Contrariando o rito
Decisões obtidas pelo G1 mostram que juízes do país
têm pulado a audiência prévia de conciliação nos processos. A etapa
passou a ser obrigatória pelo novo Código de Processo Civil com o
objetivo de desafogar o Judiciário, criando uma fase em que as próprias
partes podem tentar um acordo antes que a demanda vire um processo.
O G1 teve acesso a despachos de vários estados, entre
eles São Paulo, Paraná, Espírito Santo e Santa Catarina, e do Distrito
Federal. Neles, os juízes afirmam que a audiência pode ser pulada por
motivos como:
- 'razoável duração do processo';
- falta de conciliadores;
- falta de estrutura;
- conciliar aumenta a demora;
- a decisão pode ser inconstitucional;
- o autor não manifestou vontade de conciliar;
- conciliação pode ser tentada em outro momento.
Casos
Em um deles, uma juíza afirma que a audiência pode ser dispensada, pois
compete ao juiz “velar pela duração razoável do processo, o que
certamente não ocorreria se os autos fossem encaminhados ao Cejusc para
agendamento de audiência”.
Decisão
de junho da 4ª Vara Cível Central do Fórum João Mendes, na capital
paulista, nega a audiência de conciliação alegando possível demora
(Reprodução)
Os Cejuscs (Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania)
foram criados antes do CPC e passaram a ser uma incumbência dos
tribunais estaduais, por determinação do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), em 2010. Com o novo código, que entrou em vigor em março (entenda no vídeo abaixo), a conciliação passa a ser feita preferencialmente nesses locais e é obrigatória em todos os processos em que é possível.
Em outra decisão que dispensou a audiência, um juiz paulista argumenta
que a aplicação do novo CPC pode trazer “resultados inconstitucionais”,
por isso, “a audiência de conciliação ou mediação deve ser designada
apenas nas hipóteses em que, segundo a legislação, não seja possível o
julgamento do mérito [final]”. Não existe essa previsão no novo código.
Em outro processo, de Itaquaquecetuba, interior paulista, o juiz deixou
de designar a audiência “diante da falta de estrutura do Cejusc”,
argumentando que o autor da ação não manifestou vontade expressa de
conciliar.
Pelo novo CPC, a audiência acontece mesmo se o autor não manifestar
vontade. Ela não se realiza só se as duas partes disserem ser contra.
Decisão
de maio da Comarca de Itaquaquecetuba, interior de SP, alega falta de
centros de conciliação para realizar audiências obrigatórias pela nova
lei (Reprodução)
Em
decisão da 6ª Vara Cível de Ribeirão Preto, interior de SP, juíza
afirma que o número de acordos nas audiências é "insignificante". (Reprodução)
O G1 também teve acesso a duas decisões de Curitiba,
em que juízes alegaram “ausência de conciliador ou de mediador” na Vara e
falta de estrutura do Cejusc e também não designaram a audiência de
conciliação ou mediação.
Levantamento feito pela Associação de Advogados de São Paulo (AASP)
traz relatos de advogados que incluíram nos pedidos a designação da
audiência de conciliação, que acabou não realizada. Há também o caso em
que o próprio juiz conduziu a audiência, que deveria ser feita sem
intervenção do Judiciário.
Decisões
argumentam ausência de conciliador ou de mediador na 18ª Vara Cível de
Curitiba. Procurado, TJ-PR diz que estado possui mais Cejuscs por
habitante do que São Paulo (Reprodução)
“Essa é uma grande frustração da nova lei”, afirma o advogado Ricardo
Aprigliano, conselheiro da AASP. “As audiências não estão sendo
marcadas. O autor entra com ação, o juiz diz que, em virtude da falta de
conciliadores, do excesso de processos, da falta de estrutura física, a
audiência de conciliação não vai ser marcada. Está pulando uma etapa”,
diz.
Mas a questão ainda gera polêmica entre especialistas. Para o advogado
Luiz Antonio Ferrari Neto, ainda “é cedo para falar se essa alteração já
vai trazer bons frutos”. “Para todas as demandas, não sei se vai trazer
resultados esperados. Veio a lei e não veio o aparato para dar suporte à
lei e acredito que não virá tão cedo, ainda mais com a crise”,
considera.
