O Direito é uma experiência cultural. Embora haja formulações jurídicas que envolvam diversas culturas, como as conhecidas diretrizes europeias, cada país tende a produzir suas próprias leis.
A Europa, aliás, no que diz respeito ao contrato de seguro, vem dando fortíssima demonstração de que a produção das regras nacionais continua sendo uma importante tendência.
Ao contrário do que muitos pensam, a despeito das diretrizes comunitárias não se forma na União Europeia um corpo de regras de direito que incide igualmente nos seus diversos países, suprimindo a necessidade das leis nacionais. Prova disso é que foram recentemente editadas leis especiais de contrato de seguro em Portugal (2008), na Alemanha (2008) e na Itália (2005), entre tantas outras. Assim como acontece com as dezenas de Estados membros daquela comunidade, também na América Latina, os países regulam seus contratos de seguro com leis especiais, a mais recente sancionada no Peru, que vigorará a partir de maio de 2013.
Qualquer experiência cultural se desenvolve e deve ser compreendida numa circunstância nacional, com exigências e finalidades econômicas, sociais e políticas específicas. Por isso é fundamental que o intérprete do direito aplicado às relações securitárias brasileiras tenha pleno domínio da língua portuguesa, como a praticamos no Brasil, e a expertise do jurista brasileiro.
Por certo não é diferente em Portugal, na Alemanha, na Itália, no Peru, ou em qualquer outro país. Cada experiência jurídica deve ser conduzida segundo as determinantes da realidade em que incide.
É realmente necessário muito cuidado com o modo pelo qual nacionalizamos experiências jurídicas estrangeiras. Para alguns o Brasil seria mais evoluído em arbitragem do que a Alemanha porque o nosso Judiciário seria menos influente do que o árbitro quando do exame do cabimento da arbitragem. Não é verossímil essa dianteira nacional. Nem é certo de que se trate de uma coisa boa, ou que essa diferença com os alemães significa sermos realmente entrosados com a experiência da arbitragem.
O jurista português João Calvão da Silva conta que escreveu a respeito da responsabilidade civil do fabricante no direito português e que sua obra é muito citada no Brasil para sustentar soluções que a lei brasileira, entretanto, regula de forma diametralmente oposta à portuguesa. O apetite exagerado pela nota de rodapé estrangeira cega o jurista brasileiro e o impede de distinguir sua própria lei.
Não é apenas o direito brasileiro que tem particularidades. Os contratos de seguro brasileiros constituem igualmente uma experiência particular com semelhanças e dessemelhanças relativamente aos contratos praticados em outros países, sob influxo de fatores os mais diversos como a história política e o estágio de desenvolvimento. O Brasil, a Inglaterra e o Egito têm conquistas securitárias diferentes.
A propósito, receio dizer que até alguns anos atrás a nossa se acomodava mais próxima da inglesa e agora despencou para a egípcia, por exemplo, no que diz espeito aos seguros de riscos de engenharia. O seguro do metrô de Londres garante “os interesses atinentes a todas as atividades relacionadas com o empreendimento”, o do metrô do Cairo garante “os danos físicos à perfuradora de túneis Cleópatra”.
Quem bem conhece o funcionamento desse ramo de seguro no Brasil, e ainda não perdeu a memória, sabe que, logo após haver sido sancionada a lei de abertura do mercado de resseguro, em 2007, o IRB, ainda monopolista, padronizou novas condições contratuais para todo o mercado (SEREG – 2428/2007).
Essas novas condições do seguro restringiram substancialmente os direitos conquistados pela sociedade brasileira ao longo de toda a sua história desenvolvimentista.
A teoria do interesse, que é potencializadora da cobertura de seguro, e que não se hesita em aplicar à apólice do metrô londrino, cede passo à estranha e restritiva expressão propriedade física tangível, aplicada à apólice do metrô egípcio. O regime de prorrogação do seguro até conclusão da obra mediante simples solicitação (Circular SUSEP 251/2004) é substituído pela necessidade de um procedimento mais complexo do que a própria subscrição original do risco. A rejeição do resseguro passa a valer com o simples silêncio do ressegurador e, assim, a reger-se contrariamente ao seguro, que se forma pela falta de recusa, rompendo a unidade do regime de aceitação tácita tão útil para a tranquilidade das relações securitárias, em prejuízo das seguradoras e dos segurados (Resolução CNSP 241/2011, artigo 5º, parágrafo 3º).
