Ajustes necessários
No ano de 2014, o senador Vital do Rego apresentou um Substitutivo ao Projeto de Lei do Senado 517/2011, de autoria do senador Ricardo Ferraço, que regulamentava o uso da mediação judicial e extrajudicial, aproveitando, dito Substitutivo, textos de dois outros PLS, 405 e 434, ambos de 2013. Encaminhado à Câmara dos Deputados, foi convertido no Projeto de Lei 1769/2014, aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados, no dia 7 de abril passado.
Esse projeto, lamentavelmente, não eliminou os defeitos e nem abrigou os pontos positivos dos PLS 517, 405 e 434, frustrando as expectativas de especialistas em temas relativos aos métodos alternativos de soluções amigáveis de controvérsias e de tantos quantos aguardavam a elaboração de uma legislação convincente, que estabelecesse o verdadeiro marco legal da mediação, inaugurando uma nova ordem jurídica, eficaz e efetiva, no âmbito das resoluções alternativas de conflitos, particularmente, na esfera daquele método.
O aludido projeto desprezou, por completo, o instituto da convenção pré-estabelecida de mediação, que era prevista no Projeto de Lei 517/2011, e que se resumia na chamada cláusula compromissória de mediação, importante instrumento de ajuste que, constante da Lei de Arbitragem (Lei 9.307/96), tem se revelado de grande significância e utilidade no procedimento arbitral. Essa convenção teria acentuada vantagem sobre a cláusula compromissória de arbitragem, porquanto, sem efeito cogente ou vinculante, como ocorre como esta, proporcionaria às partes, se frustrada a mediação, socorrer-se dos outros meios não-adversariais de resolução de disputas, como da negociação e da conciliação, ou adversariais, como da arbitragem ou da via judicial.
Por outra parte, inspirado no PLS 405, tratando dos Mediadores Extrajudiciais, preceituou um único e extravagante artigo, assim redigido:
“Art. 9º - Poderá funcionar como mediador extrajudicial qualquer pessoa capaz, que tenha a confiança das partes e que se considere capacitada para fazer mediação, independentemente de integrar qualquer tipo de conselho, ou associação, ou nele inscrever-se”.
Tal regra, se aprovada, provocará a banalização das mediações privadas, por conta de que os serviços poderão ser conduzidos por qualquer pessoa, mesmo sem qualificação, capacitação, preparo ou experiência, mesmo não vinculada a nenhum organismo de controle e fiscalização de suas atividades profissionais, e mesmo sem dever de obediência a qualquer código de ética que protegeria as partes atendidas.
O dispositivo acima transcrito, sobre deslustrar a figura do mediador autônomo ou ligado a câmaras, centros ou entidades não estatais que se dedicam à mediação, ainda afronta preceitos já editados, de reconhecimento da influência da mediação extrajudicial, como o que se nota na Recomendação 50/2014, do Conselho Nacional de Justiça (artigo 1º, inciso IV) que aconselha aos tribunais de Justiça e tribunais regionais federais, o acompanhamento da “satisfação do jurisdicionado nos encaminhamentos de feitos a mediadores judiciais, nos termos da Resolução CNJ 125/2010, e a mediadores privados nos termos do artigo 139 do Código de Processo Civil”.
Com toda certeza, não se poderia conceber que magistrados de primeiro e segundo graus, encaminhassem processos à mediação extrajudicial conduzida por “qualquer pessoa”, sem conhecimento de técnicas de mediação, ao invés de fazê-lo a mediadores privados, registrados, capacitados, titulados com reciclagem e aperfeiçoamento permanentes, qualidades exigidas pela citada Resolução 125 (artigo 12), para aqueles com atuação na mediação judicial. É flagrante, então, a absurda discriminação entre mediadores extrajudiciais e judiciais, uma vez que, destes, se exige graduação em curso de ensino superior de instituição reconhecida pelo Ministério da Educação, experiência profissional de, pelo menos, dois anos e capacitação em escola ou entidade de formação de mediadores, reconhecida pelo Conselho Nacional de Justiça ou pela Escola Nacional de Mediação e Conciliação do Ministério da Justiça , ao passo que, daqueles, só se reclama o autorreconhecimento da capacidade de mediar.
Deve-se ter em mente que a mediação extrajudicial é a modalidade que irá concentrar o maior número de mediações, assim que o sistema for regulamentado, tendo em vista que, além de servir de filtro de milhões de questões que não necessitam de juiz e nem de sentença para serem resolvidas, irá recepcionar, também, as demandas judicializadas que serão encaminhadas pelos magistrados após selecionadas dentre aquelas consideradas “mediáveis”.