Ele defende que o juiz não marque a audiência caso o autor não tenha
interesse e o réu não se manifestar. “A probabilidade de acordo nesse
caso é pequena. Aquele tempo de demora da audiência beneficiou o réu. É
complicado. Criar a obrigatoriedade não sei se vai mudar a cultura. Vai
acabar custando mais caro esse processo”, conclui.
Conciliação x mediação
As duas são tentativas de acordo entre as partes. Enquanto o
conciliador participa e oferece soluções, o mediador é neutro e só
acompanha as próprias partes resolverem o conflito. Nos dois casos, não
há a presença do juiz, mas o acordo final deve ser cumprido.
'Facilitador'
Rubens Cusnir, diretor de uma clínica de diagnóstico por imagem,
esperava a audiência de conciliação em um processo por responsabilidade
civil, mas o juiz não designou a data.
No processo, a pessoa alegou ter uma doença que não apareceu em um
exame feito pela clínica. Em um segundo exame, descobriu-se que se
tratava de uma doença congênita (que ocorre no nascimento ou ao nascer).
Para ele, a conciliação “seria um facilitador”, já que o acordo podia
evitar que o caso demorasse de dois até oito anos no Judiciário, que é o
tempo médio de uma causa como essa. “A chance de fazer acordo é
relativamente pequena, mas, dependendo da situação, existe a chance. Eu
vejo uma vantagem nisso”, afirma. Segundo seu advogado, se houvesse a
mediação diante de uma pessoa habilitada, a questão podia ter sido
resolvida sem ir ao tribunal.
Acordo na hora
O G1 acompanhou uma audiência de conciliação baseada
no novo código no Fórum João Mendes, no centro da capital paulista, que
terminou em acordo. A audiência ocorreu na própria sala do juiz, que
aguardou as partes conversarem, com ajuda dos conciliadores, sem
intervir. Em três horas, os pais de uma criança de um ano e sete meses
resolveram uma briga judicial que poderia se estender por anos e já
durava pelo menos um sem que o pai pudesse ver a filha. Agora, as
visitas estão agendadas.
Walter Furlanete, de 69 anos, é um dos mediadores que atuam no fórum e
diz ser "gratificante" o trabalho voluntário. "Nosso objetivo é fazer as
partes se pacificarem, para que elas cumpram o acordo por vontade
própria, e não por imposição do magistrado", afirma. "Teve o caso de um
casal que, em três horas, resolvemos 5 processos. Eles até voltaram a
tomar café juntos, que era um hábito do casal", conta.
Segundo ele, ainda há preconceito por parte de alguns juízes, mas isso
vem mudando a partir do conhecimento de como funciona uma audiência. "No
primeiro momento, eles resistem. Já ouvi um: 'Não quero saber desta
porcaria'. Acham que vão perder o tempo deles, porque é uma cultura que
se ensina desde a faculdade. Mas nós vamos com jeito e, quando eles veem
as partes se conciliando, acabam concluindo que é uma ótima saída",
diz.
Posição do CNJ
André Gomma de Azevedo, juiz auxiliar da Presidência do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) e membro do Comitê Gestor da Conciliação,
afirma que ficou surpreso por decisões ocorrerem em São Paulo e no
Paraná. “São os estados com mais Cejuscs”, diz. Segundo ele, o que
ocorre é exatamente o contrário: muitos conciliadores e mediadores têm
reclamado da falta de encaminhamento dos casos pelos magistrados.
Para o juiz, implementar o novo CPC depende de uma cultura de solução
de conflitos diferente. “Existe um cadastro nacional que os magistrados
podem buscar, tem centenas de mediadores. Inclusive, São Paulo é o que
mais tem”, afirma. “Se o juiz está com dúvida, ele deve procurar o
Nupemec, que é o núcleo de conciliação do tribunal do seu estado”,
orienta.
