“A arbitragem auxilia a criar a
cultura de que você é capaz de resolver problemas sem precisar do beneplácito
do Estado, envolvendo matérias que você pode submeter não só à arbitragem, mas
à conciliação e à mediação.” A análise é da advogada Selma Lemes, membro da
Comissão Relatora da Lei de Arbitragem, que completa 20 anos no mês de
setembro.
Em 1991, ao lado de outros
entusiastas da prática arbitral, começou a desenhar o que viria a ser o texto adotado
em 1996. Mestre e doutora pela Universidade de São Paulo (USP), ela faz parte
da Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional (CCI),
em Paris, e lidera a pesquisa Arbitragem em Números e Valores. Na última edição
do levantamento, realizado por ela há seis anos, Selma constatou um crescimento
de 73% no número de conflitos solucionados por meio da arbitragem nos últimos
seis anos.
Em entrevista ao JOTA, a
especialista fez um balanço sobre as duas décadas de vigência da lei nº 9307/96
e sobre o estado atual da arbitragem no Brasil. “Acredito que a gente tenha
pavimentado o caminho para que as práticas extrajudiciais de conflitos
entrassem na cultura jurídica brasileira. Hoje, estamos colhendo frutos.”
Confira a entrevista:
Na sua
pesquisa, vemos que as arbitragens cresceram 73% em seis anos. A que você
atribui esse aumento?
Acredito que sejam variados os
motivos. O primeiro é o tempo de tramitação de uma demanda judicial e a pletora
de recursos previstos nas leis processuais, que faz com que as pessoas tenham
uma nítida noção do que é a eternidade. O segundo são as complexidades técnicas
de matérias dispostas em contratos que envolvem telecomunicações, obras de
infraestrutura, de planta industrial, contratos públicos, contratos conexos e
relacionais, em que de um contrato guarda-chuva deriva outros a ele vinculados,
contratos de franquia, de agência e distribuição etc. O processo judicial é
público e a arbitragem é sigilosa. O que for tratado na arbitragem fica
limitado às partes. Observo que houve maior compreensão das empresas no uso da
arbitragem, entenderam a vantagem. Se comparadas ao judiciário, o tempo é menor
para resolver demandas contratuais e retirar do balanço contábil esse
contingenciamento. Então, a opção pela arbitragem é jurídica, mas também
econômica. O veículo motor da atividade empresarial é o contrato e, hoje, temos
setores que só fazem contratos com cláusulas compromissórias.
Sabemos
que empresas grandes e negócios muito valiosos recorrem à arbitragem. Temos
números para mostrar esse recorte?
Sim. De acordo com a pesquisa
vemos que, no ano de 2010, os valores envolvidos em arbitragem nas seis Câmaras
pesquisadas eram de R$2,8 bilhões e em 2015 atingiram R$10,7 bilhões. Afere-se
que os valores envolvidos em arbitragens quadruplicaram (2010 em comparação a
2015). Nesse período, o total de valores envolvidos nas seis câmaras indicadas
representaram mais de R$38 bilhões (R$ 38.305.605.119,86). Já comparando os
valores envolvidos em arbitragens entre 2014 (R$ 11.735.614.701,92) e 2015
(R$10.726.923.177,31), verifica-se que houve em 2015 uma ligeira alteração de
quase R$1 bilhão a menos.
Qual é o impacto da crise
econômica no mercado de arbitragem?
Como a arbitragem é toda custeada
pelas partes, às vezes você tem arbitragem de valores altos, mas as empresas
estão passando por dificuldade. Um exemplo patente são as empresas de
construção civil, que estão envolvidas na Lava Jato, e tem demanda, tem muita
demanda de arbitragem envolvendo essas empresas. E aí, em decorrência dos
custos, nós nos vemos diante de um elemento novo, que se trata, que vem a ser,
em decorrência dos custos da arbitragem, um terceiro que vem financiar a
arbitragem. É algo que é bem praticado no exterior, algo chamado thrid party
funding, em que uma financeira, uma seguradora, financia o procedimento
arbitral, analisa o caso, verifica se aquele caso tem chance de êxito e se
propõe a financiar aquela arbitragem e depois ter uma participação no resultado
da arbitragem. Então é um elemento novo. Geralmente são aquelas questões
envolvendo arbitragens de valores elevados (geralmente superiores a US$ 1
milhão).
Qual é a
situação atual da arbitragem no Brasil?
A lei nº 9307/96, Lei de
Arbitragem, está completando vinte anos e, em 2015, sofreu suas primeiras alterações.
Foram mudanças muito pontuais, feitas por meio da Lei 13.129 de maio de 2015,
que vieram referendar o que a jurisprudência já estava decidindo. Esses ajustes
são ratificadores, pois confirmam o entendimento jurisprudencial alcançado ao
longo desses anos de vigência, mas também inovadores, já que introduzem novas
questões.
Um exemplo é a introdução da
previsão de interrupção da prescrição, a partir da data do requerimento de
instituição da arbitragem. Essa previsão dá segurança jurídica à questão pois,
ao estabelecer que os árbitros poderão proferir sentenças parciais, a lei nº
13.129 referenda algo já praticado no procedimento arbitral em decorrência dos
princípios da celeridade, eficácia e economicidade.
O que a gente nota nesses 20 anos
é o seguinte: em 1996, quando a lei surgiu, estava tudo muito incipiente,
simplesmente porque a arbitragem ainda não era muito difundida no país. A
partir de então, o caminho foi aberto. Hoje, as inovações mais importantes nela
reguladas já foram referendadas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior
Tribunal de Justiça, tanto as disposições que têm repercussões internas como as
internacionais.