O CNJ já sentiu que os Centros ou Núcleos de Mediação dos Tribunais, estão congestionados e ficarão mais ainda sobrecarregados, sem condições de dar vazão aos pedidos que a eles aportam, dia a dia. Seguramente, não ignorou, também, que, por força da limitação de gastos com pessoal, imposta pela Lei de Responsabilidade Fiscal, as Cortes estão impossibilitadas de ampliar o quadro de servidores, conciliadores e mediadores judiciais, agravando, consideravelmente, a situação. Por isso tudo, se resolveu editar a Recomendação 50/2014, que constitui uma alternativa eficaz para o imprescindível alargamento da estrutura material e humana a ser colocada à disposição do Judiciário e daqueles que optarem pela mediação privada para a solução dos conflitos em que estejam envolvidos.
Seria muito mais racional que o projeto disciplinasse, numa Sessão única, a matéria relativa aos mediadores judiciais e extrajudicias, evitando a injustificável diferenciação entre eles, que bem poderia alimentar a imaginação da subsistência de categorias profissionais de primeira e segunda classes.
No círculo dos conhecedores do instituto e dos que, de há muito, administram a mediação, causou estupefação e enorme decepção a vedação de serem submetidas à mediação, controvérsias relacionadas à família, nas quais se discutem filiação, adoção, poder familiar, invalidade de matrimônio e interdição. Tal regra, se vingar a ideia, promoverá um expressivo esvaziamento da utilização da mediação. Com efeito, as estatísticas existentes sobre o funcionamento do sistema, apresentam números expressivos de atendimento em demandas familiares e isso se explica porque, inequivocadamente, a mediação é o método mais adequado para a restabelecimento das relações familiares desconstituídas ou ameaçadas de desconstituição. Com a mediação, se evita a interferência da Justiça na resolução do conflito, caminho comprovadamente ineficiente, visto que o desfecho das ações judiciais, invariavelmente, ocasiona, entre outras desvantagens, desgastes emocionais que, ao invés de pacificar os demandantes, promove o acirramento das divergências entre eles.
Sobre a exclusão das questões familiares, estabelecida no Projeto, juristas de grande vulto como Ada Pellegrini Grinover e Kazuo Watatabe, assim se pronunciaram em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, de 9 de maio de 2014:
“Injustificadamente, o par. 3º, I e II, do art. 3º do PL exclui do âmbito da mediação conflitos que versem sobre filiação, adoção, poder familiar, invalidade de matrimônio e interdição. Ora, é de conhecimento geral que os conflitos de família são os que mais se adequam e mais frequentemente são submetidos à solução conciliatória (sic). A ideia aparentemente encampada pelo PL sobre a indisponibilidade de certos direitos é equivocada e ultrapassada, pois mesmo em relação a direitos indisponíveis existe disponibilidade a respeito da modalidade, forma, prazos e valores no cumprimento de obrigações, passíveis de uma construção conjunta, e que são, assim, perfeitamente transacionáveis (como, v.g., na guarda dos filhos) e em que pode haver reconhecimento da pretensão (por exemplo, investigação de paternidade). O Projeto de CPC limita-se a afirmar que conciliação e mediação podem ser utilizadas em qualquer processo em que se admita a autocomposição (art.335, par.4º, II)”.
Os mencionados especialistas, em conjunto com o Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (Cebepej), logo após a aprovação do PL, emitiram Nota Técnica com severas críticas ao texto, enfatizando o seu “total descompasso com as regras aprovadas pela mesma Câmara de Deputados, por intermédio do Projeto de Código de Processo Civil”, e a desconsideração evidente à salutar Política Judiciária Nacional, de tratamento adequado de conflitos, instituída pela Resolução 125, do CNJ. Por isso e por outros acentuados defeitos conclama, a Nota, pela não aprovação do Projeto de Lei 7169/2014.
Anota-se, por fim, que causa espécie o silêncio e a passividade das muitas entidades e instituições voltadas à mediação e que estimulam a sua prática, como o Conima, o Foname, o IBDFAM, as Câmaras de Mediação da Fiesp/Ciesp, da CCBC e tantas outras existentes no país, todas indiferentes à tramitação do PL 7169 que, se aprovado como está, implicará em clamoroso retrocesso à institucionalização da mediação no país.
Bem que poderiam, com o peso e a força das suas vozes autorizadas, promover gestões junto ao Senado Federal, onde se encontra agora o questionado PL, para se oportunizar um amplo debate com os especialistas da matéria que, certamente, iriam revelar os equívocos cometidos na sua elaboração e provocar o seu imperioso conserto para que tenhamos uma legislação mais próxima possível da ideal, uma legislação específica que não contenha disposições conflitantes com regras já instituídas pelo Conselho Nacional de Justiça, prestigiado pelo novo Código de Processo Civil, recentemente aprovado, e com preceitos, igualmente, já fixados nesse estatuto processual.
Há que se alertar, por fim, que se aprovadas as normas do Projeto que estão em desacordo com as do futuro CPC, aquelas prevalecerão sobre estas, por força da incidência do “princípio da especialidade”, segundo o qual a lei especial (no caso, a que regula a mediação) derroga a lei geral (o Código de Processo Civil).
Por Rêmolo Letteriello, é desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul e Mediador.
Fonte: TJPB
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