Já sobre se os magistrados estão descumprindo o código, Azevedo afirma
que essa é uma questão que deve ser enfrentada pelo CNJ nos próximos
meses. “Na minha opinião, é possível [não marcar a audiência]
excepcionalmente, mas só se não cabe o acordo no caso concreto. Quando
nada impede, por que jogar fora essa primeira oportunidade de
conciliar?”
O que diz o novo CPC
Segundo o art.334, a audiência de conciliação ou mediação é a regra e deve ser marcada pelo juiz.
Só não haverá audiência se:
- as duas partes forem expressamente contra;
- se o pedido do autor pode ser negado de início;
- o tipo de demanda não admite acordo, cabendo apenas ao Judiciário decidir sobre ela
Para Azevedo, “pode haver uma preocupação com o andamento correto do
procedimento por parte do juiz”. “Como tem um terceiro que é um auxiliar
da Justiça, alguns têm desconforto de quem vai ser o ‘rosto’ do
Judiciário no seu processo. Mas acaba sendo um zelo um pouco mais que
excessivo”, completa.
O que dizem os tribunais
Ricardo Pereira Júnior, juiz coordenador do Cejusc Central e membro do
Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos do
Tribunal de Justiça de São Paulo, reconhece que alguns centros não
dispõem de estrutura física para atendimento da demanda, mas diz que
essa “não é a regra”. Segundo ele, atualmente há 173 centros no estado e
mais 25 postos avançados. O central possui mais de 600 conciliadores e
mediadores cadastrados. Em todo o estado, são quase 4 mil.
Pereira diz também que foram cadastradas 20 câmaras privadas que podem
atender os juízes e que muitos deles estão cedendo o próprio espaço na
Vara para a realização das audiências prévias. Afirma ainda que o Fórum
João Mendes, o maior da capital, deve destinar quase um andar para a
atividade e que a instalação está em andamento.
Em Itaquaquecetuba, cidade onde uma das decisões foi publicada,
Rosângela Garcia do Nascimento, responsável pelo Cejusc, afirma que
desconhece o despacho, mas que o centro vem recebendo entre 45 a 50
processos por semana e atende totalmente a demanda. “Estamos atendendo,
sim. Os juízes estão mandando. Temos 25 conciliadores há três anos e
meio aqui. E podemos aumentar conforme a demanda”, afirma. Segundo ela,
em breve o Cejusc será transferido, inclusive, para um prédio maior.
O Tribunal de Justiça do Parana afirma, no que se refere às sentenças
dos juízes, que não cabe ao tribunal influenciar as decisões. Diz, no
entanto, que existe uma recomendação de se realizar uma tentativa de
acordo pré-processual.
Segundo o juiz Fábio Ribeiro Brandão, auxiliar da 2ª Vice-Presidência
do TJ-PR, as decisões "desde que devidamente fundamentadas, encontram-se
na seara da independência funcional de cada juiz (princípio do livre
convencimento motivado)". "Portanto, não há falar em correção ou
incorreção, até o presente momento, na interpretação pela
obrigatoriedade ou não da realização das citadas audiências, vez que
quem sedimentará o entendimento será o próprio Poder Judiciário, no
âmbito de sua jurisdição, por seus órgãos julgadores superiores."
Quem pode ser mediador?
Qualquer pessoa formada há 2 anos no ensino superior, capacitada em
curso especializado em instituições reconhecidas pela Escola Nacional de
Mediação e Conciliação do Ministério da Justiça ou pelo CNJ e
cadastrada no tribunal onde vai atuar
Segundo o juiz, o Paraná conta com 33 Cejuscs instalados e mais 19
extensões em universidades/faculdades (total de 52 unidades de
atendimento) e prevê instalar nas 45 comarcas de entrância intermediária
e nas 87 de entrância inicial até o final de 2016.
Enquanto isso, o TJ lançou a campanha "Aqui tem Cejusc" e há
recomendação aos magistrados que "utilizem força de trabalho de seus
próprios gabinetes ou secretarias, que podem se submeter às capacitações
ofertadas pelo TJ-PR (já foram capacitados mais de 500 servidores no
estado) para a realização das audiências/sessões".
Fonte: G1