Solução de Conflitos
A França vive um escândalo político sem precedentes. Pela primeira vez na história da Quinta República, fundada por Charles de Gaulle, um ex-chefe de Estado ficou sob custódia policial, por cerca de 15 horas, para depor em um inquérito judicial. Segundo a lei francesa, tal procedimento somente é realizado quando há sérias evidências de participação em um crime.
A França vive um escândalo político sem precedentes. Pela primeira vez na história da Quinta República, fundada por Charles de Gaulle, um ex-chefe de Estado ficou sob custódia policial, por cerca de 15 horas, para depor em um inquérito judicial. Segundo a lei francesa, tal procedimento somente é realizado quando há sérias evidências de participação em um crime.
Indiciado sob suspeita de corrupção, tráfico de influência no Judiciário e violação de sigilo profissional, Nicolas Sarkozy teria obtido, de um magistrado da mais alta corte francesa, dados sigilosos de uma investigação sobre o suposto financiamento ilegal de sua campanha à presidência em 2007. Em troca, alega-se que teria prometido usar sua influência para catapultar o juiz a um alto cargo no principado de Mônaco.
No total há seis processos envolvendo o ex-presidente francês. Em um deles, aquele conhecido por l’affaire Tapie — em alusão ao influente empresário Bernard Tapie —, suspeita-se de fraude em procedimento arbitral. Após anos de disputa judicial entre Tapie e o banco estatal Crédit Lyonnais — que posteriormente transferiu seus ativos e passivos para o Consortium de Réalisation, controlado pelo Estado francês — sobre uma compensação financeira exigida pelo empresário, a então ministra das Finanças em 2007, Christine Lagarde, teria supostamente a pedido de Sarkozy (recém eleito presidente), ordenado a instauração do procedimento arbitral.
Em uma trama ainda obscura, que teria envolvido também um dos árbitros escolhidos, a sentença arbitral terminou por garantir a Tapie, em 2008, uma indenização superior a 400 milhões de euros. O suposto favor seria fruto do apoio do homem de negócios à campanha eleitoral de 2007.
No que pesem as alegações de tudo não passar de um jogo sujo da esquerda para inviabilizar uma possível candidatura do ex-presidente em 2017, o quadro atual expõe a possibilidade de uma perigosa influência política nos casos de arbitragem envolvendo entes públicos.
Esse tema tem especial relevância para o cenário jurídico brasileiro, principalmente em razão da provável aprovação do Projeto de Lei 7.108/2014, que altera a atual Lei de Arbitragem. Aguardando aprovação na Câmara dos Deputados, a iniciativa do Senado consagra que a administração pública direta e indireta poderá utilizar-se de arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis.
Segundo o parecer da Comissão Especial designada para apreciar o referido projeto, a implementação da “arbitragem na Administração Pública está contribuindo para desafogar o Judiciário” e “para amenizar a litigiosidade do Estado brasileiro”. Ocorre, todavia, que, de acordo com relatório elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2013, cerca de 40% dos processos judiciais pendentes são execuções fiscais e, portanto, em virtude da indisponibilidade decorrente de sua natureza tributária, fora do alcance da arbitragem. Isso sem mencionar os demais processos judiciais de natureza tributária que não se encontram em fase de execução.
Ademais, o parecer chega até mesmo a afirmar que seria um contrassenso as instituições públicas promoverem a arbitragem “se o Estado litigante não se afastasse do Judiciário”. E é exatamente nesse ponto que reside o maior dos perigos.
Na medida em que a opção pela arbitragem restringe demasiadamente a função judicante do Estado, abre-se margem considerável para a prática corruptiva nesses litígios que envolvem justamente entes da administração. Ora, em tempos de escândalos como mensalão e Pasadena, a analogia comporta grande verossimilhança, haja vista, por exemplo, a dificuldade de prever como se dará a compatibilização entre o princípio da publicidade, que deve reger os processos em que o Estado é parte, o sigilo para proteger eventuais informações comerciais da contraparte litigante, e as nefastas pretensões corruptivas.
Conforme relatório de 2013 da ONG Transparency International sobre o índice de percepção de corrupção praticada por funcionários públicos, políticos, e também no setor privado, o Brasil obteve pontuação 42, em uma escala que varia de 0 (altamente corrupto) a 100 (totalmente honesto), ficando atrás de Bósnia, Namíbia, Gana, Uganda etc. A preocupação que decorre da análise desses dados justifica, inclusive, a recente promulgação da Lei 12.846/2014, a tão mencionada, mas definitivamente pouco elucidada, Lei Anticorrupção, que, até então, não tem se mostrado como solução definitiva para a questão.
Não estaríamos, desse modo, caminhando para um cenário em que o direito cede passagem ao poder econômico e político, vide a dupla Sarkozy-Tapie? Se é certo que a história não se repete, porém faz rimas, que o poeta do drama gaulês não se inspire em nossos cenários tupiniquins.
Por Thyago Pereira Trairi, é advogado, aluno especial na Pós-graduação da Faculdade de Direito da USP, certificado em Strategic Leadership, Intercultural Management, Business Negotiations and Conflict Resolution pelo Centro Universitario Di Organizzazione Aziendale – Fondazione CUOA, Itália.
Pedro Alves Lavacchini Ramunno é advogado em São Paulo.
Fonte: ConJur
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