segunda-feira, 29 de outubro de 2012

TCU limita a arbitragem e dá um passo e meio para trás

Contratos de concessão
O Brasil já é mundialmente conhecido na comunidade internacional por seus imbróglios em matéria regulatória, o que vem impactando constante e negativamente na segurança jurídica — e, mais grave, no seu índice de competitividade global em matéria de fornecimento de infraestrutura pública. A “bola da vez” nesse processo de involução coube ao Tribunal de Contas da União, contribuindo ainda mais com o “um passo e meio para trás” exposto no título. Enquanto comemoramos alguns sucessos em práticas regulatórias por parte de alguns poderes concedentes e as respectivas agências reguladoras, outros órgãos imprimem um sentimento de retrocesso que não pode passar despercebido pela comunidade jurídica.

No Processo TC 003.499/2011-1, no qual há o acompanhamento do processo de outorga para concessão, recuperação, operação, manutenção, conservação, implantação de melhorias e ampliação da capacidade do trecho da rodovia BR-101/ES/BA, houve uma recente decisão que merece destaque pela sua idiossincrasia: o Acórdão TCU Plenário 2.573/2012, de 26 de setembro de 2012. Entre outras medidas ventiladas na decisão, o TCU determinou à Agência Nacional de Transportes Terrestres, responsável pela regulação da sobredita concessão, que adote medidas no contrato de concessão a fim de não aplicar a arbitragem para resolução de controvérsias pertinentes a questões econômico-financeiras da concessão.

É importante mencionar que a legislação específica para concessões de serviços públicos — e, inclusive, de serviços de exploração rodoviária — prevê expressamente a possibilidade de utilização de mecanismos alternativos para a solução de controvérsias. De fato, desde a Lei de criação da ANTT (Lei10.233/01, art. 35, XVI), em 2001, essa hipótese já era vislumbrada, sendo consagrada pela Lei das PPPs e por alterações legislativas na Lei 8.987/95 em 2005[1] — isso sem contar com a própria Lei 9.307/96, que, embora não assente na doutrina, já se podia extrair a possibilidade de aplicação desses mecanismos dentro da Administração Pública. Por alguma razão específica, a Agência não vinha, efetivamente, incluindo a possibilidade de uso desses mecanismos nas minutas dos novos contratos, em que pese a farta autorização legislativa existente — em alguns casos considerando como cláusula essencial do contrato, como na Lei de criação da ANTT. Diante disso, era uma lei eficaz, mas praticamente sem efetividade no ordenamento jurídico pela inércia da Administração Pública.

In verbis, o relatório da 1ª Secretaria de Fiscalização de Desestatização e Regulação — SEFID-1 do TCU, o qual embasou a referida decisão, sustenta que “o item 35.1.1 da Minuta de Contrato do Edital 001/2011 BR 101/ES/BA pretende garantir a arbitragem como solução de toda e qualquer controvérsia e/ou disputa entre as partes oriunda ou relacionada ao contrato de concessão”, e que, por conseguinte, as questões de equilíbrio econômico-financeiro estariam dentro desse rol de controvérsias. No entender da Corte, isso seria contrário ao ordenamento jurídico, sobretudo porquanto parcela da Corte tem entendimento de que a arbitragem não pode ser aplicada de forma “indiscriminada” em contratos envolvendo a prestação de serviço público (Acórdão 584/2003 2ª Câmara e Acórdão 537/2006-2ª Câmara). A decisão ainda expõe como louvável o exemplo de uma cláusula existente no contrato de concessão do Aeroporto de São Gonçalo do Amarante que restringe a aplicabilidade da arbitragem a “indenizações eventualmente devidas quando da extinção do presente contrato, inclusive quanto aos bens revertidos”.

Em primeiro lugar, todo o arcabouço legislativo mencionado, em nenhum momento, restringe a aplicação dos mecanismos negociais a questões específicas segundo a visão da Corte de que isso seria imprescindível para a manutenção da cláusula contratual. Não faria o menor sentido que a lei assim o fizesse, considerando a miríade de situações conflituosas pelas quais poder concedente, agência e concessionária podem experimentar ao longo da execução contratual. Sabemos que uma das primeiras lições em Direito Administrativo está relacionada ao princípio da legalidade e a sua norma proibitiva implícita à Administração Pública, segundo a qual ela deve agir de acordo com a lei e dentro de seus limites.

Nesse caso, tendo em vista o arcabouço legal exposto — o qual, até o momento, está vigente no ordenamento jurídico brasileiro e, portanto, presume-se constitucional —, não faz sentido o TCUdelimitar o seu âmbito de aplicação, tolhendo, até mesmo, a própria competência regulatória da Agência, que é oriunda da própria Constituição Federal. É uma afronta à discricionariedade administrativa, extremamente necessária em matéria de políticas públicas relacionadas a infraestruturas.

Se no caso de São Gonçalo do Amarante houve a restrição à sua aplicabilidade é porque, em termos regulatórios, o poder concedente entendeu por bem restringi-la — decisão esta, repise-se, que cabe ao Poder Executivo respectivo, e não ao Tribunal de Contas. Evidentemente, se no caso da concessão da BR-101/ES/BA o poder concedente considerou que a arbitragem deveria ter um conteúdo mais amplo, é porque se estaria, dessa forma, atingindo de forma mais satisfatória o interesse público. Pressupor o contrário é uma violação frontal à competência discricionária do Poder Executivo na formulação e execução de suas atividades típicas insculpidas constitucionalmente. E a justificativa de que a cláusula violaria o artigo 24, VII, da Lei 10.233/01, o qual inscreve como atribuição exclusiva da ANTT proceder à revisão e reajuste de tarifas, não faz o menor sentido.

