia” era definido pela pauta do cirurgião e não pela complexidade do caso. Não era sem motivo a patente insatisfação com a conciliação no final do século XX e nos primeiros anos do século atual.
Esta preocupação de melhor preparar os usuários para utilizar adequadamente o sistema público de resolução de disputas — ou, como indicado acima, “preparar o paciente para a cirurgia” —, diversos tribunais, como já noticiado , dentre os quais o TJ-DF, o TJ-RJ e o TJ-SP, iniciaram treinamento de capacitação de prepostos.
Nesses treinamentos, advogados e diretores jurídicos e financeiros das empresas são estimulados a identificar falhas comuns na atuação cotidiana em conciliações, dentre as quais destacam-se quatro aspectos fundamentais: a) desconsideração do custo de imagem que a conciliação mal administrada pode gerar para a empresa; b) negociar na conciliação como se estivesse em audiência de instrução; c) tentar vencer o conflito e d) perceber a conciliação como alternativa.
a) Muitas empresas despendem significativos recursos para captar novos clientes, mas não consideram o custo de perder um cliente em razão de uma atuação descuidada do preposto na conciliação. Nesses treinamentos, estimulam-se as empresas a considerarem o custo da captação do novo cliente (gasto com propaganda e marketing dividido pelo número de novos clientes por ano) ao planejarem como será a atuação dos seus prepostos na conciliação.
b) No que concerne à adequada compreensão das partes e advogados quanto às características intrínsecas da conciliação, cumpre registrar que há uma prática profissional específica em processos autocompositivos. Na conciliação, a adoção de uma postura do preposto deve ser humanizada, zelosa e solucionadora, sob pena do outro interessado/parte não se engajar de forma plena no processo de resolução de problemas que, em essência, é o trabalho da conciliação. A compreensão de que a conciliação seria uma instrução “disfarçada” somente contribui para a imprópria condução da conciliação e, por conseguinte, baixa resolutividade, excessiva litigiosidade e, naturalmente, insatisfação das partes com seu desenvolvimento;
c) Ao tratar o conflito como uma dinâmica na qual um dos envolvidos pode sair como claro vencedor, transformando o outro em patente perdedor, frequentemente as partes envolvidas se engajam em condutas competitivas visando mais do que vencer, incutir a perda ao outro. Como resultado, ao menos parcialmente, ambos tendem a perder e inadvertidamente abdicam de diversos interesses que possuem, como a manutenção do relacionamento social pré-existente com a outra parte ou a resolução dos pontos controvertidos como objetivamente apresentados no início do conflito, não em razão de um acirramento do conflito que se expandiu tornando-se “independente de suas causas iniciais”. A percepção, em um determinado conflito, de que é necessário que a parte “vença a outra” — e não “objetivamente resolva os pontos em relação aos quais as partes divergem” — faz com que as partes envidem esforços para prejudicar uma à outra e não necessariamente apenas resolvam os pontos controvertidos;
d) A experiência dos últimos 30 anos tem mostrado que o comprometimento com a forma de resolução de disputa adotada (com respectivas características) influi significativamente no adequado desenvolvimento do processo e, por conseguinte, na satisfação das partes com a solução alcançada. Empresas e escritórios de advocacia que tratam a conciliação ou mediação como uma “forma secundária” de resolução de disputas tendem a não investir em treinamento de seus advogados e administradores. Como consequência, há o exercício intuitivo desses processos, que em regra se resume a aplicar a conduta profissional característica do processo judicial à mediação ou à conciliação. Naturalmente, como visto acima, essa prática intuitiva, em regra, leva ao desvirtuamento da conciliação e a consequentes custos mais elevados (ou redução dos níveis de satisfação dos usuários).
Merece destaque que, após o treinamento de prepostos e advogados no Brasil, os índices de conciliação subiram em mais de 120%. Empresas como Vivo, Tim, Sky Telecomunicações, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Casas Bahia, entre outras, receberam treinamento e o CNJ, ou os próprios tribunais, ofereceram esse treinamento sem nenhum custo aos participantes.
O Poder Judiciário tem passado por mudanças significativas quanto à sua função, adotando a uma posição de ativismo também quanto à orientação e educação do usuário para tornar soluções amigáveis de disputa uma prioridade empresarial.
Com isto, o Poder Judiciário se aproxima de uma de suas mais belas funções: educar a sociedade para tornar-se mais consensual; ao mesmo tempo em que enfrenta de forma direta um de seus maiores desafios: o déficit operacional.
Por André Gomma de Azevedo é Juiz de Direito e membro do comitê gestor do movimento pela conciliação do CNJ, e Emmanoel Campelo é advogado e Conselheiro junto ao Conselho Nacional de Justiça.
Fonte: ConJur
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