domingo, 14 de novembro de 2010

"Competição torna advocacia uma profissão insegura"

Divisor de águas
A advocacia americana vive um momento de transição. Ao mesmo tempo em que presencia o crescimento dos grandes escritórios, não dá asas para que todos os profissionais cheguem ao topo do sistema. A abordagem é de Marc Galanter, americano professor de Direito e Estudos Sul-Asiáticos da University of Wisconsin – Madison. Segundo ele, “esse é um momento de indefinição”. Muito disso, explica, se deve à crise global que começou em 2008.

O americano explicou que, enquanto Brasil, Rússia, Índia e China apenas começaram seu desenvolvimento, Estados Unidos e Reino Unido enfrentam um momento delicado. Os jovens são os que mais estão sofrendo. Foram eles que ajudaram as bancas a se tornarem grandes nos Estados Unidos, mas hoje os clientes exigem que os sócios mais antigos cuidem de suas causas. Assim, os mais novos demoram muito mais para entrarem para a sociedade.

Há ainda advogados recém-formados que sequer conseguem um emprego. “Os estudantes de Direito estão empacados e endividados, sem ter para onde ir. Nos EUA, você vai para a escola e termina o colégio aos 17 ou 18 anos. Vai pra faculdade, onde estuda por quatro anos. E só depois você vai estudar Direito, por mais três anos. Nesse momento, os pais não querem mais pagar os estudos. Esses jovens tiveram que emprestar dinheiro para arcar com as dívidas. Alguns possuem dívidas de mais de US$ 100 mil.”

Galanter falou à Consultor Jurídico antes de comentar o trabalho dos brasileiros Luciana Gross, pesquisadora da Direito GV, e Frederico Almeida, pesquisador da Faculdade de Letras, Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, intitulado Sistema de Justiça e Desenvolvimento na Reforma do Judiciário Brasileira, apresentado durante o seminário Direito e Desenvolvimento: um diálogo entre os BRICs.

Especialista em Sociologia Jurídica, Galanter desenvolve estudos em duas frentes: a litigância e a forma de organização dos advogados. Para ele, o aumento no tamanho dos escritórios de advocacia teve como resultado, nos Estados Unidos, a redução do número de julgamentos, o que ele não considera bom.

Leia a entrevista:

ConJur — O senhor é autor do livro Tournament of Lawyers, sobre o crescimento dos escritórios de advocacia. Quais foram as consequências nos Estados Unidos da expansão das grandes sociedades de advogados, em detrimentos dos escritórios artesanais, com um ou dois profissionais?
Marc Galanter — No século XIX, a maior parte dos advogados trabalhava em escritórios com uma ou duas pessoas. O trabalho deles era focado nos tribunais. Com o passar do tempo, isso mudou de duas formas: em primeiro lugar, os grupos de advogados cresceram. Eles não eram mais formados por duas pessoas, mas por 10, 20, 30. Depois, nessas grandes firmas, os advogados passaram a frequentar menos os tribunais e a se dedicar mais aos negócios, como contratos e fusões de companhias. Esses profissionais estão cada vez menos trabalhando nos tribunais. Hoje, os julgamentos estão sendo reduzidos. Nos EUA, o julgamento é um momento primário do processo, em que tudo chega como uma coisa só, e só depois é destrinchado. Devido a essa particularidade do nosso sistema, o julgamento definitivo está acabando.

ConJur — Do ponto de vista do acúmulo de processos, essa diminuição do número de julgamentos não é boa?
Marc Galanter — Meu senso pessoal diz que isso não é tão bom. Há opiniões divergentes. O ponto é que isso realmente depende do que você entende ser papel da advocacia. A lei deveria ser como o óleo numa máquina: ajudar as coisas a deslizar com facilidade. A lei, na sociedade, serve para declarar certas obrigações e responsabilidades. De outro lado, se não há julgamentos, a sociedade é quem vai dizer o que o Direito é. São os padrões de conduta que vão definir se um julgamento foi bom ou ruim. Ao menos para o sistema de commom law, este é um ponto dramático, por que o fortalecimento desse sistema depende do número de julgamentos. Temos menos julgamentos do que deveríamos ter.

