Um dos maiores avanços da Lei de Arbitragem
brasileira, que completará 17 anos de vigência no próximo mês de
setembro, sem dúvida foi a combinação dos princípios da autonomia da
cláusula compromissória e da Kompetenz-kompetenz[1].
Em
resumo, o princípio da autonomia da cláusula compromissória determina
que a análise de validade e eficácia da convenção de arbitragem deve ser
feita de modo separado da mesma análise em relação ao negócio jurídico
que a contenha, isto é, a alegação de que um contrato é nulo não
invalida a cláusula compromissória nele contida.
Já o princípio da Kompetenz-kompetenz,
grafado em alemão de modo consagrado pela doutrina nacional e
estrangeira, determina que cada julgador é competente para analisar a
sua própria competência. Há uma certa dose de crítica nesse conceito já
que a Kompetenz-kompetenz alemã se aplica para situações em que
o julgador se manifesta em última instância e sem a possibilidade de
recurso ou impugnação.[2] E não é exatamente isso que ocorre na arbitragem, há controle jurisdicional exercido, em regra, a posteriori, nos termos do artigo 20, parágrafo 2º da Lei de Arbitragem.
A
prática, contudo, tem demonstrado algumas situações em que a combinação
desses princípios não se torna tão clara e linear quanto objetivada
pela Lei de Arbitragem.
Em primeiro lugar, deve-se determinar se o
Judiciário fará algum controle acerca da existência e validade da
convenção de arbitragem. Se a resposta for positiva, deve-se saber de
que modo tal controle será feito pelo Judiciário, em regime prioritário
ou posterior ao árbitro. Essas questões, de um modo ou de outro, foram
respondidas pelas jurisdições ao redor do mundo. Em regra, a doutrina
estabelece uma escola francesa[3], uma escola norte-americana[4], de análise incondicionada, e um regime prima facie[5] de análise.
Recentemente,
o Judiciário Brasileiro esteve diante do choque de tais pontos de
vista, no julgamento do Recurso Especial 1.278.852.[6]
O
ministro relator, Luis Felipe Salomão, fez uma interpretação literal do
artigo 8º da Lei de Arbitragem a aplicou a interpretação dominante na
doutrina, uma vez que “(...) a possibilidade de atuação de órgão do
Poder Judiciário é vislumbrada pela Lei de Arbitragem, mas tão somente
após a prolação da sentença arbitral, nos termos dos arts. 32, I e 33”. É interessante notar nesse julgamento também, de outro lado, a tese do controle a posteriori,
reforçada pelo voto do ministro relator, é ressalvada pelo voto
declarado da ministra Maria Isabel Galotti, indicando uma tendência para
uma análise prima facie.[7] Ou seja, há um posicionamento dominante, mas não uníssono no Superior Tribunal de Justiça.
De
outro lado, há a questão dos conflitos de competência e o STJ já teve
oportunidade de se manifestar em conflitos envolvendo árbitros (STJ, CC
n. 113.260-SP) e juízes (STJ, CC n. 72.848-MG e CC n. 111.230-DF). [8]
No
primeiro caso, o STJ considerou não haver o conflito de competência já
que a questão envolvia apenas árbitros e a solução parece ser dada pela
aplicação dos artigos 6º e 7º da Lei de Arbitragem.
Já na hipótese
de conflitos entre árbitros e juízes, o STJ desconsiderou ao artigo 8º
da Lei de Arbitragem e equiparou os Tribunais previstos no artigo 105,
I, “d”, da Constituição Federal aos Tribunais arbitrais, o que parece
ser um equívoco. O mais correto parece ser a suspensão do processo
arbitral.[9]
Como
se vê da análise, o equilíbrio dado pelos princípios da
competência-competência e da autonomia da cláusula compromissória não
são completamente verificados e entendidos pelo Judiciário brasileiro,
especialmente nos conflitos de competência entre árbitros e juízes. O
que não se discute é que tais regras são basilares em nosso sistema, não
se justificando qualquer debate para excluir tais princípios de nosso
sistema.