Por exemplo, em havendo controvérsias com relação ao reajuste de tarifas, há sempre a possibilidade de que o Poder Judiciário garanta a execução da cláusula contratual, a qual é automática — mas cuja aplicação imediata pode, por vezes, ser obstada pela agência. É nesse sentido que a arbitragem poderia ser aplicada, sem qualquer prejuízo à própria equação econômico-financeira já pactuada inicialmente. Dizer que a arbitragem não pode ser aplicada nessas questões é o mesmo que desconsiderar a garantia constitucional do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos (art. 37, XXI, CF), a qual pode ser salvaguardada tanto pelo Poder Judiciário como por uma corte arbitral ou qualquer outro tipo de órgão ou corpo técnico.

Comparar sistemas semelhantes pode nos ajudar a entender melhor a incongruência da decisão do TCU ora analisada. No Chile, a Lei de Concessões (Decreto MOP 900/96) sempre permitiu o uso de mecanismos alternativos de solução de controvérsias. O sistema passou por uma reformulação em 2010 (Ley 20.410) e o artigo 22 é expresso no sentido de que “las controversias que se susciten entre el concesionario y los contratistas o entre éstos y sus subcontratistas, con motivo de la aplicación, interpretación o ejecución de los contratos celebrados entre ellos con ocasión de la ejecución de la obra, podrán ser conocidas y resueltas por árbitros que determinarán sus normas de procedimiento, garantizando siempre un justo y racional procedimiento o debido proceso, y pronunciarán sentencia definitiva con aplicación estricta de la ley”. Ressalte-se que não há a afastabilidade do Poder Judiciário no presente caso, tendo em conta que “la recomendación del Panel no obstará a la facultad del concesionario para accionar posteriormente ante la Comisión Arbitral o la Corte de Apelaciones de Santiago, aunque la controversia recaiga sobre los mismos hechos”.

Sem embargo, a previsão legal permissiva não demonstra qualquer dessemelhança com relação ao ordenamento brasileiro — salvo, evidentemente, no que concerne ao procedimento dos paneles técnicos e de instauração das comisiones arbitrales, o qual não nos cabe, nesse momento, destrinchar. O que é relevante destacar é que a previsão legal expressa, em si, não significa muito se não houver uma cultura pela utilização de mecanismos negociais dentro da Administração Pública — o que é bem presente no Chile e quase que ausente no Brasil. Isso acarreta um ambiente regulatório muito mais sólido, com decisões mais confiáveis acerca de assuntos eminentemente financeiros, técnicos e econômicos, os quais requerem diversos especialistas na área debruçando-se sobre o caso.

Tal ganho de eficiência fatalmente não será apresentado pelo Poder Judiciário: aqui, frise-se, a questão não é a eficiência no julgamento do caso (v. g., se um ou outro é mais célere, por exemplo, fato esse que não nos interessa), mas sim a eficiência na especialização da matéria. Em que pese o alto grau de preparo dos magistrados brasileiros, não há cortes judiciais especializadas em feitos relacionados a serviços públicos de infraestrutura — e tampouco qualquer previsão ou necessidade de concebê-las dentro da estrutura Judiciária brasileira. É natural, portanto, que um corpo especializado, quer por meio do Poder Judiciário, quer por um corpo extrajudicial, será mais eficiente. Tal ganho de eficiência pode, muito bem, advir de uma comissão arbitral altamente especializada em serviços de exploração rodoviária ou aeroportuária, consoante os casos supramencionados. Aqui o exemplo cingiu-se à arbitragem, por conta da decisão do TCU em comento; mas nada impediria a utilização de outros mecanismos, como os dispute boards, por exemplo[2].

Em suma, o fato é que a cultura de utilizar outros mecanismos que não a via judicial deve começar de alguma forma nos serviços públicos de infraestrutura no Brasil, como rodovias, ferrovias, aeroportos, saneamento básico ou telecomunicações. A inserção da arbitragem em um contrato de concessão de rodovia por parte da ANTT e do poder concedente respectivo foi um grande passo à frente em matéria regulatória de transportes terrestres. A decisão do TCU, por outro lado, representou um passo e meio para trás. Para que andemos — e sem hesitar — dois passos à frente, esperamos que esse comportamento não seja replicado nas minutas de contrato das novas concessões de serviços públicos e que, deveras, essas possibilidades sejam expandidas para todos os mecanismos possíveis de resolução de controvérsias. Oxalá que a insistência dessa orientação por parte da Administração Pública possa sensibilizar a Corte de Contas da necessidade de uma evolução no ambiente regulatório brasileiro, qual passa por um mecanismo realmente eficiente na solução dos conflitos inerentes ao contrato.

[1] Neste ponto, remeto o leitor a um artigo que recentemente escrevi com o árbitro chileno Gonzalo Biggs (“Arbitraje en Chile y Brasil”) na obra “Arbitragem: temas contemporâneos”, coordenada por Selma Ferreira Lemes e Inez Balbino e editado pela Editora Quartier Latin
 
[2] Sobre o tema, também remeto o leitor a um artigo, ainda no prelo, em coautoria com Marcos dos Santos Lino, intitulado “O Dispute Board nos contratos de concessão de serviços públicos”.

Fonte: ConJur

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