ConJur — É comum nos EUA o uso de mecanismos alternativos de resolução de conflitos, como arbitragem e medição?
Marc Galanter — Esses métodos vêm crescendo e tornando a resolução de conflitos mais fácil para as pessoas, na medida em que a cláusula de arbitragem é incluída no contrato. Algumas cortes rejeitam essa prática, mas a maior parte apoia essas resoluções de disputa alternativas. Os negócios, por exemplo, aderiram bastante a essas práticas. Desde a compra de uma televisão até a internação em hospital os contratos contam com cláusula de arbitragem. Os juízes gostam porque muitos acreditam que eles só deveriam se importar com os casos mais importantes. Eles preterem esses casos rotineiros. Por isso, muitos estão felizes com a resolução dessas causas, que eles consideram como menores.

ConJur — Nos Estados Unidos, os juízes levam em conta o impacto econômico que suas decisões podem causar?
Marc Galanter — Os juízes da Suprema Corte, por exemplo, não pensam diretamente nas consequências das decisões ou no impacto que terão na economia. Não podemos dizer que eles são consequencialistas, mas sabemos que às vezes eles fazem isso. Essa atitude não quer dizer que eles estejam corretos ou errados, porque a visão que eles possuem da consequência pode estar distorcida. Tudo que eles possuem são evidências. Eles só pensam “ah, isso é ruim para os negócios ou para o discurso”. O uso do argumento legal não pressupõe que seja também científico, no sentido de saber as consequências da decisão. Como é muito caro e complicado levar um caso à Suprema Corte, o caso termina já nas instâncias anteriores. A tendência é não ter recursos ao longo do processo também. Na Índia, por exemplo, uma coisa muito interessante é que há diversos recursos interlocutórios. Os casos podem durar muitos e muitos anos. Nos EUA, não é assim. Lá o julgamento tem um poder enorme no nosso sistema.


ConJur — Os julgamentos em tribunais do júri são famosos nos EUA. É cultural?
Marc Galanter — Sim, o público adora esses julgamentos, que são transmitidos pela televisão. É algo central da cultura americana. Se você assistir a TV, vai ver júris, júris e mais júris. A maioria é da esfera criminal, ao passo que, na vida real, eles vêm diminuindo, em virtude de todas as mudanças. É engraçado que há advogados que nunca pisaram em um tribunal. Cerca de 5% dos crimes são julgados dessa forma. Na televisão, por sua vez, eles são 80%. Então é uma coisa muito cultural mesmo.

ConJur — Quais as diferenças em relação aos julgamentos daqui?
Marc Galanter — Lá, os julgamentos duram muito tempo, são cansativos, há diversas interrupções. A partir do momento em que os jurados estão lá, tudo deve ser decidido de uma vez. Não há como retirar aquelas pessoas dali. Então há um caráter muito dramático à unidade do júri. A TV transmite principalmente os julgamentos criminais. É a imagem popular do Direito. O cidadão americano vê o Direito como sua própria identidade. Para ele, é algo importante na democracia.

ConJur — O senhor, que trabalhou por muito tempo na Índia, poderia fazer uma comparação entre o mercado norte-americano e o indiano para advogados?
Marc Galanter — Na Índia, além dos grandes escritórios, ainda é forte a cultura dos advogados de renome que exercem a profissão de forma autônoma, com a ajuda apenas de advogados juniores e assistentes. Essas pessoas gastam todo o tempo delas na Corte. Levar casos é quase tudo que elas fazem. Há um cenário bastante competitivo. Ainda não está claro no que isso vai dar, porque as grandes sociedades de advocacia na Índia ainda são muito novas, começaram há menos de 20 anos. Hoje, os jovens saem das escolas de Direito e procuram as sociedades de advogados, porque elas pagam bem. Outro fator que leva os jovens para os escritórios grandes é o medo que têm de que nos escritórios comandados por profissionais de renome apenas parentes ou amigos próximos possam um dia ser sócios. Por outro lado, as empresas que contratam as sociedades de advogados não querem pagar para serem atendidas por jovens advogados.