[1] Cf. caput e no parágrafo primeiro do art. 8º da Lei de Arbitragem.
[2]- Nesse sentido, E. C. Pitombo, Os Efeitos da Convenção de Arbitragem – Adoção do Princípio Kompetenz-kompetenz no Brasil in S. M. Ferreira Lemes, C. A. Carmona e P. A. B. Martins (coord.), Arbitragem – Estudos em Homenagem ao Professor Guido Fernando da Silva Soares, In Memoriam, São Paulo, Atlas, 2007, p. 327.
[3]- De modo geral, a escola francesa defende que a análise de existência de validade da cláusula compromissória só deve ser feita pelo Judiciário após o encerramento do processo arbitral, se a arbitragem ainda não foi instituída ou se a cláusula é manifestamente nula, nos termos do art. 1448 do Code de Procedure Civile. De certo modo, essa foi a solução adotada pela Lei de Arbitragem. O objetivo do legislador brasileiro foi claro, privilegiar a utilização da arbitragem como método de solução de conflitos, sem deixar de coibir eventuais abusos de julgamento pelo Judiciário ou de outras naturezas pela polícia, por exemplo quando são utilizados símbolos da república e praticadas condutas criminosas tipificadas.
[4]- A escola americana, por sua vez, considera que tal análise possa ocorrer antes pelo Judiciário, sendo determinado ainda quais questões serão analisadas pelos árbitros, conforme caso Prima Paint vs. Flood & Conklin Manufacturing & Co.
[5]- O regime de análise prima facie, por fim, dispõem que o Judiciário pode analisar de modo sumário as convenções de arbitragem, quase que in statu assertiones ou conforme alegado. Essa teoria tem uma preocupação bastante nobre e parte de dados da realidade, situações em que convenções de arbitragem são realizadas de modo irregular. Contudo, o limite da análise pelo Judiciário é um ponto que fica em aberto, causando risco para o equilíbrio do sistema. De mais a mais, as condutas irregulares que, infelizmente são praticadas no Brasil quanto às convenções de arbitragem são casos criminosos e que podem ser coibidos pelas autoridades competentes.
[6]- O caso discute o ajuizamento de demanda indenizatória no Judiciário requerendo a anulação de cláusula compromissória contida em acordo celebrado entre as partes para definição do an debeatur de indenização a ser fixada por perito definido pelas partes. Qualquer controvérsia decorrente desse acordo e da perícia deveria ser solucionada por arbitragem. O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, por sua vez, conspirou que: “Embora o compromisso arbitral implique renúncia ao foro estatal, o pedido de nulidade dessa cláusula pode ser examinado pelo Poder Judiciário se a ação declaratória de nulidade for proposta antes da instauração da arbitragem”.
[7]- “Apenas em relação à tese de que não pode haver exame de questões pelo Poder Judiciário, na hipótese de cláusula arbitral cheia, antes do final do procedimento, reservo-me para apreciar, em outras circunstâncias, a possibilidade de haver alegações que ponham em dúvida até mesmo que a parte tenha assinado esse compromisso arbitral”.
[8]- Nesse aspecto é interessante o artigo de Naíma Perella Milani, Brazilian Readings on Compétence-Competénce: Missing the Wood for the Trees in http://kluwerarbitratio nblo g.co m/blo g/2013/06/11/brazilian-readings-o n-co mpetence-co mpetence-missing-the-wo o d-fo r-thetrees/, acessado em 21 de junho de 2013 e Luis Fernando Guerrero, Árbitros, juízes e conflitos de competência in A. L. B. da Motta Pinto e K. H. Skitnevsky (coords.), Arbitragem Nacional e Internacional – Os Novos Debates e a visão dos jovens arbitralistas, Rio de Janeiro, Elsevier, 2012, pp. 88.
[9] C. A. Carmona, Arbitragem e processo. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 176 e . de A. Parente. Processo arbitral e sistema (Tese para obtenção de título de Doutoramento apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2009.
Por Luís Fernando Guerreiro
Fonte: ConJur
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