Fazer valer
Em duas recentes oportunidades, participei de eventos realizados em Curitiba nos quais fiquei encarregado de tratar do direito probatório no processo arbitral. As observações que seguem – breves e despretensiosas – correspondem parcialmente a ideias então expostas e ao conteúdo do quanto lá foi proveitosamente debatido com ilustres Colegas.
Primeiro, convém determinar se – e em que medida – a disciplina da prova deve ser vista como “especial”, diante do que seria a disciplina do processo “comum”. Sobre isso, não há dúvida de que a arbitragem tem relevantes notas de especialidade, que afastam o respectivo processo daquele que é instrumento da jurisdição estatal. Basta dizer que se trata de instituto fundado na vontade das partes, a gerar decisão cujo mérito não pode ser revisto pelo Poder Judiciário.
Contudo, é preciso cautela com certa tendência – acadêmica e profissional – de apartar, de forma mais contundente, a arbitragem do processo empregado pelo Estado. Com efeito, não é possível isolar “arbitralistas” e “processualistas”, como se o exercício do poder conferido ao árbitro não estivesse sujeito ao modelo processual “geral”. A existência de um microssistema diferenciado não exclui necessário e proveitoso confronto com o “macrossistema”, precisamente para que se determine quais os limites da especialidade e até onde ela derroga as regras gerais.
No processo da arbitragem, tanto quanto naquele perante o Judiciário, prevalece o devido processo legal. Em ambos, o direito à prova descende das garantias da ação e da defesa, as quais não podem ser afastadas pela vontade das partes. Não há qualquer nota genérica de superioridade da prova no processo arbitral no confronto com o processo estatal “geral”; ou, quando menos, daquilo que desse processo pode ser extraído pelo juiz. Qualquer tentativa de apresentar o processo arbitral como mais aperfeiçoado nessa matéria não encontra respaldo jurídico. Aliás, eventual contraposição entre prova estatal e arbitral tende a ser contraproducente e, em alguma medida, contradiz a tese (correta) segundo a qual a arbitragem tem natureza jurisdicional.
Não convencem, a respeito, argumentos sugestivos de maior agilidade ou flexibilidade na colheita da prova pelo árbitro do que pelo juiz. A racionalidade que mecanismos ou expedientes empregados na arbitragem possa existir deve ser empregada também no processo estatal.
Assim, (i) o mecanismo da oitiva das testemunhas primeira e diretamente pelos advogados das partes é disso um exemplo – que, aliás, só reforça mecanismo que preserva a imparcialidade, de que abaixo se trata. Isso já ocorre no processo penal e, como juiz eleitoral, presidi audiência na qual o mecanismo foi empregado com sucesso, mesmo em controvérsia não penal; (ii) o expediente da inversão na ordem da prova e na edição de “sentenças parciais” também não convence: tal inversão é plenamente admissível no processo “comum” e a resolução por etapas da controvérsia – que não é completamente desconhecida do processo “comum” – está situado no plano decisório, não propriamente probatório; (iii) o recurso à oitiva de testemunhas técnicas também não justifica diferença porque a oitiva do perito em audiência é providência possível no processo “comum”, assim como é a oitiva de testemunhas que tenham conhecimento técnico; (iv) a limitação do objeto da prova pericial, por prévia conferência de assistentes técnicos das partes para identificação dos pontos de consenso e, por exclusão, dos controvertidos (para só então se nomear perito), se não é empregado no processo “comum”, também por ele não é excluído.
Em segundo lugar, convém avaliar em que medida as bases da arbitragem repercutem sobre o princípio dispositivo.
A resposta natural parece ser esta: fundada na autonomia da vontade das partes e limitada que está a direitos patrimoniais disponíveis entre pessoas capazes, a arbitragem é terreno fértil para os ônus de alegação e de prova. Quanto a essa última, isso significa que a iniciativa oficial da prova, se não for nula, deve ser muito restrita; inclusive para afastar os riscos à imparcialidade que, embora não reconhecidos pela doutrina brasileira dominante, é uma preocupação relevante em outros ordenamentos, não apenas docommon law.
Prova, mais do que nunca em matéria arbitral, deve ser assunto de especial interesse das partes. Nesse processo deve avultar o aspecto subjetivo – quase redundante – do encargo probatório. Esse dado é particularmente importante no contexto de um meio alternativo de solução de controvérsias, em que as partes são as primeiras destinatárias da prova disponível ou por produzir. Elas são responsáveis pela avaliação de suas chances e riscos a partir do quadro probatório que se apresente ou que se pretenda constituir.
Isso naturalmente não quer dizer que a admissão, a colheita e a valoração da prova não estejam a cargo do árbitro que, como o juiz estatal, é o destinatário da prova quando vista como elemento necessário para a decisão a ser adjudicada às partes. Tanto quanto o juiz, o árbitro pode e deve indeferir as providências que entender impertinentes e irrelevantes; compete-lhe presidir a colheita da prova e, aí sim, exercer eventual atividade de complemento; e, ao final, cabe-lhe valorar a prova segundo regra de persuasão racional. Aliás, não parece possível – nem mesmo a pretexto de se tratar de justiça privada – que as partes excluam essa prerrogativa, que é associada ao dever de motivação, sendo-lhes vedado quer o rígido atrelamento a tarifação da prova, quer a instituição de regra de julgamento segundo convicção íntima não justificada objetivamente.
Por Flávio Luiz Yarshell
Fonte:Carta Forense
Nenhum comentário:
Postar um comentário