ConJur — Esse tipo de exigência dos clientes não é exclusividade do mercado indiano, não é?
Marc Galanter — É interessante que esse tipo de firma de advocacia foi inventado nos Estados Unidos. Sócios de grande reputação, com muito mais trabalho do que conseguiriam dar conta, contrataram pessoas jovens. Os novos advogados, que se esforçam, logo se tornam sócios e recebem uma fatia do negócio. Ao longo dos anos, as bancas foram crescendo com base nessas contratações. E é claro que elas tinham advogados jovens trabalhando nos casos. Hoje, essa participação passou a ser um problema. O cliente diz: “nós não pagamos esses honorários para ter os serviços de um advogado novo que acabou de começar. Ele não pode fazer bem o serviço”. As firmas sentem uma tremenda pressão e passam por um período de experimentação, tentando mudar seus modelos de negócios.

ConJur — E qual é a saída encontrada para resolver essa situação?
Marc Galanter — Os sócios criaram uma série de outros cargos que aumentaram a hierarquia até o nível de sócio. Poucos estão deixando os escritórios e muitos estão se tornando um tipo de empregado permanente. A situação dos sócios também mudou. Se você não faz negócios, tem grandes chances de ser afastado. Com isso, as sociedades de advogados nos Estados Unidos vêm se tornando muito mais competitivas. A partir do momento em que alguém se tornar sócio, estará sempre sob provação. Isso torna a profissão muito insegura.

ConJur — Há competição entre sócios?
Marc Galanter — As coisas se tornaram muito mais tensas, e você percebe isso justamente quando vê que você e seu sócio são competidores. Há 15 anos, nas firmas antigas, todo mundo recebia o mesmo salário, ele só mudava conforme o tempo no emprego. Agora todo mundo marcha junto. Cada sócio tem uma quantia e todo ano eles devem dividir os lucros vindos do grande cliente. Então, em certos aspectos, a grande firma é mais corrosiva que a firma clássica. Outra mudança importante é que há 30 anos, trabalhar por muito tempo na mesma empresa era normal. Porém, agora, parece que estar por alguns anos no mesmo emprego é uma grande imobilidade.

ConJur — Como o senhor analisa essa mudança de comportamento?
Marc Galanter — Antes, tudo era muito confidencial. Ninguém sabia de fato quem pagou tudo aquilo, quem era cliente de quem. O cenário começou a mudar no final da década de 1970. De repente, as pessoas sabiam bem mais sobre as práticas profissionais das concorrentes: quem era o cliente, quanto você estava ganhando, o tamanho de tal empresa. É como se antes fosse escuridão e depois uma luz brilhante tivesse aparecido. Isso criou a possibilidade de mobilidade. Pessoas e sócios começaram a circular por aí. Com essa mobilidade, o advogado passou a ter clientes de peso fiéis a ele, e não à empresa. Advogados cultivavam isso. Eles têm um termo engraçado para definir essa atitude: book of business. Se o cliente tem um grande catálogo de clientes, os clientes estão presos a ele. Ele se torna então tremendamente forte frente ao escritório. São muitas mudanças: a mobilidade entre profissionais, a insegurança, os clientes ficam ligados a uma só pessoa.

ConJur — E nos escritórios onde a divisão de tarefas é muito forte e um processo começa com uma pessoa e não termina com ela?
Marc Galanter — Isso existe nos locais em que os escritórios ainda detêm influência sobre o cliente. Na Inglaterra, onde não há incentivo para capturar o cliente, os sócios se aposentam aos 54, 55 anos. Já nos EUA, os advogados militam até os 60, 70 anos. O que estou dizendo é que em alguns lugares a sociedade é realmente permanente. Nos EUA há lugares onde existe o sócio acionista. Ele recebe um salário, não apenas uma fatia do bolo. Nem mesmo o grupo que possui a posse do escritório tem estabilidade, além de estar encolhendo.

