Reflexão
Contou-me renomado jurista, Virgulino Contemporâneo, que teve notícia de duas situações, no mínimo, patéticas e desoladoras. Cumpre realçar que o conspícuo professor Contemporâneo, jurisconsulto de nomeada, apreende o Direito como uma ciência cuja hermenêutica é fundada na Constituição Federal, mormente no cânone da dignidade humana.
Contou-me renomado jurista, Virgulino Contemporâneo, que teve notícia de duas situações, no mínimo, patéticas e desoladoras. Cumpre realçar que o conspícuo professor Contemporâneo, jurisconsulto de nomeada, apreende o Direito como uma ciência cuja hermenêutica é fundada na Constituição Federal, mormente no cânone da dignidade humana.
Eis a primeira. Em uma sexta-feira, que por erro do calendário divino não fora treze, ele, que tinha um processo concluso ao juiz para sentenciar, vira-no baixado para audiência de conciliação – isto em um juizado especial situado em Brasília, na capital do interior do Brasil.
Lá chegando, o notável docente percebera que havia mais vinte litigantes, já que a parte ré era uma instituição financeira famosíssima como cliente do Poder Judiciário. Ficara estupefato: seria uma audiência coletiva?
Trinta minutos depois da hora aprazada para a audiência – aliás, atraso no Poder Judiciário é fato corriqueiro – assevera Virgulino Contemporâneo que o porteiro do auditório chamou a todos para adentrar em uma saleta.
A dita sala estava tão apinhada, que, presentes partes e advogados, o bem mais precioso lá dentro era o oxigênio. Parecia câmara de gás da época de Hitler. A única diferença é que não havia um escapamento voltado para dentro dela mesma a derramar gás mortífero. Sons, cheiros de toda espécie, pessoas em pé, eis o cenário daquela ordália moderna.
Ultrapassados cerca de quinze minutos, a Autoridade Suprema, como se fora o Zeus do Olimpo, adentra o ambiente e, após cumprimentar os presentes, afirma que o banco está generoso para fazer acordos, que era muito bom para as partes essa transação... Assevera, outrossim, que em um ano diminuíra o número de feitos pela metade e finaliza ressalvando o óbvio, que o Poder Judiciário está assoberbado de processos e que a conciliação diminuiria esse acervo.
Virgulino Contemporâneo, entre estupefato e boquiaberto, indaga de si para consigo mesmo: como o Judiciário tem a coragem de alegar a sua própria torpeza? Isto é, se o Judiciário está abarrotado de processos, é porque premia, em primeiro lugar, as grandes corporações com danos morais que beiram o bizarro. Basta ver, por exemplo, que uma empresa de telefonia, que inscreve o nome do usuário em órgão restritivo de crédito, é condenada em menos de dez mil reais. Mas, se alguém jogar baratas em uma mulher e filmá-la, esse mesmo gravame extrapatrimonial é de cem mil reais. Perdoado o trocadilho: a barata sai mais cara!
Em segundo lugar, esse mesmo Judiciário, com essa famigerada conciliação favorece a que bancos, empresas multinacionais, etc. – donos do capital – pisem a moral do jurisdicionado, porque suas penas pecuniárias são tão ínfimas e o curso do processo é tão dilatado, que o mísero homem comum acaba por fazer um “acordo”, bom para as detentoras do vil metal.
Ora, Virgulino Contemporâneo sente-se alguém muito longe de um ser possuinte da tão almejada dignidade da pessoa humana. E ele, vejam bem, um jurisconsulto proficiente, porque o Zé do Povo, já sem dente, nem sabe o que significa conciliação, porque está acostumado mesmo a renunciar ao seu direito para engordar os bolos dos bancos. Bem por isso, Virgulino Contemporâneo tem vontade de pedir para que “o trem pare para ele descer”.
Para agravar ainda mais, assim que evacuada a dita salinha, aparece a lista de Schindler. É isso mesmo! Das vinte partes autoras, Virgulino Contemporâneo era o décimo. E somente faziam-se presentes dois conciliadores, que tiveram a feliz ideia de democratizar a escolha da vítima do holocausto. Um deles chamava de cima para baixo, o outro de baixo para cima. Conclusão: Virgulino Contemporâneo foi o último, isso já por volta das 18h30...
Cansado, Virgulino Contemporâneo enquanto esperava a sua saga, inquiriu de uma senhora muito idosa, que a seu lado se sentara, o que ela achava daquela “conciliação”. Ela lhe redarguiu: “Moço, vou me reconciliar com o banco”. Virgulino pensou: “Deve ser um casamento daqueles! – porque no Judiciário, se a gente ganhar alguma coisa, só os nossos netos verão a cor do dinheiro”. Enfim, chegou sua vez. Adentrou a sala da conciliação – melhor seria dizer, a vala dos condenados a abrir mão de seus direitos. O preposto do banco, retumbante, afirmou: “Neste processo não há conciliação”.