Assim como a Susep, o IRB e o CNSP correm o risco de internar experiências estrangeiras nocivas, a doutrina, a jurisprudência e a lei também podem descambar nesse terreno.
Uma lei de contrato de seguro deve enfrentar essa questão e buscar a preservação de regime contratual mínimo capaz de promover a ordem público-econômica brasileira. Ela é instrumento de defesa da sociedade e deve propiciar a liberdade, a solidarização e a pacificação que o seguro, bem praticado, pode e deve produzir.
Caso, por exemplo, admita-se ad nutum a possibilidade de não incidência da regra do parágrafo 2º do artigo 4º da Lei de arbitragem para os seguros de grandes riscos, pressupondo a possibilidade de não serem contratos por adesão ou caso se entronize a incidência do parágrafo 1º do artigo 2º, possibilitando o afastamento do direito local, estar-se-ia autorizando a exclusão do regime contratual mínimo do seguro brasileiro.
Em outras palavras, a convenção de arbitragem se transformaria num instrumento capaz de esvaziar a lei contratual, mesmo naquilo que ela, essa mesma lei, reputa essencial. Afinal, fica-se à mercê da interpretação sobre os significados da chamada ordem pública e dos bons costumes.
A lei peruana que vigorará a partir do mês que vem tomou o cuidado de esclarecer que é imperativa (artigo 1º) e de impedir o afastamento da jurisdição e do direito que favoreçam o segurado e os (artigo 40, “a”). Além disso, proíbe o pacto de arbitragem antes da ocorrência de um sinistro (artigo 40, “c”), admitindo-a após o sinistro “sempre e quando superem limites econômicos por faixas fixadas pela autoridade administrativa” (artigo 46).
Contrato de adesão
Os contratos de adesão não são necessariamente contratos celebrados entre os consumidores economicamente hipossuficientes e as empresas fornecedoras de produtos e serviços.
Embora entendamos que grandes empresas também podem ser consideradas consumidoras, aderindo à chamada definição maximalista de consumidor, quando se fala de contrato de seguro a questão não está vinculada à caracterização de relação de consumo.
Como todos sabem, é a própria natureza da atividade seguradora que impõe a utilização de textos contratuais uniformes. Somente assim é factível a dispersão dos riscos individuais no conjunto ou comunidade de segurados, condição sine qua non para a existência de um verdadeiro contrato de seguro. Um contrato, assim, não pode ser substancialmente diferente do outro.
A denominação “contrato de adesão”, como já ensinava Orlando Gomes, corresponde e, na sua opinião, deveria ser substituída por condições gerais do contrato. Segundo o civilista baiano, o tipo contrato de adesão “abrange todos os casos de pré-constituição de cláusulas uniformes que devem ser insertas no conteúdo do contrato, sejam estabelecidas por um dos contraentes ou por outrem” . O primeiro exemplo de contrato de adesão dado por Orlando Gomes é justamente o seguro.
O professor Arnoldo Wald, que também usa o seguro como primeiro exemplo de contrato de adesão, ressalta que essa adesão se caracteriza pelo fato de que “um dos contratantes ou ambos não têm a liberdade contratual para discutir os termos do contrato, podendo apenas aceitá-lo ou recusá-lo, atendendo-se à própria natureza do contrato ou a determinações legais, que fixam as condições dos contratos de certo tipo” (Obrigações e contratos, São Paulo, RT, 1994, p. 183-184).
Como sabem todos os atentos à experiência jurídica brasileira, o Código de Defesa do Consumidor estabelece que o regime de proteção nele disposto não se restringe às relações entre consumidores e fornecedores (artigo 29 do CDC). É com essa licença que nos permitimos aproveitar a definição de contrato de adesão consumerista, contida no artigo 54 do CDC, substituindo a palavra consumidor por aderente: “é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor aderente possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo”.
Todos os contratos de seguro são contratos de adesão, independentemente do fato de se considerar o segurado como consumidor ou não.
Há mais de trinta anos advogando para seguradores, resseguradores e segurados, assim como corretores de seguro e resseguro, nunca vi um segurado “modificar substancialmente” o clausulado dos contratos de seguro.