ConJur — O senhor falava sobre a adaptação dos jovens advogados ao novo mercado. Mas e os advogados com mais tempo de profissão? Eles estão preparados para todas essas mudanças?
Marc Galanter — Eles estão tentando se adaptar, mas há grande pressão por parte das empresas. É importante fazer uma ressalva. Muitos desses advogados mais antigos acabam sendo levados para funções com menor risco. É um trabalho moderado e rotineiro, que envolve papéis. Eu chamo de um trabalho conveniente. Há escritórios em Nova York que fazem isso, que colocam essas pessoas nos trabalhos com menos risco e sem toda aquela confusão. Há também o trabalho premium, que é em menor quantidade. É um momento de transição mesmo. Muitas empresas, por exemplo, não admitem recém-formados. As opções para eles são trabalho público, por exemplo.

ConJur — A situação está indefinida para esse grupo também?
Marc Galanter — Sim, ninguém sabe como vai funcionar. Algumas empresas acreditam que é preciso contratar os melhores jovens, com salários anuais de até US$ 160 mil. Outras pessoas acham que isso é loucura, porque as companhias não podem arcar com essa soma. O que algumas empresas fazem é dizer: “Venham, nós vamos treinar você. Nos dois primeiros anos você vai fazer muitos trabalhos para clientes, mas com um salário de US$ 75 mil pelo primeiro ano e então você será contratado quando houver essa possibilidade”. O resultado é um pequeno número de sócios e alguns associados, que não estão na luta para virar sócios, já que são permanentes. Esses últimos não têm experiência para virarem sócios, porque nunca cuidam da conta grande. Como resultado, nós não temos no escritório nada além de sócios e associados — pessoas que estão lá mais do que empregados normais. Eles têm experiências, habilidades, mas não chegam à sociedade. No meu livro, Tournament of Lawyers, eu chamo esse fenômeno de “determinante elástico”.

ConJur — Esse novo cenário para os jovens é resultado da crise financeira de 2008?
Marc Galanter — Teve grande influência. Pela primeira vez, muitos estudantes se endividaram para bancar os estudos. Também não há muito empregos. Os estudantes de Direito estão empacados e endividados, sem ter para onde ir. Nos EUA, você vai para a escola e termina a graduação aos 17 ou 18 anos. Então vai para a faculdade, onde estuda por quatro anos. E só depois você vai estudar Direito, por mais três anos. Nesse momento, os pais, quando o estudante tem 22 anos, não querem mais pagar os estudos. Então esses jovens têm que emprestar dinheiro para arcar com as dívidas. Alguns possuem dívidas de mais de US$ 100 mil. Por enquanto, as pessoas ainda estão frequentando as faculdades, mas não há empregos.

ConJur — Os grandes escritórios são maioria nos EUA?
Marc Galanter — Não, eles representam cerca de 20% do mercado da advocacia. Os demais advogados vão trabalhar no governo e outros, ainda, advogam em escritórios que guardam as antigas características. Mas o que os alunos vão fazer quando saírem das faculdades? Eles irão para as grandes firmas? Na Índia, isso tudo ainda está florescendo, assim como no Brasil. É uma nova situação para esses países, que não é fácil. Mas há ainda muitas oportunidades. Nos EUA e no Reino Unido, não.

ConJur — Quantos desses grandes escritórios existem nos EUA?
Marc Galanter — De 400 a 500. Na Índia, há uns 30.

ConJur — No Brasil, nós temos mais de mil escolas de Direito. Como fica a qualidade com tanta oferta?
Marc Galanter — Bom, temos antes que pensar se todos esses estudantes vão exercer a advocacia.

ConJur — Existe o Exame da Ordem dos Advogados do Brasil...
Marc Galanter — Sim, já li sobre isso. Nos Estados Unidos nós temos aproximadamente 100 mil estudantes de Direito. A cada ano, nós temos 40 mil advogados. Quase todos eles praticam a profissão. Então, se você pensar, tem toda essa gente que se forma. Essa quantidade de escolas é relativa, porque as áreas de atuação da profissão vêm crescendo. Primeiro, quando começou a crescer, havia muitos jovens a serem empregados. Agora o mesmo número de pessoas que chega é o número de pessoas que se aposenta. Um dado muito interessante é que as mulheres, na década de 1960, eram apenas 3% dos advogados. Passados esses anos, elas são 56% dos novos advogados.

Por Marília Scriboni
Fonte: ConJur

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