Então,
houve uma boa aceitação da arbitragem?
A arbitragem é uma área para
solucionar conflitos que tem uma vocação para questões complexas, empresariais
e comerciais. A arbitragem não se presta para tudo: é preciso ver que é uma lei
processual. Onde a arbitragem conta com um bom desenvolvimento, o que podemos
chamar de uma revolução silenciosa é no setor empresarial como um todo,
engenharia, energia, área de seguros, questões societárias.
Hoje as questões referentes ao
direito societário, conflitos entre sócios, isso tudo está sendo discutido na
arbitragem a ponto de haver uma demanda de que a gente precisaria ter publicado
essas decisões arbitrais, pois nós estamos diminuindo o número de questões
societárias submetidas ao judiciário, e nós não temos jurisprudência.
Como
lidar com essa demanda por jurisprudência?
Para você ter uma jurisprudência,
é preciso ter publicação de decisões. Na área da arbitragem, não que isso
esteja na lei, isso está nos regulamentos, pode-se dizer que o sigilo, a
confidencialidade, sejam também um atrativo para a arbitragem. Por isso, não se
publicam as decisões. Agora, isso não impediria a publicação de trechos das
decisões, como é uma prática, por exemplo, da Corte Internacional de Arbitragem
da Câmara de Comércio Internacional, que funciona em Paris, que tem comitês no
mundo todo, inclusive aqui no Brasil. E isso é muito bom, mas há que se fazer uma
diferenciação: isso não constitui uma vinculação ao precedente. Ou seja, as
decisões arbitrais não fazem jurisprudência. Todavia, são um referencial
importante sobre as tendências, sobre qual está sendo a interpretação em
determinadas áreas. As sentenças arbitrais geralmente são muito bem elaboradas,
decisões em que os árbitros trabalharam muito bem os fatos do direito. A
publicação de trechos das decisões é importante para formar referenciais
importantes.
Como essa
demanda por publicidade das decisões está sendo encaminhada?
O que a gente nota é uma demanda
para a publicação, uma divulgação maior das decisões arbitrais. As câmaras – e
aqui estou falando das câmaras de Rio, São Paulo e Minas, que possuem as
câmaras mais atuantes, como a câmara da Fiesp – trazem em seus regulamentos a
observação de que a câmara poderá publicar trechos da sentença para se formar
uma jurisprudência arbitral. Só que até agora nós não temos isso, pois
geralmente as câmaras perguntam às partes se poderiam fazer isso e quando perguntam
as partes preferem se manter mais reservadas. Não obstante, a divulgação desses
trechos suprimiria a identidade das partes e isso está claro no regulamento. É
preciso ter uma fonte de pesquisa, de como se interpreta o direito, das partes
cientificas da decisão, que trabalham o direito, os fatos, e seria muito
importante para ver como essas questões estão sendo trabalhadas. Já se tem um
movimento nas câmaras, pelo que noto.
No caso das arbitragens que
tenham como parte o Poder Público, com a recente reforma da Lei de Arbitragem,
a publicidade passou a ser exigida nos procedimentos em que a Administração
Pública faça parte. De acordo com o artigo 2º, parágrafo 3º da lei, é preciso
dar publicidade necessária, com o intuito de velar pela transparência. E aí é o
ente público que fica incumbido dessa tarefa, não as Câmaras de Arbitragem.
Entretanto, a divulgação deve respeitar segredos protegidos por lei,
comerciais, matérias protegidas por direito da propriedade intelectual.
Como
ficam as arbitragens com a administração pública?
Na pesquisa efetuada, no ano de
2015, em cinco câmaras de arbitragem houve 20 casos de arbitragens com a
administração pública, e quando eu falo em administração pública falo na
administração pública direta e indireta, em todas as esferas do governo. São 4%
do número das arbitragens. Mas então há um desenvolvimento grande nessas áreas.
Esse percentual provavelmente tenderá a subir nos próximos anos, haja vista a
previsão expressa na Lei de Arbitragem da arbitragem com a Administração Pública
nos contratos de Parceria Público-Privada (PPP), concessões em geral e a recém
instituída Parceria Pública de Investimento – PPI (MP 727 de 12.05.2016).
Quais as
semelhanças e as diferenças das arbitragens públicas para as privadas?
A única diferença é a questão da
flexibilidade do sigilo e um outro ponto, que não vem a ser uma diferença, mas
causa uma certa dificuldade, são as antecipações dos custos das despesas.
Quando temos uma sociedade de economia mista, empresas públicas, fundações,
quando lidamos com estado direto, uma empresa estadual, uma empresa vinculada a
um ministério, até mesmo a própria secretaria de obras, existe uma certa
dificuldade em ter o dinheiro para antecipar a arbitragem. Então, às vezes a
arbitragem demora um pouco mais, pois é preciso emitir uma nota de empenho,
fazer recolhimentos antecipados. Esse é um aspecto.
Muitas
decisões arbitrais são questionadas na Justiça?
Não. Evidentemente que há algumas
que são questionadas no judiciário, mas a maioria das sentenças são cumpridas.
Esse questionamento, por vezes, pode se tratar de uma estratégia para
procrastinar a execução, um expediente que é usado para isso. A grande maioria
das decisões são cumpridas, e esse é até um aspecto ontológico da arbitragem,
já que as partes escolhem seus árbitros. Então, existe um compromisso com a
decisão. Quando a sentença é levada a uma ação de anulação, isso se dá apenas
nos termos do artigo 32 da Lei de Arbitragem, que prevê os motivos para a
anulação.
Por Mariana Muniz
Fonte: www.adambrasil.com
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