Se isso é fato incontestável para os seguros massificados de pequenos interesses, é também para os chamados seguros de grandes riscos. Muitas vezes nem as próprias seguradoras conseguem atuar como predisponentes do conteúdo substancial das apólices de seguros vultosos, as quais são compostas segundo os padrões ditados pelos resseguradores internacionais. Os segurados, ainda que gigantes, não escrevem, por exemplo, as conhecidas “condições Munich Re”.
Assim, quando a lei de arbitragem diz que a convenção de arbitragem, nos contratos de adesão, só terá “eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula”, ela se aplica a todos os contratos de adesão, mesmo entre grandes empresas.
Os contratos de resseguro são celebrados pelas seguradoras para serem funcionais para os contratos de seguro, não o contrário.
Desse modo, para garantir a qualidade do regime jurídico mínimo dos contratos de seguro brasileiros é importante lembrar que eles não podem ficar à mercê de desnaturação ou perda de conteúdo em razão do interesse ou conveniência dos resseguradores.
Isso não significa que se deva engessar a atividade. É necessário, tão somente, estabelecer contornos para garantir que a conveniência de resseguradores se sobreponha à função social dos contratos de seguro brasileiros.
Como se sabe, o Código Civil, ao tratar dos contratos, apresenta como primeira norma aquela segunda a qual “[a] liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato” (artigo 421).
Para eliminar o risco de surgirem teses novidadeiras sobre a natureza dos seguros, a lei peruana recém nascida cuida de definir que o contrato de seguro é celebrado por adesão, com exceção daquelas cláusulas que tenham sido negociadas pelas partes e que difiram substancialmente das demais predispostas (artigo 3º).
Efeitos do contrato
Outra questão importante é a relacionada aos efeitos dos contratos. O contrato de seguro muitas vezes gera efeitos de eficácia para uma grande quantidade de interessados.
Qualquer contrato envolvendo a instalação de uma indústria ou a construção de uma grande obra, assim como todo e qualquer contrato de responsabilidade civil, garante a um imenso número de segurados, determinados e determináveis, os quais terão direitos próprios contra a companhia seguradora.
É absolutamente injusto que as vítimas e os pequenos subempreiteiros e prestadores de serviços sejam vinculados à realização de arbitragem, por exemplo em Londres, como se pretendeu impor no caso Jirau.
Nesse contexto, o Projeto de Lei 3.555/2004, prevendo a problemática que sucederia á abertura do resseguro, trouxe ao exame do Congresso Nacional a regra do artigo 67, transcrita à frente.
Perda de formulação jurídica e confidencialidade
Questão muito importante quando se examina a matéria de arbitragem é a seguinte: Como um país poderá desenvolver sua experiência securitária e ressecuritária caso os conflitos e suas respectivas decisões sejam protegidos pela confidencialidade das arbitragens?
Há países que já desenvolveram sua expertise nesses assuntos, seguro e resseguro. Outros, como o Brasil, têm formulações que, pouco a pouco, avançam no tocante ao contrato de seguro e carecem, quase completamente, de cultura jurídica pertinente aos contratos de resseguro e às questões surgidas com a sua intermediação.
Por todas essas razões, visando à proteção de um regime jurídico mínimo para a ordem contratual securitária brasileira e ao desenvolvimento da experiência nessa área, o texto que se propõe para aquela que viria a ser a primeira lei de contrato de seguro da nossa história é o seguinte:
“Art. 67 A resolução de litígios por meios alternativos não será pactuada por adesão a cláusulas e condições predispostas, exigindo instrumento assinado pelas partes, e será feita no Brasil, submetida ao procedimento e às regras do direito brasileiro.
Parágrafo único sugerido pelo IBDS: É obrigatória a divulgação dos resumos dos conflitos, sem identificações particulares, e das decisões respectivas em repositório administrado pelo órgão fiscalizador.”
Como se vê, o direito em perspectiva não trata da arbitragem nas relações de resseguro, matéria que embora devesse ser cuidada pela lei de controle da atividade foi omitida na Lei Complementar nº 126/2007. O PL3.555/2004 apenas procura garantir o convívio saudável da arbitragem com as relações contratuais de seguro e os interesses do país.
Por Ernesto Tzirulnik
Fonte: CBar
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