O conceito de conciliação e arbitragem na esfera pública vem sendo discutido há muito, todavia, sempre esbarra em um dos dogmas do Direito Administrativo: o princípio da indisponibilidade do interesse público.
O conceito de interesse público, sem dúvida alguma é plurissignificativo como bem apontado por algumas obras do Direito, dentre elas, ganha destaque o capítulo 3 da obra Transação Tributária: Uma introdução à justiça fiscal consensual do professor Arnaldo Godoy: A busca do interesse público, em todas as dimensões, é um dever da administração. Deveria orientar a produção normativa do Poder Legislativo. Deveria fixar os parâmetros da ação e dos projetos do Poder Executivo. È o referencial para toda a atuação do Poder Judiciário. O conceito é indefinido, do ponto de vista lingüístico, nas variáveis de dicionários de equivalência. Mas é percepção de ampla inspiração democrática, de balizamento para a eficiência da Administração. Transita no tempo. Mas permanece, intuitivamente, pelo menos, como advertência para o que não se pode fazer. Vincula-se ainda à ideia de eficiência. Enfim, diz-se que o interesse público é indisponível, mesmo que não saibamos do que efetivamente se trata esse interesse público, muito menos os contornos de tal indisponibilidade.
Apenas para ilustrar, pode-se mencionar que a arbitragem como forma de resolução de conflitos em contratos administrativos já tem por parte do Superior tribunal de Justiça um delineamento: Não pode atingir o interesse indisponível do Estado.
Daí que no trabalho diário na Advocacia-Geral da União depara-se com causas bastante complexas envolvendo duas ou até três entidades com interesses “colidentes”. Basta pensar na hipótese de aproveitamento hidrelétrico em terras indígenas, ou de superposição de terras indígenas em unidades de conservação ou do reconhecimento de terras quilombolas em locais com potencial minerário, etc. Cada um desses interesses públicos é perseguido por uma entidade diferente e todas elas estão submetidas ao denominado princípio da indisponibilidade do interesse público. Nesse cenário, como as Câmaras de Conciliação e arbitragem podem entabular um acordo? Como poderá haver o consenso entre tais interesses públicos indisponíveis?
Inicialmente, deve-se mencionar que no âmbito da Advocacia-Geral da União a Câmara tem seu procedimento delineado na Portaria 1.281, de 27 de setembro de 2007 e suas atualizações. Para esse órgão, os conceitos de conciliação e arbitragem são orientados para o mesmo resultado qual seja: "técnica utilizada pelo Conciliador que aproxima os interessados, podendo apresentar sugestões, propostas, modos e formas que visem à solução da controvérsia".
Essa possibilidade de conciliação e arbitragem alcança tanto órgãos federais quanto estaduais e municipais, sendo que uma vez não alcançada a conciliação, a questão poderá ser submetida ao advogado-geral da União que arbitrará o conflito vinculando às partes a sua decisão. Já os conciliadores serão integrantes da Consultoria-Geral da União ou outros integrantes da Advocacia-Geral da União, definidos por ato do advogado-geral da União.
Na condução da conciliação, segundo o mesmo ato, os conciliadores devem ser orientar pelos meios legais e observar os princípios da Administração Pública, sendo que para tanto dispõem dos seguintes instrumentos segundo o artigo 8º da Lei: O conciliador poderá, em qualquer fase do procedimento: "solicitar informações ou documentos complementares necessários ao esclarecimento da controvérsia; solicitar a participação de representantes de outros órgãos ou entidades interessadas; sugerir que as atividades conciliatórias sejam realizadas por Núcleo de Assessoramento Jurídico ou por outros órgãos da Advocacia-Geral da União."
Por fim, note-se que consta da Cartilha da Câmara que: "As reuniões de conciliação são restritas aos órgãos da Administração Pública Federal, Estadual e Distrital, bem como entidades federais, e visam à solução de conflitos das diversas controvérsias."
Diante do quadro apontado fica a pergunta: A Câmara de Conciliação e arbitragem, na sua formatação atual, dispõem dos instrumentos ideais para lidar com a complexidade do mundo pós-moderno e dos problemas que enfretam? O arcabouço normativo rígido preso à ideia clássica de indisponibilidade do interesse público auxilia na condução dessa complexidade?
Bem, como não se trata de uma questão fácil, deve-se como sugere Mangabeira Unger proceder à denominada imaginação institucional para que se possa propor algumas modificações a formatação atual para que a Câmara tenha condições efetivas de cumprir o seu papel.
Para compor esse novo cenário, pode-se levar em consideração algumas ideias básicas como o conceito de interesse público é plurissignificativo, não há como negar que há também um interesse público na resolução de impasses institucionais, e esse interesse público tem fundamento constitucional no princípio da eficiência. Assim, a resolução do impasse do impasse institucional é um interesse público tão importante quanto aquele defendido pela entidade tutora de um determinado interesse específico. Por outro lado, para se chegar ao consenso, objetivo último da conciliação, pode-se utilizar de parâmetro as condições estabelecidas por Habermas em sua teoria da ação comunicativa. Ou seja, poder-se-ia, com base na referida teoria, propor algumas sugestões para que o consenso seja atingido com maior facilidade, mas para tanto, provavelmente uma nova estrutura deve ser delineada.