É louvável a bandeira do CNJ pela conciliação. Entrementes, muitos juízes – toda regra tem exceção, é claro – têm aproveitado esse “acordão" (que mais parece casamento coletivo dos hipossuficientes) para cumprirem metas, tombarem processos, como dizem. Aliás, tombar autos é uma frase muito eufemista, porque incendeia-se o direito da parte, ao tornar o átrio forense um balcão de negócios, muito ao gosto do sinédrio romano, onde, para agradar a Deus, os cambistas comercializavam as melhores oferendas.
Virgulino Contemporâneo pensa: “O comércio voltou e as oferendas constituem-se no direito da parte, que fica sem a parte dela, porque grande parte vai para as detentoras do capital, isso em nome dessa demoníaca conciliação”!
Passemos agora à segunda situação que prenunciei lá no início. O provecto Virgulino Contemporâneo, letrado, mas letárgico diante de tantas agruras que assolam os jurisdicionados, sempre em nome dessa voraz vontade vomitante de desfazer o volumoso número de processos, contou-me outra passagem, nada alentadora.
Relata-me ele que ficara sabendo de orelhada que uma certa Autoridade Suprema, nesse coletivo conciliatório, quando notava a ausência de advogados, era impiedoso com as partes: “Faça o acordo, senão julgo improcedente o seu pedido!”.
É demais! Essa conciliação, que nada tem de concessão mútua, prende-se a vera renúncia de direito. É tão desafinada, barganhosa, humilhante, que, quisera eu, pobre articulista, ter veio poético para cunhar frase lapidar. Mas apenas posso dizer: “Hitler está vivo, e nós, os jurisdicionados, ao que parece, não pertencemos à raça ariana”.
Concluo as estórias de Virgulino Contemporâneo evocando Rudolf Von Ihering que, em seu monumental “A luta pelo Direito”, tem ocasião de profeticamente vaticinar: “Todo aquele que, ao ver seu direito torpemente desprezado e pisoteado, não sente em jogo apenas o objeto desse direito, mas também sua própria pessoa, aquele que numa situação dessas não se sente impelido a afirmar a si mesmo e a seu bom direito, será um caso perdido, e não tenho o menor interesse em convencer um indivíduo desse tipo”.
Ó, Deus meu! Virgulino Contemporâneo, meu professor admirável, em quem deposito minhas derradeiras esperanças, trago para junto de mim a lição do velho Rui Barbosa, nosso Águia de Haia, que, em seu poema “Sinto vergonha de mim”, bradou:
Sinto vergonha de mim
por ter sido educador de parte deste povo,
por ter batalhado sempre pela justiça,
por compactuar com a honestidade,
por primar pela verdade
e por ver este povo já chamado varonil
enveredar pelo caminho da desonra.
Sinto vergonha de mim
por ter feito parte de uma era
que lutou pela democracia,
pela liberdade de ser
e ter que entregar aos meus filhos,
simples e abominavelmente,
a derrota das virtudes pelos vícios,
a ausência da sensatez
no julgamento da verdade,
a negligência com a família,
célula-Mater da sociedade,
a demasiada preocupação
com o 'eu' feliz a qualquer custo,
buscando a tal 'felicidade'
em caminhos eivados de desrespeito
para com o seu próximo.
Tenho vergonha de mim
pela passividade em ouvir,
sem despejar meu verbo,
a tantas desculpas ditadas
pelo orgulho e vaidade,
a tanta falta de humildade
para reconhecer um erro cometido,
a tantos 'floreios' para justificar
atos criminosos,
a tanta relutância
em esquecer a antiga posição
de sempre 'contestar',
voltar atrás
e mudar o futuro.
Tenho vergonha de mim
pois faço parte de um povo que não reconheço,
enveredando por caminhos
que não quero percorrer...
Tenho vergonha da minha impotência,
da minha falta de garra,
das minhas desilusões
e do meu cansaço.
Não tenho para onde ir
pois amo este meu chão,
vibro ao ouvir o meu Hino
e jamais usei a minha Bandeira
para enxugar o meu suor
ou enrolar o meu corpo
na pecaminosa manifestação de nacionalidade.
Ao lado da vergonha de mim,
tenho tanta pena de ti,
povo brasileiro!
'De tanto ver triunfar as nulidades,
de tanto ver prosperar a desonra,
de tanto ver crescer a injustiça,
de tanto ver agigantarem-se os poderes
nas mãos dos maus,
o homem chega a desanimar da virtude,
a rir-se da honra,
a ter vergonha de ser honesto'.
Peroro, cá comigo mesmo...
Bom CNJ, cuja gênese e florescimento se devera à batuta dos retos operadores do Direito, proteja o jurisdicionado brasileiro do assassinato dos seus direitos nas conciliações de faz de conta, ou melhor, dizendo, que aumentam os bolsões da miséria. E, bem por isso, crie cursos de formação de juízes conciliadores, afastando-os da velha pecha do bordão dos inquisidores. É o que rogo, também eu, na condição de jurista com compromisso social e que antevê um well fire state.
Por Emerson Odilon Sandim
Fonte: Blog do Gerivaldo Neiva
Excelente texto, e uma das suas partes que chama mais a atenção é sinão o poema do Rui Barbosa Sinto Vergonha de mim.
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