Afinal, será que no modelo atual os interessados estão na condição ideal de fala ou, no conceito de Habermas, os interessados, ao participarem da Câmara, atuam com base na racionalidade comunicativa ou com base na racionalidade estratégica? A diferença entre ambas foi bem sintetizada por Aylton Barbieri Durão: (...) a racionalidade comunicativa é empregada pelos agentes no mundo da vida e se caracteriza pela busca cooperativa do entendimento recíproco, enquanto a racionalidade estratégica, usada nos sistemas sociais, consiste na orientação da ação para o êxito a partir de uma avaliação das condições dadas na qual a ação é orientada para a busca cooperativa de entendimento recíproco) ou com base na racionalidade estratégica.
Afinal, será que no modelo atual os interessados estão na condição ideal de fala ou, no conceito de Habermas, os interessados, ao participarem da Câmara, atuam com base na racionalidade comunicativa ou com base na racionalidade estratégica? A diferença entre ambas foi bem sintetizada por Aylton Barbieri Durão: (...) a racionalidade comunicativa é empregada pelos agentes no mundo da vida e se caracteriza pela busca cooperativa do entendimento recíproco, enquanto a racionalidade estratégica, usada nos sistemas sociais, consiste na orientação da ação para o êxito a partir de uma avaliação das condições dadas na qual a ação é orientada para a busca cooperativa de entendimento recíproco) ou com base na racionalidade estratégica.
No modelo conflitual típico do processo, pode-se inferir que as partes atuam, pelo menos na maioria das vezes, com base na racionalidade estratégica, voltada exclusivamente para o êxito na demanda e essa conclusão não é necessariamente diferente quando o litigante é o poder público ou o particular. Por outro lado, no caso das Câmaras de Conciliação e Arbitragem a racionalidade deveria ser outra, pois tendo em vista o impasse institucional, os agentes envolvidos deveriam atuar em prol da busca cooperativa do entendimento recíproco. Com isso, dado os instrumentos atuais seria possível essa busca cooperativa, pois nesse contexto, os atos de fala devem ser verdadeiros, retos e sinceros, sendo que a decisão deve ser construída com base no consenso.
Com base nessas ideias, pode-se repensar o modelo de Câmara de Conciliação, traçando algumas sugestões. Inicialmente, deve-se enfatizar que tão indisponível e importante quanto os interesses defendidos circunstancialmente por determinada entidade é o interesse público na resolução de impasses institucionais. Por outro lado, diante da complexidade da sociedade ou dos problemas enfrentados na Câmara, o conciliador, para ter efetividade no seu mister, deve conhecer em profundidade o objeto de sua intermediação.
Assim, a restrição constante da Portaria de que apenas membros da Advocacia Geral da União sejam os conciliadores não parece ser um incentivo ao falante. Com isso, uma sugestão seria admitir que a conciliação seja intermediada não por um conciliador, mas por uma comissão, sendo que as partes envolvidas estariam autorizadas a indicar um representante técnico que possa facilitar a construção do consenso. A vantagem dessa comissão e que não se alcançando o consenso tal comissão seria responsável pela elaboração do parecer a ser submetido ao Advogado Geral da União para fins de arbitragem. Afinal, na atual formatação, os representantes ali constituídos, caso não entrem em consenso, poderão correr o risco de submeter o seu problema a autoridade que dificilmente conhecerá profundamente a questão, seja ela o Advogado Geral da União, seja ela autoridade do Poder Judiciário. Por fim, em casos difíceis, a conciliação pode envolver os órgãos de controle, desde que incentivados institucionalmente para contribuírem para a construção do consenso.
Além disso, na condução da conciliação, os falantes devem ter total liberdade de fala para que possam expor as dificuldades para se alcançar o consenso, e também propor soluções que esteja para além da restrição clássica do princípio da indisponibilidade do interesse público. Tal liberdade pode vir a ser assegurada, inclusive, por meio da decretação do sigilo das discussões prévias. Essa liberdade de discussão deve ser total, muito embora a decisão final deva ser publicizada.
Por fim, a possibilidade de sugestão por parte da Câmara deve ser ampla, desde a conciliação à arbitragem ou mesmo com a proposição de alguma alteração legal.
Tais medidas, não exaustivas, servem apenas para fomentar a discussão e o debate com vistas a conferir efetividade à Câmara de Conciliação e Arbitragem da Advocacia Geral da União, sendo que para essa efetivação, não se deve estar preso ao conceito rígido e fechado da indisponibilidade do interesse público, pois até mesmo o STF já admitiu que esse conceito não deve ser tão rígido assim, mas isso somente será alcançado se houver uma disposição institucional pela busca cooperativa da construção do consenso.
Enfim, a racionalidade que deve orientar as discussões da Câmara de Conciliação e Arbitragem da AGU deve ser a racionalidade comunicativa orientada pelo princípio da indisponibilidade do interesse público em resolver impasses institucionais.
Por Humberto Fernandes de Moura
Fonte: ConJur
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